La Milagrosa
Criação artística e investigação antropológica entre divindades africanas e religiosidades católicas
Breve apresentação e documentação do projeto artístico e de antropologia visual de Rui Mourão que surgiu de uma pesquisa desenvolvida em torno do universo da Santería, sincretismo religioso entre divindades de origem africana e religiosidades de matriz católica que, ao longo da História, se foram gerando na resistência à repressão dos poderes coloniais e pós-coloniais em Cuba, continuando a existir apesar do contexto oficialmente ateu.
Ao serem proibidos os ancestrais rituais africanos durante o período colonial espanhol, os escravos dissimulavam-nos na adoração a santos católicos que adoptavam com nomes dos seus deuses ancestrais, os chamados “orixás”. Criavam altares que se encontravam inicialmente no canto mais oculto dos barracões onde eram forçados a viver, continuando os seus descendentes atualmente a posicioná-los num canto escondido dos quintais ou, de forma mais assumida, colorida e encenada, na sala de entrada das suas habitações.
A obra La Milagrosa (2016) elabora uma exploração visual de crenças e práticas que levam o espetador da casa-templo de uma “santera” (praticante de Santería), seguindo por uma das maiores procissões de Cuba e passando por um dos mais belos cemitérios da América latina - o Cementerio Colón, em Havana. O percurso faz-se em 3 núcleos: com imagens em split screen de apresentação de um ritual sincrético (documentando testemunhos e práticas religiosas de uma “santera” e a busca por uma campa no Cementerio Colón); com imagens também de projeção dupla revelando-nos a intensidade performativa dos corpos e do ambiente na procissão a São Lázaro (correspondente ao orixá Babalú-Ayé, curador de enfermidades); e ainda um conjunto formando uma composição maior de 8 vídeos projetados com imagens de um altar de Santería (apresentando uma imagética onde se cruzam a cultura africana e europeia, ganhando uma identidade americana, em particular latinoamericana).
As cores e os objetos ganham especial importância na videoinstalação, tendo em conta a sua correspondência na mitologia ioruba trazida pelos escravos. Há todo um panteão de deuses através de santos, cores e objetos. Por exemplo, elementos ligados à água, como peixes ou estrelas do mar, correspondem à deusa do mar e da maternidade - Yemayá - sincretizada com a Virgen de Regla (pelo que a sua cor é o azul marinho); elementos de madeira trabalhada, como o pilão ritual (e as cores vermelha e branca) correspondem a Changó, que se sincretiza com São Marcos e Santa Teresa, afirmando-se “el Orisha de los truenos, los rayos, la justicia, la virilidad, la danza y el fuego. Fue en su tiempo un rey, guerrero y brujo”; elementos de cor amarela ou acobreada e que sejam doces ao paladar correspondem à deusa do amor e da sensualidade Oshún; entre vários outros orixás.
Os dispositivos de apresentação do trabalho artístico surgem em jogos duplos de imagens lado a lado, como binómios visuais que pretendem obter combinações de sentidos além da simples soma das imagens isoladas (em que não seja apenas: imagem A + imagem B = sentido AB; mas sim: imagem A + imagem B = sentido ABC). O resultado, entre a videoarte e a antropologia visual, apresenta-se num conjunto de várias projeções que formam uma videoinstalação multicanal.