Tela d'Pano Terra: Mostra Inédita de Cinema Caboverdiano chega a São Paulo pela mão do Nicho 54
A quarta edição do festival negro de cinema NICHO Novembro acontece na cidade de São Paulo, de 4 a 13 de novembro de 2022. Este ano, o país convidado do festival é Cabo Verde, com uma curadoria alargada intitulada Tela d’Pano Terra: Nova Onda Cabo Verde, que se estende até 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.
O NICHO Novembro é realizado pelo Instituto NICHO 54. Já a Tela d’Pano Terra tem realização do recém-criado Instituto de Cinema Pano Terra, de Cabo Verde, e do coletivo de cinema Afro-diaspórico, Baobab Film Collective, em parceria com a Anatomia da Errância Filmes e a KS. Cinema, do Canadá e de Cabo Verde, respectivamente.
O NICHO 54 foi fundado em 2019 com a missão de desenvolver carreiras de profissionais negros em posições de liderança no mercado audiovisual, buscando promover equidade racial e de género em toda cadeia do setor e, ao mesmo tempo, contribuir para expandir o imaginário sobre sonhos e caminhos de vida para pessoas negras no Brasil. A atuação do instituto dá-se através de três eixos integrados: formação, com cursos, treinamentos, mentorias e compartilhamento de informações e experiências entre profissionais do meio; mercado, com ações de estímulo à aproximação entre profissionais e indústria; e curadoria, cuja ênfase está na formação do olhar e de disputa do imaginário, tanto por meio da programação de filmes quanto pela oferta de oficinas e vivências curatoriais para jovens profissionais.
“O NICHO Novembro é o evento mais importante do ano para o Instituto NICHO 54. Em 10 dias, como parte da agenda de celebração e lutas da comunidade negra que marca o mês de novembro, o festival materializa nossos três eixos de atuação, com atividades de formação profissional no audiovisual, debates e contribuições práticas para a construção de um mercado de trabalho com equidade racial e de gênero, e curadoria, com uma mostra de filmes que celebra as vidas negras em toda nossa potência e complexidade”, diz Fernanda Lomba, cofundadora e diretora-executiva do NICHO 54.
O Instituto de Cinema Pano Terra é lançado com objetivos muito semelhantes aos do NICHO 54, no treinamento técnico, criativo e executivo e na exposição e interlocução com o mercado internacional para potenciar Cabo Verde como plataforma na rota da produção, mas também no desenvolvimento independente de um ecossistema setorial enfocando particularmente o impacto econômico real, as aplicações de novas tecnologias à cadeia de produção de cinema e televisão, e a defesa da soberania cultural dos conteúdos caboverdianos, afro-diaspóricos e de outros pequenos estados insulares.
Cultura como um motor económico em Cabo Verde
O fator cultural é fundamental para a economia caboverdiana, dinamizando a disseminação da marca do país e contribuindo amplamente para seus fluxos turísticos. No entanto, em Cabo Verde, ao contrário de países com maior historial no setor, como a Jamaica, as autoridades e as agências de promoção do investimento, do turismo, da cultura, e da tecnologia raramente trabalham de forma integrada. “É importante que a economia caboverdiana valorize sua situação estratégica no centro de um turbilhão de inovação altamente improvável no meio do Atlântico”, conta Pedro José-Marcellino, cofundador do Instituto Pano Terra e curador da mostra Tela d’Pano Terra em São Paulo. “Apesar das dificuldades, nosso país dá cartas no patamar internacional na indústria da música, principal embaixador cultural de Cabo Verde; no desporto, onde nossas seleções alcançam resultados invejáveis para um país de meio milhão; e no impressionante ecossistema de Start-Ups liderado pela Cabo Verde Digital, que essa mesma semana constitui a maior delegação africana na Web Summit 2022 – o maior evento de inovação tecnológica”.
