Não Alinhados#3 Duvide-o-dó (1ª parte)
“Pra ser feliz num lugar
Pra sorrir e cantar
Tanta coisa a gente inventa
Mas no dia que a poesia se arrebenta
É que as pedras vão cantar”
(‘Pedras Que Cantam’, de Fagner,
Álbum: Pedras Que Cantam)
Há textos que demoram. Há frases que precisam de semanas inteiras para serem lidas, pensadas, ditas e finalmente escritas. A ordem muitas vezes não é essa, mas aprendi a esperar com o Cinema. É como acordar cedo: prefiro, sempre que possível. Esperar é para mim uma parte importante do processo de imaginar o novo ou o que nunca foi. Depois de ler e ouvir os mais recentes arquivos de Isaurino, tive de dar um tempo, falar com algumas pessoas e mergulhar em outros arquivos. Senti que estava a ser enganado, que talvez a vida e as notas deste projecionista angolano fossem apenas uma imaginação de um mais velho que se perdeu ao longo das suas memórias na diáspora. Só uma certeza existia. Os meses agitados e de grande conflito para Isaurino Lisboa no final 1979 continuaram durante todo o ano seguinte.
O que me levou ao desespero foi que, nos últimos meses, fiquei preso numa frase que Isaurino escreveu na parte interna da capa do seu diário de 1980: ‘Tão cedo não vai mudar.’ (Sr. Silva)”. Primeiro, passei dias na internet à procura de variantes desta frase com o nome Silva. Depois experimentei: Angola, DIP, Luanda, Cinema, Neto, Fatinha, Paiva, José Eduardo, MPLA, Cuba, Sasa, Malaquias, tudo e mais alguma coisa, mas nada. Os resultados da minha pesquisa iam desde greves de taxistas em Luanda, flutuação cambial até uma entrevista ao jornalista Reginaldo Silva. Não, ele não é o Sr. Silva do Isaurino. Em conversa de bar, mostrei a frase a uma amiga ganesa-alemã que aprendeu português no brasil e ela chamou-me à atenção para o português da frase. Seria o Sr. Silva um brasileiro? É o sobrenome mais usado no Brasil, são mais de 5 milhões. Ser Silva é ser literalmente uma floresta. Desisti. Por fim, decidi pesquisar os arquivos do Jornal de Angola, “Boletins de Militante MPLA/PT” e o “Kisanji”, o jornal dos organismos populares de Cultura. Nada.
Até que há umas semanas atrás, em Lisboa, consegui apanhar a kota Gi Tavares, jornalista reformada e contemporânea de Isaurino, antes de este desaparecer na Alemanha do Leste em 1981. Enquanto ela fumava e jogava compulsivamente Paciência num Compaq 2001, mostrei-lhe a frase misteriosa do Sr. Silva. Ela olhou de raspão e pôs-se a rir às gargalhadas. Respondeu-me sem tirar os olhos do jogo, esse é o Silva. O tio da Gabriela. — Quem é Gabriela?
— “Quando eu vim pra esse mundo / Eu não atinava em nada”.
Fiquei mais confuso. Kota Gi parou de jogar, com o rato do computador numa mão e o cigarro na outra, levantou-se, continuou a cantar como se estivesse no Teatro Nacional.
—“Hoje eu sou Gabriela / Gabriela he! Meus camaradas.” Gabriela, a Sónia Braga.
— O Sr. Silva é o tio da atriz?
— Não, é o tio da Gabriela. Mas ó sócio, tu nunca viste novela?
Não respondi, constrangido, mas vi e vi muitas. Só que nunca tinha visto Gabriela, que vergonha. Kota Gi revelou-me que Isaurino virou a cara e apontou dedos no vinteesete, foi aí que o puxaram para o DIP1. E que isso tinha-lhe deixado atormentado, arrependido e preso num remorso profundo. Tudo piorou quando a sua irmã Fatinha foi desaparecida depois da morte de Agostinho Neto. Inclusive, a Kota Gi diz-me que ele até foi chamado ao Futungo.
—A Fatinha entrou nas contas do Movimento de Rectificação.
