«NON.OUI», documentário de Mahmoud Jemni

O realizador de NON.OUI tornou-se especialista em documentários sociais, concentrando-se no quotidiano das pessoas no seu país, a Tunísia, refletindo as suas ansiedades e contradições.

Cinco anos depois de Warda, la Passion de la Vie, um documentário que aborda a coragem, os projetos e os sonhos de uma jovem artista que sofre de cancro, M. Jemni ressurge com todo o seu vigor trazendo um assunto sensível em todo o mundo, que apresenta, no entanto, algumas especificidades na Tunísia, de acordo com os testemunhos.

Neste novo documentário de longa-metragem (75’), fala-se sobre racismo no dia-a-dia, inclusive em gestos aparentemente inócuos. Qual é a face visível dessa doença social, quais são as suas manifestações mais comuns, as diversas reações das pessoas implicadas como vítimas e alvos do racismo, os possíveis pontos de vista, as respostas, as consequências imediatas e a longo prazo, e como explicá-lo num país do Magrebe - uma noção que corresponderia sobretudo a um espaço cultural específico “entre um mar” e “um deserto” - onde algumas pessoas não se reconhecem como “Africanas”. No entanto, a Tunísia faz parte de África, sem sombra de dúvida, ainda que tal não represente uma identidade exclusiva.

Neste documentário somos levados a ouvir vários testemunhos que nem sempre coincidem em todos os pontos em termos de conceptualização e perspetiva.

Convido-vos a entrar no autocarro em direção ao santuário de Omi Marzouga, para uma celebração tradicional onde os tunisinos negros celebram a sua identidade e igualmente para compartilhar a jornada pela memória e pelo presente, juntamente com os diferentes personagens convidados — pessoas reais com história e a visão muito particular de uma Tunísia que parece diversa e plural, com muitas fracturas relacionadas com as diferentes formas de discriminação, incluindo a segregação racial, o principal tema do filme.

Estamos em presença de uma jovem especialista em comunicação, Wagha, de um estilista que também trabalha no cinema e usa principalmente tecidos étnicos — esse mesmo estilista cuja “cor não representa a Tunísia” — como enfatiza, referindo as insinuações e exclusões de que é alvo, como se um país pudesse ser resumido num único símbolo, negando a pluralidade cultural, étnica e toda a sua História. Um estudante de teatro (Abdesalam), uma ativista da sociedade civil e presidente de uma associação antirracista (Saadia Mosbah), um sociólogo (Abdelssatar Sahbani), em suma, pessoas com tons de pele diferentes, gerações e histórias familiares diversas, que compõem esse grupo heterogéneo. Outras figuras importantes virão juntar-se ao grupo: uma deputada (Jamila Debbech Ksiksi), um professor (Belgacem Rajah) e um ator (Farhat Debbech). Alguns participantes, menos visíveis, trarão pontos de vista complementares e confessarão experiências pessoais significativas, histórias surpreendentes e inesperadas.

Pessoas anónimas olham insistentemente para um casal misto na rua, outras expressam-se em linguagem desrespeitosa, mesmo entre parentes que, no entanto, é tolerada e assimilada como “aceitável”. São situações que podem gerar experiências humanas marcantes e negativas. Há uma espécie de negação que tenta justificar o injustificável.

Essas pessoas parecem unidas no desejo de (re)construir um país plural e coeso, segundo os seus depoimentos, respeitando a variedade das expressões culturais, raízes históricas ou geográficas, e a diversidade regional. O testemunho do estilista (Salah Barka) enfatiza o facto de usar “modelos negros e brancos para não cair no racismo anti-branco”, uma atitude notável para alguém que construiu um percurso de vida superando diferentes preconceitos.

O filme começa com uma magnífica dança coreografada, inserida num ritual religioso. A noite está clara e os homens vestidos com túnicas brancas, agitando lenços vermelhos como bandeiras ao vento. Para o espectador não familiarizado com o folclore tunisino e seus referentes, essa pode ser uma boa maneira de nos receber e integrar. Seria uma forma de acolher as pessoas, numa atmosfera norte-africana muito especial.

Participamos da peregrinação anual com a tradicional celebração no santuário de Omi Marzouga, muito semelhante à paisagem em que ocorreu parte das filmagens do filme «Babel», de Alejandro Iñárritu, principalmente por causa do aspeto quase marciano do terreno deserto, seco e pedregoso, e da relva acinzentada e poeirenta. Aí se presta homenagem a uma figura feminina que fundou a identidade dos tunisinos negros, uma mulher-metáfora que se converteu em lenda. Essa figura tutelar veio do Sudão e casou-se com um homem de pele clara da região. Olhando para o mausoléu de pedras brancas, os pratos e bebidas tradicionais, como o cuscuz e a bsissa, os pequenos copos de chá, as danças de rapazes que lembram as dos Pauliteiros de Miranda do Douro, em Portugal, a fogueira, as orações (em que as pessoas imploram à Santa que faça chover) e o convívio entre gerações, é legítimo perguntar qual é realmente o lugar do racismo; mas este trabalho, que se baseia em emoções e memórias, fornece-nos inúmeros exemplos, muito bem ilustrados pelos oradores, acerca desse veneno social.

