Não Alinhados#3 Duvide-o-dó (2ª parte)

Documentos, transcrições e anotações do arquivo pessoal do projecionista e montador de cinema angolano Isaurino Lisboa.

Luanda                             4.01.80

Todos os dias chegam cubanos. No DIP criou-se uma sala só para as peças contra os carcamanos e os fantoches. Eu continuo na projecção das reportagens e de alguns filmes. O 2 dentes de ouro já foi bater continência ao Brejnev (Paiva foi com ele) e assim que chegou, afastou o camarada ministro da defesa, ao que parece vai fazer uma superação profissional no estrangeiro. Nos comitês de bairro só se fala de “aprender, aprender, aprender sempre”1. Mas Porra, aprender tem limites. O Paiva avisou-me que a minha irmã mudou de nome (Malvina) e que a DISA continua atrás dela.

Luanda                             21.02.80

Hoje finalmente consegui me encontrar com a Fatinha Malvina. Pedi-lhe para ter um pouco mais de cuidado e paciência. Ela respondeu-me como sempre o fez, com a verdade. O nome mudou, mas ela não. O silêncio deste país está a tornar-se uma sombra, e eu preciso de sol meu irmão. Malvina Fatinha entregou-me uma cassete com os dois primeiros capítulos da novela Gabriela. Finalmente vou ver o porquê que falam tanto dessa novela.

(notas soltas e sem data)

Este foi o último dia que vi Fa Malvina. Salvador ?

16 a 17 de Fevereiro sessões no Hoji-ia-Henda (ZONA 17). Fazer manutenção do projector. Confirmar os filmes com o Rosas.

10, 11 e 12 datas de libertação de Benguela, Lobito, Maquela, Lubango, Moçâmedes e Bié.

2º Guerra de Libertação Nacional?

O petróleo é o nosso cacau.

Malanje                     01.03.80

Iº Festival Nacional de Amadores de Dança. Não há projeção de filmes ou de nada que se pareça. Os Coronéis do Partido já não sabem mais o que inventar. O Rosas disse para não fazer muitas perguntas. Não dormi nada. Preocupado com a Malvina. Preciso arranjar mais episódios de Gabriela. Falar com o camarada Luandino, Rosas diz que ele tem todos os episódios.

Luanda                       03.04.80

Falar com Guida, ver se ela conhece alguém em Salvador. Continuam a chegar cada vez mais companheiros Cubanos. O Camarada Rosas disse que o chefe quer que nós projectemos a série do Ruy2 para os companheiros cubanos no dia 12. Os americanos vão mesmo fazer boicote aos Jogos Olímpicos. A Fatinha Malvina tinha razão! Futungo. Amanhã às 10h00. 

Cassete #031 (transcrição) 

[som de pássaros e de Isaurino a fumar]

Mais velho Paiva, por favor faça esta cassete chegar na minha irmã Fatinha. Esteja onde ela estiver. Vamos lá… Luanda, Domingo, 6 de Abril de 1980. Na sexta-feira, dia 4 de Abril de 1980 eu Isaurino Lisboa dirigi-me ao Futungo assim que o sol nasceu. Tinha sido convocado de urgência no dia anterior já eram umas 23 horas. Avisei o Paiva e o Rosas. O Malaquias levou-me. Estava com medo. Estórias não faltam de pessoas que foram e nunca mais voltaram, foram retificadas ou saíram dali para um cargo importante no partido, outros foram enviados para a frente de combate ou imediatamente presos. Os mais sortudos foram fazer superação profissional no estrangeiro. Durante a viagem, o Malaquias convenceu-me que seria por causa da Fatinha [pausa] quer dizer, de ti minha irmã. Ele achou que isso ia deixar-me mais tranquilo, mas não. Fingi que fiquei tranquilo porque não gostei da certeza dele a dizer-me que seria por causa de ti. Todo mundo sabe quem é o verdadeiro chefe do Malaquias.  