Depois disso, segundo ela, Isaurino passava os dias trancado em casa a ver episódios antigos de “Gabriela” e a fazer umas sessões de cinema estranhíssimas pelos bairros em Luanda, só fui a uma, no Bairro Popular. Ele já não queria saber da malta. Quis mostrar-lhe o diário de Isaurino e algumas notas para ver se ela me ajudava a fazer sentido daquilo tudo. Ela disse que não tinha tempo para isso agora, tinha de acabar um jogo importante de Paciência. Pediu para voltar numa outra altura, daqui a um ano talvez.
Saí dali a pensar no Isaurino e em todas as novelas brasileiras que vi. Em como um dia o Vitório Henriques me contou que a cidade de Asa Branca e os seus personagens engoliram pedaços inteiros da história recente de Angola. Todo o trabalho de cinema da sua geração nos primeiros anos da Independência foi desaparecido também. Quando ouvi isso, senti uma revolta. Mas na verdade quem engoliu quem? Talvez o mais correto seria dizer que a história de Angola e os seus intervenientes engoliram as novelas brasileiras. Talvez o Presidente José Eduardo dos Santos tenha engolido o Sinhozinho Malta e ninguém se deu conta. “Tô certo ou tô errado?”
Quando era criança, as minhas aulas começavam às 7h30 mas, antes disso, enquanto toda casa dormia já eu tinha visto um episódio de novela gravada na noite anterior. Sempre que posso prefiro acordar numa estória. As novelas fizeram-me crescer na imaginação, no ‘duvido’ e na fofoca. Tudo isso foi antes de ler o meu primeiro livro ou até antes de ter posto o pé numa sala de cinema. Alguns dos maiores mistérios da vida, durante esses anos, foram: o que estava dentro da caixa branca de Perpétua? O Professor Astromar seria o Lobisomem de Asa Branca?; Quem era a Mulher de Branco?; Quem seria o Cadeirudo?; E o maior de todos, quem matou Jorge Tadeu?
Num final de maio de 1994 ou 1995, cedo de manhã, enquanto via mais um episódio de “Fera Ferida”2, comecei a ouvir um som estranho que vinha do prédio do lado. Parecia alguém a dar um arranque a um carro debaixo de água ou o zurrar de um burro. Corri para a janela como todo o povo de Tubiacanga o fez durante uma madrugada em que o céu da cidade ficou colorido. Luanda, tal como Tubiacanga, Santana do Agreste, Greenville, Resplendor e, claro, Asa Branca, tem uma energia demasiado forte. Quando cheguei à janela, vi um pinguim no terraço da frente a cantar para o nascer do sol. Rapidamente o seu dono, um antigo combatente da Guerra do Huambo, que morava no terraço há um ano, pegou-lhe ao colo e levou-o para dentro do seu quarto improvisado. Quando contei o sucedido aos meus pais ao matabicho, os dois agiram com toda naturalidade. A minha mãe rapidamente disse que era um macaco e não um pinguim e que ia falar com os vizinho porque “lugar de macaco é na árvore, não num terraço.” Já o meu pai explicou-me que era normal o vizinho ter um pinguim. Muitos deles vinham do polo sul na corrente fria de Benguela para aproveitar passar o cacimbo em Luanda, filho o nosso clima faz inveja a qualquer estrangeiro. Confuso, olhei para minha mãe.
—Que queres que te diga? Lugar de pinguim é no Pólo Sul, não no terraço. Anda, mexe-te, que não quero apanhar trânsito.
Durante a aula de ciências da natureza desse dia, decidi partilhar a minha mais recente descoberta. Toda a sala se riu de mim. Todos me duvidaram. Duvidaram mas acreditaram, como eu acreditei, e acredito até hoje. Como nós sempre acreditamos quando dizemos ‘duvido’.
Talvez eu deva fazer isso a partir de agora para sair deste impasse. Duvidar para ir mais a fundo e encontrar outras respostas sobre a vida de Isaurino Lisboa. Mas é difícil, pois como disse o poeta Afonso Henriques de Lima Barreto,“infelizmente há testemunhas de mais, Dona Remédios, para gente achar que isso foi um sonho. Aconteceu, sim”.