As pessoas são convidadas a pronunciar-se sobre as suas experiências pessoais e a maneira como essas vivências deixaram sequelas no subconsciente — emoções tão intensas que muitas vezes são indizíveis — e limitaram as suas escolhas profissionais e afetivas. Essas sequelas assumirão várias formas, mais ou menos veladas, diretas ou subtis. Influenciam a identidade social dos protagonistas que enumeraram as dificuldades encontradas dentro de uma sociedade que, por vezes, parece sentir-se desconfortável ao olhar-se ao espelho sem filtros.

Mesmo ao nível familiar, existem algemas infrangíveis na infância, sentimentos e esperanças frustrados pelas estritas regras tacitamente aceites ao longo de gerações. É uma forma de austeridade e de asfixia cultural, onde o único lazer é muitas vezes a leitura; trata-se de uma estrutura normativa em que as proibições prevalecem e geralmente têm a palavra final. O sucesso de um aluno proveniente de uma camada social desfavorecida ou empobrecida pode incomodar as mentalidades mesquinhas que não discriminam apenas com base na cor da pele; e afirmam, pelas atitudes, não apenas que não somos todos iguais, mas que não temos todos os mesmos direitos.

Quando uma criança é chamada oussif (uma palavra considerada ofensiva para designar servo ou escravo), isso pode deixá-la magoada ao longo da vida: é claramente violência verbal, ou seja, toda uma linguagem edificada em torno de uma ideia de superioridade de uns sobre outros, e que constitui uma forma de bullying. Mesmo que essa criança seja o melhor aluno da turma, mesmo que venha a ser um adulto “bem-sucedido”.

Os diferentes participantes que refletem sobre a questão do racismo passam a mensagem explicitamente: existem instrumentos legais que visam garantir que todos os cidadãos são iguais perante a lei (foi necessário promulgar uma lei, após anos de luta da sociedade civil, relacionada com todas as formas de discriminação racial, em 2018, pois a abolição da escravatura, em 1846, não erradicou o racismo), mas também é necessário que as mentalidades mudem, e essa é uma aposta muito mais difícil e a longo prazo.

O racismo silencioso, dissimulado ou o assédio racial são fenómenos universais, mas continua a ser essencial preveni-los, identificá-los, denunciá-los e combatê-los localmente. Pedagogia e sensibilização, vigilância, criminalização e punição (“a prisão não muda as mentalidades, mas dissuade o transgressor”) são talvez as ideias-chave que retemos.

A linguagem deve ser revista ou mesmo “libertada” de certas expressões discriminatórias e ofensivas, o que equivale a dizer que é necessário “eliminar o léxico racista”. Se uma lei não interfere no pensamento coletivo no imediato — a lei por si só não basta – não deixa de ser um começo, e isso prova que a sociedade está a organizar-se e a fazer um esforço para combater o preconceito. O testemunho do sociólogo também nos convida a refletir sobre o papel da imprensa e das instituições — é preciso saber onde e como apresentar queixa —, o papel da escola (porque o racismo pode ser ensinado, o que significa que o oposto também é possível) e do sistema cultural, a importância da arte no combate ao racismo em todas as frentes. Também neste filme se fala de outras formas de segregação com base na origem geográfica, no género ou nas opções sexuais, que podem levar a uma dupla ou até tripla penalização… A tolerância ao preconceito como norma de vida abre as portas a todo o tipo de comportamentos nocivos e redutores num tecido social que pretende ser moderno, embora, por razões históricas, o racismo assuma contornos incomparáveis ​​em termos de violência verbal, física e psicológica, com consequências também para a economia. O racismo está, de facto, profundamente arraigado em muitos países e, aparentemente, a Tunísia não é exceção.

Para concluir diria que Mahmoud Jemni faz viajar a sua câmara pela região, filma as suas contradições, os seus estereótipos e vitalidade, a sua arte, as esperanças e energia, mas também atravessa a Tunísia - Ifriqiya - e o mundo, porque as reflexões e o discurso antirracista que se depreendem deste documentário, belo e coerente, feito com o coração, podem efetivamente mudar as nossas práticas e escolhas de vida. Vivemos num mundo mestiço e é importante recordá-lo todos os dias.

 

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por Luísa Fresta
Afroscreen | 9 Julho 2020 | cinema, Mahmoud Jemni, racismo, Tunísia