José-Marcellino acrescenta que “existe um hábito péssimo de olhar para a arte como direito adquirido, como algo que existe no éter, sem pensar que a arte, de fato, é todo um recorte formativo e da educação da imaginação, toda uma economia com impactos reais no PIB de qualquer país, no bem estar mental, social, e econômico das populações…” Conclui dizendo que “como economista e politólogo que só bem tarde entrou no setor do cinema, meus olhos estão bem grudados no impacto económico mensurável do setor, nos impactos sócio-formativos e na integração, flexibilização e criatividade institucionais necessárias para potenciar uma economia da cultura que diversifique nosso portfólio e seja tão competitiva quando o turismo e as novas tecnologias.”
Do Pano Terra ao Instituto Pano Terra
O Instituto de Cinema Pano Terra foi criado por um grupo de cineastas caboverdianos com carreiras internacionalizadas, com o intuito de proteger e dinamizar a soberania cultural do setor do cinema no seu país e de promover o desenvolvimento de um ecossistema audiovisual no arquipélago de somente 550.000 habitantes, e em sua extensa diáspora. Na sua estratégia, o Brasil se configura como o interlocutor privilegiado na América do Sul, a par dos mercados de Toronto e Los Angeles na América do Norte, Lisboa e Luxemburgo na Europa, e Joanesburgo, Dakar, Accra, Luanda, Maputo e São Tomé em África.
O cofundador dessa mostra que agora chega em São Paulo diz que “este evento quer ser uma pedrada no charco do cinema e do audiovisual caboverdiano, onde pouco acontece, mas muito está em vias de acontecer. Temos o talento, temos a criatividade, falta uma maior sistematização da indústria – que já começou a ser implementada nos últimos anos, mas faltam os regulamentos, faltam articulações. Podemos colmatar essas faltas proativamente.” O curador acrescenta ainda que “a geração e cultivo de laços pessoais e redes profissionais em todo o espaço Atlântico está entre o mais essencial para alavancar o crescimento da indústria num contexto internacional. Estas colaborações Sul-Sul são o nosso futuro. Por isso apostamos numa presença tão forte em São Paulo.”
O Pano da Terra, um tecido tradicional cabo-verdiano, outrora utilizado no contexto do tráfico de escravos em todo o Atlântico, está hoje resgatado e recontextualizado como elemento de pertença e de raiz. O nome do instituto realça o esforço na gestão da memória e no questionamento das identidades do país, lembrando-o e a sua indústria de onde vem, para definir onde vai, atuando como elemento imediatamente identificante de Cabo Verde.
A curadoria de “Tela de Pano-Terra: Nova Onda Cabo Verde” (“Ekran d’Pánu Téra: Nobu Vaga Kauberdi”) apresenta um recorte curatorial que abraça as nuances das identidades e da memória coletiva, da (des)pertença, do hibridismo, do estar em trânsito e da transnacionalidade da caboverdianidade. “Essa seleção é um marco, pois é a primeira vez que o NICHO Novembro acolhe uma retrospectiva. A seleção feita pelo produtor e documentarista Pedro José-Marcellino ilustra o comprometimento do instituto com a interlocução em diáspora”, ressalta Heitor Augusto, curador-chefe do NICHO 54. José-Marcellino acrescenta que “essa colaboração será a primeira de muitas e volumosas parcerias. Para Cabo Verde, o Brasil é uma porta de entrada para os grandes mídias. Para o Brasil, Cabo Verde quer se configurar como uma porta privilegiada para o continente africano. No entanto, para isso ainda temos muito trabalho pela frente, até na definição de nossa própria relação sócio-cultural, política e histórica com África.”
De volta ao presencial com o maior festival da história do NICHO 54
Em comparação aos anos anteriores, a edição do festival em 2022 está ainda mais robusta e será a maior edição da história, refletindo o crescimento do próprio Instituto NICHO 54, realizador do evento e uma das organizações mais ativas do Brasil para a promoção e valorização das pessoas negras na indústria audiovisual. Com programações simultâneas em dois dos principais espaços culturais da cidade de São Paulo — o Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro, e o Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista —, o NICHO Novembro se prepara para receber seu maior público: mais de 1.000 pessoas devem participar das atividades presenciais e mais 1.500 pessoas de outras cidades e países devem assistir aos filmes pela plataforma de streaming SALA 54. A Tela d’Pano Terra adicionará novas audiências.
