Mamadou Sene Bhour Guewel do Senegal para Cabo Verde
Mamadou Bhour Guewel Sene recebeu o seu nome aos sete dias, na tradicional cerimónia que celebra uma semana sobre o nascimento de uma criança (7 de Julho de 1972). Do pai recebeu o apelido e o nome do profeta; da sua avó griot, Amy N’gom, recebeu Bhour Guewel, um nome que afirma a pertença à linhagem dos depositários da tradição oral e musical entre o povo Serere. Mamadou é ainda hoje conhecido como Bhour Guewel – ou simplesmente Bhour. Nos anos 70, Dakar era um turbilhão cosmopolita em que jovens músicos ouviam com entusiasmo os ritmos mais inovadores vindos de todo o globo, absorvendo e fundindo elementos díspares com a sua própria tradição cultural. De certa forma, os ritmos modernos do mbalax são um produto directo dessa época áurea. Artistas tradicionais – em particular cantores e tocadores de tambores falantes, tais como a avó de Mamadou – eram, nesta época de forte revivalismo da cultura popular e herança senegalesas, largamente requisitados. Os griots, conhecidos em Wolof com ‘Guewel’ (e por outros nomes em toda a África Ocicental), são uma casta hereditária e distinta de ‘bardos’ e cronistas da vida e história da sociedade Wolof. São músicos, cantores, contadores de histórias e historiadores, frequentemente a única fonte de tradição oral entre os seus.
A avó Amy N’Gom era uma griot conhecida. Ainda que nem todos de tal estivessem convencidos, N’Gom insistiu desde o primeiro momento que também Mamadou estava predestinado a tornar-se griot. A avó tomou a seu cargo a sua educação, mantendo-o a seu lado. Mamadou foi, assim, criado no ventre da cultura e das tradições ancestrais dos griots. Ainda menino, partilhava com a avó uma cama, ouvindo-a cantar, preparar novas canções, recitar o manancial de estórias dos Serere. À medida que crescia, acompanhava-a cada vez mais frequentemente nas suas actuações em Dakar e nas por todo o Senegal.
A família vivia em Grand Yoff, um bairro popular nos arredores de Dakar. Tipicamente, este era o tipo de bairro de onde muitas estrelas senegalesas sairiam ao longo dos anos. As relações sociais eram estreitas em Grand Yoff. As portas estavam quase sempre abertas e ninguém era deixado de fora. As pessoas falavam, discutiam os seus problemas (e os de outrém) resolviam-nos enquanto partilhavam um copo de attaya, um forte e doce chá senegalês.
Todos os verões Grand Yoff enviava artistas para os Oscars des Vacances, um célebre concurso de busca de talentos organizado na cidade, que revelou muitos dos artistas senegaleses de hoje. Invariavelmente, os artistas o bairro regressavam premiados. Mamadou, então na adolescência, começava a dar à avó N’Gom razões para se congratular pela intuição. Frequentava já cerimónias sozinho, primeiro cantando o bak – um tipo de canto de improviso para encorajar os atletas do Laamb, a luta livre senegalesa – e mais tarde cantando em kassak, ou cerimónias de circuncisão, bem como em casamentos e cerimónias de nascimento.
Discretamente ciente do seu papel de mentora, a avó N’Gom comentava a sua forma de cantar e propunha alterações à letra das canções, sugerindo inflexões e deflexões de voz. Inevitavelmente, Mamadou acabou por participar nos Óscares des Vacances com bandas de Grand Yoff (Étoile Magique, Fancy Club Jordan, e Riche Boys, a sua favorita), cantando e coreografando as performances em palco. Com os Riche Boys atingiriam três segundos lugares em anos consecutivos, e o grupo chegaria mesmo a vencer a competição no mesmo ano em que Mamadou deixa o Senegal. Individualmente, ganha prémios de melhor cantor, e de melhor cantor de bak, convencendo a avó de que tinha, de facto, criado um pequeno griot. À medida que cresce, em parte através do seu irmão, Mamadou entra nos circuitos musicais de Dakar, interagindo com músicos como Manel Diop, Lamin Faye ou Youssou N’Dour.
