«O Espinho da Rosa»
A primeira longa-metragem do jovem realizador e argumentista Filipe Henriques tem percorrido vários continentes. Esta co-produção luso-guineense premiada e aclamada em diversos festivais [na Tanzânia (Festival Internacional de Cinema de Zanzibar, 2014), nos EUA (Eerie Horror Film Festival, 2014), em Angola (FIC Luanda, 2013), apenas para citar alguns, e selecionada para outros tantos, como o FEStin 2014, o Fantasporto 2014 e o FESPACO 2015], apresenta uma história consistente e com um fio condutor sólido e coeso, sem no entanto deixar de dar margem para as derivações da imaginação de cada um. O tema central é forte e polémico: a pedofilia. Para complicar o enredo e acrescentar tensão ao thriller, a fantasia e o terror estão também no menu; o elemento sobrenatural funciona como um complemento que chega a sobrepor-se ao tema central, fazendo com que o filme não se confunda nunca com uma obra meramente didática ou documental, o que teria já algum mérito, mas sobressaia claramente como objecto de entretenimento, denso e com interesse crescente, causando arrepios e convidando ao misticismo, mantendo uma intriga cada vez mais empolgante. O espectador observa e envolve-se, intranquilo, numa corda bamba de emoções e sobressaltos, ora no papel de detective, ora no papel do psicólogo, uma vez que esta longa tem também uma clara vertente de drama psicológico, com avanços e recuos no tempo, proporcionando uma sobressaltada viagem cronológica, através de flashbacks bem utilizados (com céus a sépia e imagens de momentos felizes ou dramáticos), sem cair na armadilha da repetição tautológica.
David Lunga é um promotor público que tem em mãos um caso mediático de pedofilia. A imprensa trá-lo para a ribalta e faz dele uma figura de destaque, identificável, e também vulnerável mercê da sua visibilidade. Enquanto os seus pares lhe louvam a competência e o êxito, outros há que lhe fazem chegar ameaças veladas e insinuações misteriosas, que o deixam confuso e desconfortável, pois, como ele próprio afirma, “venceu uma batalha mas a guerra continua”.
Por outro lado, David é um homem que carrega uma pesada cruz por causa de um drama familiar nunca ultrapassado, e essa tragédia íntima está estreitamente ligada ao seu investimento pessoal no caso em julgamento. Ao saborear um momento de recolhimento num bar, o seu caminho cruza-se com o de uma jovem mulher que o deixa fascinado. De imediato a sua vida começa a sofrer um ciclo de mutações inesperadas, com novos e complicados desafios, reais e imaginários, que o levam a duvidar de si mesmo (e a pôr em causa a sua postura iconoclasta), nunca questionando a atração que Rosa, a sedutora mulher, exerceu sobre si.
O real cruza-se com a fantasia e a fronteira entre o concreto e o imaginário é cada vez mais ténue. Para David Lunga e para o espectador, assim como para a criança aterrorizada que há em nós, que sucumbe ao onirismo da trama, às alusões constantes a lendas conhecidas ou recriadas, com talento, por FH. É o caso da belíssima noiva que se passeia, diáfana, à beira da estrada, e que neste filme espera o noivo desaparecido; ou da versão da história no masculino, em que o noivo, embriagado de desgosto, aguarda alienado o regresso da sua bela. Lendas que nos recordam uma figura mítica do folclore mundial, que, em Angola (Benguela), em Portugal (Sintra), no Brasil ou México, entre muitos outros países, nos falam de uma misteriosa mulher que assombra os viajantes nas estradas, com todas as variantes possíveis quando à indumentária e à sua tragédia pessoal.
Ao longo do filme vamos percebendo que nada é o que parece e quase todos têm esqueletos nos armários; desfilam sob os nossos olhos traumas de guerra, mentes psicopatas, comportamentos perversos, crenças e tradições, como a figura aterradora da dama Pé de Cabra.
O filme cativa sobretudo pela capacidade de surpreender e prender sem se tornar num equívoco ou num emaranhado de situações demasiado ambíguas ou previsíveis. Destaco duas interpretações marcantes: Ângelo Torres (no papel do ameaçador agente e ex-combatente) e Daniel Martinho (como Nancassa, pai de Rosa), pela sobriedade e constância, e sobretudo pela credibilidade, entre um elenco com um desempenho globalmente positivo.
Percebe-se por isso a aceitação do filme a nível internacional e o burburinho que suscita a obra e o realizador. É o filme ambicioso, maduro, com alma e coerência, que os espectadores lusófonos, entre outros, se preparavam para acolher desde há algum tempo.
Agradecimentos: Expresso o meu claro reconhecimento ao realizador, pela disponibilidade e prestimosa colaboração, nomeadamente na cedência de material fotográfico.
Publicado em O Gazzeta (www.ogazzeta.blogspot.com.br) a 22/03/2015
Para mais informações sobre o filme, por favor consultar também:
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