Património Fotográfico: Quem é Dono da Memória do "Antes"?


Um pouco por todo o continente africano assiste-se ao renascer de uma indústria da cultura e da memória, mesmo de um culto da memória. E talvez seja uma boa novidade. Memória essa que, obviamente indelével, está também - paradoxalmente - bastante ausente da realidade do dia-a-dia em muitas capitais africanas, e em particular em países como a Libéria, onde a gestão de um equilíbrio precário do pós-conflito, e do trauma social, cívico e pessoal é, simultaneamente, a gestão da ausência de uma memória do “antes”. As gerações mais jovens, demasiado jovens para se lembrarem, crescem num “agora” em que a história cessou de existir, porque a guerra apaga o passado e o presente para permitir um semblante de futuro. Conhece-se por narrativas contemporâneas, conhece-se por narrativas do Norte. As gerações intermédias, criadas no seio da guerra civil, esquecem por resposta ao trauma, por necessidade de paz, por necessidade de ultrapassar as imagens de um período de invulgar violência e, por associação, aquilo que a antecedera.Normalmente tomadas por certas, tanto a memória fotográfica como a cinematográfica estão, no entanto, ausentes ou gravemente debilitadas em muitos dos países que recuperam de uma guerra civil. Arquivos, bombardeados, pilhados, queimados, ou simplesmente retirados pela potência colonial na hora di bai. Em conversa com Veronica Fynn, uma investigadora canadiana de origem liberiana, torna-se evidente que a ausência destas memórias dói no mais profundo da alma. Dói não recordar o rosto do vizinho de uma década, o número de pintas no focinho do cão da infância, dói recordar aqueles sapatos vermelhos que não aparecem em qualquer fotografia, porque todas foram queimadas. Fynn, hoje residente em Vancouver, não hesita, ainda assim, a apontar a falha principal do projecto de Jeff e Andrew Topham, dois fotógrafos e documentaristas da Colúmbia Britânica. “Em miúdos, por causa das fotografias do meu pai, a Libéria transformou-se no sítio de onde nós éramos”. Em Libéria 77, co-produzido pela Knowledge Network e a TVO canadianas, e presentemente percorrendo os circuitos documentais alternativos, os dois irmãos colocam ênfase na sua própria experiência enquanto crianças em Monróvia, de onde sairiam uns meros dois meses antes do rebentar da guerra civil. Regressam à Libéria para devolver as memórias levadas para casa numa caixa de fotografias do pai. Fotos banais. Este processo, catártico tanto para os artistas como para alguns dos interlocutores por quem passam (como o filho do seu antigo ‘houseboy’), não deixa de colocar em evidência o problema apontado por Fynn: as memória liberianas estão a ser devolvidas aos liberianos, mas não ditadas pelos mesmos. Talvez estas não sejam, afinal, memória liberianas, mas antes memórias alheias da Libéria. Numa das cenas, um dos intervenientes comove-se ao ver fotografias que jamais vira da sua família. A única fotografia que tinha, depois da guerra, estava num cartão de identidade. O projecto auto-define-se, no entanto, com esta contradição em mente, assumindo-se com um mal necessário, e sobretudo como uma primeira tentativa de refazer a normalidade e relembrar que África é mais do que guerra civil, trauma e caos social. África é também um par de sapatos vermelhos no dia de um baptizado, um vestido sarapintado naquele almoço de família, ou uma viagem no Dodge de caixa aberta no Verão de 1978. 

 

por P.J. Marcellino
Afroscreen | 10 Maio 2012 | cinema, memória