[pausa]

Chegamos cedo, ainda não eram 8 horas, mas só me chamaram já perto das 11. Malaquias disse que ficaria à minha espera lá fora, no início pensei que me disse isso para a carne ficar mais tenra para o abate. Mas à medida que o tempo foi passando, eu conseguia ver desde a janela na sala de espera que ele continuava lá parado dentro do carro. Dois FAPLAS me mandaram levantar, me revistaram e me mandaram andar a frente deles. Assim que começo andar, olho para a janela e vejo o Malaquias a arrancar com o carro. Pensei, já não volto para casa. Quando entro na sala indicada, estão sentados numa mesa membros do Comité Central, Secretariado do Comité Central e noutra mesa mais distante estão alguns membros do Bureau Político. O camarada Lucky Luke estava a chefiar a mesa e ao pé dele, em pé estava o mais recente Coronel do Bureau Político, o camarada Coronel Tino. É incrível minha irmã, a tranquilidade aparente que ele mantém, faz lembrar o Coronel Amâncio Leal. Parecem ser filhos da mesma mãe. No total devia haver umas 12 pessoas na sala. Primeiro, o camarada Lucky Luke faz toda uma introdução do papel do cinema para o povo angolano na dialética da vida e da morte. Depois começa a questionar-me como os filmes podem contribuir rumo à vitória, que é certa. E como eu via a classe operária da cinematografia alinhada com os princípios marxistas-leninistas. Respondi a tudo com a lenga lenga de sempre. Sabes, a repetição faz parte do palco do marxismo-leninismo. Uns dizem com mais convicção que outros, mas todo o povo angolano sabe as suas falas como poucos actores no mundo conseguem. Melhor que nós só em Ilhéus, na Bahia.

[pausa]

Formalidades partidárias feitas, o camarada Coronel Tino, que recentemente se tornou adido militar na Itália, pergunta-me se eu já tinha visto o documentário “A Máquina de Matar Pessoas Más”,. Respondi que sim, surpreso, pois o filme do Rossellini até onde sei é uma ficção. Nesse momento, o camarada Coronel diz-me de forma entusiasmada: Nós não queremos matar mais ninguém, só queremos que as pessoas se esqueçam. Camarada Isaurino Lisboa, o Comité Central do MPLA - Partido do Trabalho atribui-lhe a missão honrosa e secreta de construir um projector de cinema moderno e baseado nos princípios marxistas-leninistas para fazer com que o povo angolano se esqueça de uma vez por todas dos fracionistas e da intentona do 27 de Maio de 1977. Já perdemos o nosso inesquecível timoneiro, guia imortal, não podemos perder o Povo. O Povo precisa de esquecer. 

A máquina de matar pessoas, de Roberto RosselliniA máquina de matar pessoas, de Roberto Rossellini

[pausa]

Confuso com o que acabei de ouvir, disse-lhe que tinha algumas perguntas ao que ele me respondeu: Todas válidas, mas não necessárias. Agora é hora de ir e começar a trabalhar imediatamente. Não tive coragem de insistir Fatinha, na verdade a única pergunta que tinha na minha cabeça era se eles te tinham prendido ou desaparecido? [pausa]. Os dois FAPLAS voltaram a entrar na sala e escoltaram-me para fora. Ao sair da sala, vi o olhar entusiasmado de todos, e reparei que no fundo sentado numa poltrona grande estava um homem em contra luz com um sorriso tímido, os seus dois dentes de ouro brilhavam. O Malaquias trouxe-me de volta para casa. Tenho de falar com o Paiva, não sei por onde…[som de uma campainha] [fim de gravação]

Luanda                                10.04.80

O Mais Velho Paiva finalmente trouxe as duas garrafas de Rakia caseiro da Bulgária. Mostrei-lhe a minha gravação, ele chorou de rir e aconselhou-me que o melhor que tenho a fazer é levar a sério. Nós os camaradas gostamos de ser levados a sério. Constrói um projector como qualquer um, aproveita monta a mostra de cinema que tu quiseres e diz que a máquina funciona. Quem vai perguntar a quem sobre o vinteesete? Quem vai responder? Ninguém! Pronto, tá esquecido. Ele deixou-me entusiasmado. Uma coisa é certa, o filme do Rossellini tem de entrar no programa. Acabamos as garrafas. Depois de mais uma semana, finalmente dormi.

