Não Alinhados#1 Insónia Cubana

Vou contar uma história

Na verdade e imaginação

Abra bem os seus olhos

Pra enxergar com atenção

É coisa de Deus e Diabo

Lá nos confins do sertão

(“Abertura” de Sérgio Ricardo, álbum Deus e Diabo na Terra do Sol

Gosto de enredos, fios e linhas, sejam estas de coser ou narrativas, mas confesso que não sou fã de pontos feitos. Todo o respeito pelo trabalho de quem sabe coser um ponto, principalmente os invisíveis, mas eu sou fascinado pela arte de desemaranhar ou de desenredar que uma estória tem. Construo a partir da pesquisa de um arquivo, de um sonho inacabado ou de uma memória quase esquecida.

Devias fazer um filme sobre isso. Não sei quantas vezes já ouvi isso. Mas a vida, estória, arquivos e diários que partilho convosco nos próximos meses carregam todo um filme cujo protagonista talvez gostasse de ter projectado numa das inúmeras salas de cinema onde trabalhou. Surpreendentemente só uma vez partilhei partes desta história, com uma desconhecida, à boleia no carro de outro desconhecido numa das maiores greve de transportes públicos em Nova Iorque, em 2005.

Foi nesse mesmo ano, seis meses antes, em junho, que conheci Isaurino Lisboa, em Luanda, no primeiro Encontro do Cinema e Audiovisual em Angola depois de a Guerra Civil ter terminado. Fui ao encontro com a curiosidade e a paixão de quem ia começar em poucos meses o curso de Cinema. Queria perceber para onde íamos, queria ouvir atento quem estava nessa luta desde 1975 e os que se juntaram nos anos 80 e 90. Queria fazer parte dessa luta. O encontro realizou-se naquele que era na altura o hotel mais luxuoso da cidade, o Hotel Trópico, na Rua da Missão - Luanda e o seu eterno jogo de espelhos e de encadeamentos. Ali, cineastas de todas as gerações, curiosos e políticos discutiam de pulmão quente que caminhos seguir para o Cinema, num país em reconstrução. Lá conheci pela primeira vez Zezé Gamboa, Óscar Gil, Nguxi dos Santos, Dias Júnior, Maria João Ganga, Mariano Bartolomeu, Kota Gaby e Ery Claver. Foi lá que conheci Isaurino Lisboa, também conhecido por Izo, Izo do DIP.

No meio de uma discussão entre auto-estradas e cinema, onde se aprofundava quais destes objectos carregava mais a alma de um país em reconstrução, vi sentado num canto, em silêncio, um homem com sessenta e poucos anos, vestido com uma camisa verde gasta, calças de bombazina mostarda. No colo um dossier esfarrapado preenchido com páginas soltas com bolor e ferrugem. Isaurino chama-me com a mão e pergunta se trabalho com a organização. Eu digo que não, sou estudante de cinema, mas que posso ajudar.

 - Estudas aonde?
 - Nos Estados Unidos.

Ele solta uma gargalhada, agora é que estamos lixados!

 - Sabes o que Lenine disse em 1923 ao Comissário do Povo para a Educação Anatoly Lunacharsky? 

Antes de eu responder não, um antigo funcionário do IACAM interrompeu-nos e do alto dos seus cabelos brancos respondeu: A mais importante de todas as artes para nós é o cinema. Isaurino sorriu e o antigo funcionário continuou o seu caminho sem sequer olhar para nós. Ele pediu-me para sentar e disse-me baixinho de forma pausada:

 - “Enquanto o povo for analfabeto, de todas as artes, as mais importantes para nós são o cinema… e o circo”, foi isso que Lenine disse. Vem comigo, que uma coisa é certa, aqui não se está a discutir Cinema.

Enquanto atravessamos o lobby do Trópico, apercebo-me que, naquele dia, acontecia no mesmo hotel uma importante cimeira sobre Petróleo, e eis que somos interrompidos pela típica e bizarra saudação: Pensei que tinhas morrido. 

 - Mas este quem é?
 - Porra, é o Isaurino!
 - Quem? O Izo do DIP?

E o sim do tal Izo do DIP que me segurava a mão foi abafado por um abraço pesado de um homem em lágrimas. Ali, em menos de cinco minutos, vi e ouvi aquele pequeno grupo de mais-velhos a fazer um apanhado rápido das curvas e contracurvas que a vida de cada um deu nos últimos trinta anos. Mas o Izo do DIP apenas escutava, tal como eu, e quando falou soltou só um acanhado - Vivo na Alemanha. O reencontro em pleno lobby foi interrompido por uma comitiva do Ministério dos Petróleos que chegava com o ministro, vários assessores e seguranças que afastaram mais uma vez aqueles antigos camaradas. Izo aproveitou a deixa e puxou-me lá para fora. 