Sabia já que cantar estava no seu destino. Sentia falta do lado emocional de cada actuação, e rapidamente se uniu a outros senegaleses residentes no bairro de Monte Sossego, no Mindelo, criando o Grupo Sabar. Nos dois anos que se seguiram, o grupo de percussionistas corre os palcos mindelenses. Existia ainda quando em 2000, Mamadou se cruza com o bailarino, coreógrafo e músico Toni Tavares, e o jornalista, escritor e músico Joaquim Arena. Corria o ano de 2002 e Tavares trabalhava nas franjas da produção cultural, buscando activamente as raízes africanas das ilhas. A sua sensibilidade musical seria crucial nos anos posteriores.
Tal como outros na mesma época de busca das raízes africanas (por vezes menosprezadas), os três artistas reuniam-se no espaço cultural Alternativa, do realizador Leão Lopes. Ali fluíam tanto a música como as tertúlias em redor dos temas da africanidade e da caboverdianidade. Mamadou, Tavares e Arena improvisam com outros músicos, e Tavares sugeriria um dia o nome Sulabanku, que em crioulo descreve o movimento do mar (de raízes), uma música em constante movimento, e a inerente abertura da banda. Em breve juntar-se-lhes-ia Osseynou, no tama. O novo quarteto leva a todo o Mindelo um som fora do comum e transformar-se-ia numa sensação local, logo reforçada por Zézinho no violino, Nolito no baixo e Tey Santos na bateria (Tey será mais tarde o baterista de Cesária Évora). A banda sai em tournée por todo o país, tocando nos principais pontos culturais, incluindo o Festival de Santa Maria, na ilha do Sal, no Centro Cultural Francês da Praia e no Festival de Porto Novo, em Santo Antão. Os meios de comunicação locais e a RTP África chamam ao Sulabanku a “banda revelação” do festival de Santa Maria.
Joaquim Arena parte para Lisboa logo depois da tournée, sendo substituído à guitarra primeiro por Cachimbo, e depois por Voginha, um dos nomes cimeiros nas cordas caboverdianas. Pontualmente, o Sulabanku colabora com músicos como Hernâni Almeida, no espírito do intercâmbio de ideias e influências ecléticas. Nos anos seguintes, a banda actua nos principais palcos das ilhas - Quintal da Música, Tabanka Mar, Hotel Porto Grande, MindelHotel, Café Musique, Tradisom & Morabeza Auditório de Música de Grupo Garantia da Praia, Centro Cultural Francês da Praia recentemente para o Dia de África, e no Centro Cultural Mindelo, culminando com uma actuação fulgurante na Rua de Lisboa, a principal artéria mindelense.
Entretanto, novos músicos se juntaram ao Sulabanku. A sonoridade única da banda continua enraizada no intercâmbio musical de fusão histórica entre Cabo Verde e Senegal e na exploração de novos horizontes, com um som cada vez mais influenciado pelo afro-jazz, por vezes prestando homenagem à mazurka caboverdiana, mas ancorado nos ritmos quentes do Senegal e na tradição griot. Cantando em wolof e crioulo numa voz peculiar, Mamadou dá cor à música acústica de fusão com letras que contam histórias, como um griot canta o passado. Como dizia a avó N’Gom, “uma canção que não conta uma história, que não transmite conhecimento e amor não é uma canção, é uma brincadeira”.
Mamadou há sete anos atrás, casou com Roxana, uma argentina de origem caboverdiana que lhe terá trazido alguma influência mais, e com quem teve recentemente um filho, Mohammed. O bebé Sene sossega quando o pai lhe canta, e sorri quando lhe fala em wolof. Bhour Guewel chama-lhe a sua “inspiração”, e está convencido que também ele encontrou o seu griotzinho.
2009