Luanda                                21.04.80

Paiva, Gi, Carlos, apareceram cá em casa. O mais velho Paiva deu-me a notícia: a Fatinha está presa e no Campo de Calunda. Falar com Rosas, talvez o primo dele interceda. Hoje, dormi uma hora mas sonhei outra vez com o camarada Coronel Tino. Ele estava a comandar um pelotão de fuzilamento com FAPLAS armados com projectores Microcine Mignon 35. A Fatinha estava em frente ao pelotão, enquanto eu alertava aos FAPLAS do erro, aquela era a Malvina não a Fatinha. 

Luanda                                01.05.80

A Fatinha Malvina está viva! Isaac e Guida conheceram uns brasileiros no almoço de despedida de uns companheiros cubanos no Prédio do Livro e eles juraram que conheceram uma angolana chamada Malvina em Salvador que fazia parte do Movimento Poetas na Praça. A Malvina está viva. Avisar Paiva. Enviar carta pelos brasileiros. Falar com Guida.  

Luanda                                05.05.80

É só isso que interessa. Tito morreu. O mais velho era rijo. Vamos fazer dois dias de luto. O dentes de ouro vai mandar o Lukoki e um membro do CC, que vergonha. Nem parece que foi ministro dos negócios estrangeiros. Escrever a Sasa.

Luanda                                12.05.80

O camarada Rosas e o camarada Luandino trabalharam incansavelmente para eu conseguir os filmes para a mostra de cinema. Eles ficaram chocados como o DIP, CC, BP aprovaram. Acham que depois da primeira exibição vamos ser todos presos. O que eles não percebem é que os mwatas do partido não querem saber dos filmes, só do projector. 

(CR I3 - Programa de Filmes)

“A Máquina de Matar Pessoas Más”, de Roberto Rossellini 

“Fogo Na Planície” de Kon Ichikawa

“Viver no Medo” de Akira Kurosawa

“Barravento” - Glauber Rocha

“Meet John Doe” de Frank Capra

“Fahrenheit 451”  de François Truffaut

“A Batalha do Chile” de Patricio Guzmán

“Touki Bouki” - Djibril Diop Mambéty

“M” de Fritz Lang

“Mandabi” de Ousmane Sembène

Luanda                               19.05.80

1º exibição foi mágica. Foi no Centro Cultural Polivalente do Palanca, no Bairro Neves Bendinha (Zona 12). O povo riu, imitava as poses das vítimas do Celestino e inventava novas para alguns camaradas dirigentes. Paiva disse que os DISA saíram satisfeitos com o resultado.

Luanda                               25.06.80

Os carcamanos agora entraram a sério no Cunene e Kuando Kubango. Ontem aqui prenderam uma centena de pessoas que estavam a preparar detonar bombas dos sul-africanos pela capital. Recebi instruções para aumentar as exibições agora mais do que nunca o “povo precisa esquecer”. Mas eu não esqueço e não durmo.  

Luanda                   01.07.80

Ontem no Bairro Operário (zona 10) sempre que o Capitão Beatty aparecia na tela, alguns gritavam o nome do Lucky Luke. A situação ficou tensa, mas assim que acabou a sessão os DISA confirmaram, o Povo esqueceu. 

Luanda                   04.08.80

Será que a Fatinha viu a final dos Jogos Olímpicos? O Carlos foi com a delegação. Como é que fizeram o Misha chorar? Aquele Vladimir Salnikov manda caixa! O engenheiro Teófilo Stevenson, o “Gigante del Central Delicias”, é para mim o verdadeiro Rocky. O Abílio, o Beto e João que me perdoem mas vão ainda ter de comer muito funje. 

Jogos Olímpicos, 1980.Jogos Olímpicos, 1980.

Luanda                       15.08.80

O Isaac e a Guida convidaram-me para passar o sábado juntos. Eles vão ao Cacuaco ver os fuzilamentos4 e depois fazer praia o resto do dia. Tou a precisar de um mergulho, mas fiquei com sabor amargo na boca ao ver o entusiasmo deles. Disse à Guida que tinha de preparar as bobinas da última sessão do CR I em Luanda. Vou ficar em casa o dia, o fim de semana todo a rever os últimos episódios da “Gabriela”. 

  • 1. Lenine.
  • 2. “Presente Angolano, Tempo Mumuila”.
  • 3. Cinema Revolucionário I.
  • 4. Tribunal Popular Revolucionário.

por Fradique
Afroscreen | 14 Agosto 2024 | angola, cinema, Isaurino Lisboa, Não Alinhados