Dali acompanhei-o até ao prédio de uma irmã no início da Ex-Combatentes. Pelo caminho contou-me que tinha começado no cinema como assistente de um projecionista português no início dos anos 70, durante o tempo colonial, no antigo Cine Miramar1. Nos primeiros anos do pós-Independência, tornou-se num dos principais projecionistas da TPA (Televisão Popular de Angola), viajou o país e o mundo a projetar filmes sobre a situação de guerra em Angola, filmes soviéticos e propaganda do Governo. Daí foi para o DIP (Departamento de Informação e Propaganda), em 1977. Quando chegámos ao prédio da irmã, parou de contar a sua história em setenta e sete, assim como muitos da sua geração sempre o fizeram. Combinámos vermo-nos no segundo dia do encontro de Cinema no Trópico. Isaurino não apareceu. Fui até ao prédio da sua irmã e nada, ninguém conhecia um tal de Izo do DIP, ou Isaurino Lisboa, nem uma suposta irmã do mesmo. Fiquei intrigado, mas Luanda e os meus vinte anos engoliram-me, nunca mais procurei por ele.

Em setembro passado, quando estava no Festival de Cinema Africano de Colónia, o irmão de Isaurino abordou-me, disse-me que o Izo havia morrido há poucos meses, lembrou-me o breve encontro que o seu irmão lhe contou de há quase 20 anos, que o Izo vira os meus filmes Independência e até o Ar Condicionado. Tinham visto juntos. Fiquei emocionado. Combinámos um café no Riphahn Café para o dia seguinte. Quando cheguei à hora marcada, ele não estava lá e tinha deixado com os donos duas grandes caixas acompanhadas de um bilhete:

“Ele queria que tu ficasses com isto. Os arquivos não são paredes nem estantes, são pessoas”.

Hoje, abro pela primeira vez os arquivos que ele me deixou, sem saber o que vou encontrar e aquilo que talvez tenha perdido todos esses anos. A ideia é descobrir, a cada crónica, um pouco mais sobre a vida deste que foi provavelmente o projecionista angolano que conheceu mais cabines de cinema a nível internacional que, em 1981, fez uma viagem com a delegação angolana à Alemanha de Leste e desapareceu. 

 ***

CubaCuba

Documentos, transcrições e anotações do arquivo pessoal do projecionista e montador de cinema angolano Isaurino Lisboa: 

Luanda         Quarta 29.08.79

O primo que trabalha com o chefe Elísio trouxe-me um leitor de cassetes de Nova Iorque. Mesmo a tempo. Os americanos fecham os olhos para as invasões dos carcamanos, mas nunca esquecem dos presentes. Mala praticamente feita - 6ª Cimeira do Movimento dos Não-Alinhados, HAVANA! Cuba 1º vez!! 

 

Havana         Sábado 01.09.79

Recebemos o programa das actividades. Somos mais de 20 dentro da cabine. É os da película e do satélite, tudo misturado. Alguns companheiros do Intersputnik estão lá dentro connosco a mandar o sinal para Budapeste, na Hungria. Alguns reencontros e demasiados copos. Os companheiros soviéticos não paravam de falar da foto de Jupiter. Não dormi. 

 

Havana        Domingo 02.09.79

Hoje durante os discursos, discutimos a umidade da ilha. Claro, como sempre a conversa evoluiu para o síndrome do vinagre, insectos, fungos e roedores. A Sasa pareceu-me melhor deste Colombo, disse que está usar cânfora. Oléo de cânfora! O Vitório tem razão, película é vida.

 

Havana         Segunda 03.09.79

Terçeira noite aqui e não consigo dormir. Cansado de fumar para relaxar, os companheiros dizem que são as cinco horas de diferença com Luanda. Lá já é amanhã. Para mim tem a ver com a umidade, sinto-me um pedaço de celuloide. É difícil respirar nesta ilha, talvez seja em todas. Prevê-se uma cimeira tensa, hoje presidente Fidel Castro, acusou o Egito de traição por ter assinado um acordo de paz com Israel nos Estados Unidos.

 

Havana       Terça 04.09.79

Não me sai da cabeça a música da cena final do filme do Djibril. Talvez, tal como o Mory, estou um pouco preso no abismo daquelas escadas por onde desce tranquilamente o carteiro. Ou talvez porque ontem depois de ter contado ao camarada do ICAIC sobre as minhas noites em claro, ele me passou a sua colecção de banda sonoras para eu poder gravar e levar para Luanda. 

 

Lista das faixas gravadas 2

Sérgio Ricardo - Abertura (Deus e Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha)

Ravi Shankar, Bud Shank - Fire Night (Pather Panchali, de Satyajit Ray)

Giorgio Carnini - Beat Requiem (Touki Bouki, de Djibril Diop Mambéty)

Salvador Allende Canzoniere Internazionale - Dalla Luna Alla Terra (Seconda Parte) 

Edward Artemiev - Слушая Баха (Земля)(Stalker de Andrei Tarkovsky)

Ennio Morricone - Tema di Ali #2 (A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo)

Sérgio Ricardo - Monólogo (Deus e Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha)

Fumio Hayasaka - Viver no medo (Viver no Medo, de Akira Kurosawa)

Yosui Inoue - Kasaga Nai (Danzetsu)

Silvio Rodríguez - Sueño Com Serpientes (Dias Y Flores)

 

Havana         Quarta 05.09.79

Hoje depois de um longo dia projetamos o Sambizanga da Sarah na sede da OSPAAAL. O espaço era pequeno para tanto público. A Sasa ajudou-me a carregar tudo. De janelas abertas e com o som da rua a entrar pela casa adentro. Tive que improvisar uma cabine sem paredes com os companheiros de Cuba e da Iugoslávia. No início e no final da sessão coloquei o disco da Belita. No início a música passou mas muito baixo. No final do filme pediram para levantar bem o som e ouvimos o disco todo já depois da ficha técnica. Foi uma meia hora de silêncio e escuta. Caminho do Mato, última faixa do disco e tema principal no filme, deixou todo mundo em lágrimas. O público trocou abraços fraternos. Todo mundo me pediu para arranjar o disco da Belita. Deixei a minha cópia com a OSPAAAL. Em troca me passaram uns posters dos companheiros da Palestina e do Vietname. 

Havana         Quinta 06.09.79

Dormi. Finalmente dormi. Ontem depois da exibição do filme apaguei por completo. Vou começar o dia. Hoje vai ser calor a sério. Vou projectar dois filmes, um que editei com imagens do 11 de novembro e outro com imagens do projecto Angola Ano Zero onde tem as imagens que os manos henriques fizeram das invasões dos carcamanos. 

 

Havana         Sexta 07.09.79

Confusão! Alguns companheiros cubanos depois do discurso do presidente Tito e já durante o almoço fizeram acusações aos companheiros Iugoslavos e disseram que a Iugoslávia não merecia estar ali pois era um país pequeno, desenvolvido, branco, europeu e do Norte! Ia sair luta mas o resto dos companheiros (principalmente os moçambicanos) pediram calma e apoiaram os Iugoslavos. Já de tarde na cabine o Companheiro da Etiópia falou que viu “Soleil Ô” do Med Hondo (ainda não vi!) e depois me contou que já esteve várias vezes com o camarada Nascimento e que lá gostam dele. Um grande quadro, pena terem lhe mandado para Addis Ababa. Fiquei dezembro passado todo a reeditar os filmes onde ele aparecia.

 

Havana         Sábado 08.09.79

Companheiros Palestinos projectaram imagens dos bombardeamentos de Israel nos campos de refugiados e em algumas cidades do Líbano. Foi o dia todo a discutirem a colaboração económica, militar e NUCLEAR das potências imperialistas, particularmente os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a República Federal da Alemanha e Israel com o regime racista da África do Sul. Parece que Israel está fazer testes nucleares na África do Sul! 

 

Havana         Segunda 11.09.79

Escrevo desde do avião a caminho de Luanda. Não estive presente nos últimos dois dias da cimeira. O comissário político mandou-nos embarcar, maka grande em Luanda temos de voltar. Ouvi um FAPLA falar que o camarada presidente NETO está na URSS desde quinta. Será que tentaram outro golpe? 


Ouvir a banda sonora.

  • 1. O cinema Miramar tinha uma tela de vinte e três metros de comprimento por nove de altura e com uma capacidade para 1.622 pessoas. Hoje, o Cine Miramar já não existe e virou a embaixada da China.
  • 2. A cassete que o Isaurino Lisboa gravou em Havana em 1979 está disponível em formato playlist no Deezer.

por Fradique
Afroscreen | 24 Janeiro 2024 | arquivo, cinema angolano, crónica, cuba, iacam, Isaurino Lisboa, jugoslávia, memória, projecionista