Este ano o NICHO Novembro apresenta 31 filmes, entre os quais 11 caboverdianos, que representam um recorte potente da safra anual de obras focadas nas vivências negras do Brasil e do exterior. Entre eles estão “Manhã de Domingo” (vencedor do prêmio Urso de Prata no Festival de Berlim), de Bruno Ribeiro; “A perda de Joy” (“Losing Joy”, BlackStar Film Festival), de Juliana Kasumu; “Esconderijo dos lagos gêmeos” (“Twin Lakes Haven”, Festival de Locarno), de Philbert Aimé Mbabazi Sharangabo. Ambientados em diferentes localidades — Rio de Janeiro, Londres (Reino Unido) e Musanze (Ruanda) —, essas três obras trazem olhares delicados sobre personagens negros em suas intimidades e investem na conexão entre público e personagem, apresentando formas de luto e caminhos para superação.
Além dos onze filmes caboverdianos no NICHO Novenmbro, outros 22 se agregam na curadoria do Tela d’Pano Terra: Nova Onda Cabo Verde. José-Marcellino fala que “a programação pretende complexificar noções de identidade(s), negritude(s) e africanidade(s) deste lado do Atlântico com nossas próprias realidades, nuances e paradoxos. E dentro disso, nos problematizar também. Sem impor limites na duração, formato, ou género das obras, nossa selecção se centrou em filmes recentes de cineastas nascidos e desenvolvidos artisticamente no pós-independência (1975), uma nova onda cinemática muito focada no cinema documental, no cinema-memória, e no cinema experimental”, finaliza o curador.
Os filmes de Cabo Verde
A mostra cabo-verdiana abre no dia 7 no Goethe-Institut, com duas meias-metragens documentais de narrativas surreais e com personagens memoráveis: “Kmêdeus: Come Deus” (Rotterdam International Film Festival) e “O Plano do Senhor” (“The Master’s Plan”), que observa o quase inacreditável drama que acompanha o desmoronar de uma igreja evangélica na Cidade da Praia, capital de Cabo Verde.
Dia 8 no CCSP, um bloco de curtas retrata vidas crioulas em momentos de questionamento, de tensão entre o cá e o lá, num recorte de über-localismo que é simultaneamente transnacional e universal. Aí se incluem filmes como “Querida Mila” de Denise Fernandes (Festival Internacional de Cinema de Locarno), Yuri Ceuninck (HotDocs Blue Ice Fund) e de Falcão Nhaga (Cinéfondation do Festival de Cinema de Cannes), realizadores que são das maiores promessas do cinema mainstream de recorte cabo-verdiano.
Já no terceiro dia da mostra no CCSP, o programa se centrará em documentários de preservação da memória por via do testemunhos oral, e no resgate da identidade, eixos centrais na criação artística em Cabo Verde. No dia 10 no CCSP, salientam-se duas curtas documentais híbridas e afrofuturistas de Angela Brito, a conhecida designer brasileira-caboverdiana, além de uma reprise de “Kmêdeus” e projecção dorecém-estreado “#4 Mangifera” de Flávia Gusmão. Ambos habitam uma fronteira entre o ficcional, o documental e o performático, numa sessão que levantará inúmeras questões sobre as identidades.
A semana em São Paulo encerra com duas sessões no Goethe-Institut: uma, centrada no cinema sobre Cabo Verde, visto pelo olhar alheio. Aí se integra o premiado “Djon África”, de Filipa Reis e João Miller Guerra (co-produzido pela OII da falecida produtora Samira Pereira), abrindo alas para um debate vigoroso sobre a soberania cultural e as nuances identitárias em Cabo Verde. A última sessão no Goethe-Institut se debruça nas memórias formativas de uma sociedade, explorando os temas das fomes e das secas históricas como fundamentais para compreender a psique cabo-verdiana. Duas diretoras debutantes partilham seus novíssimos trabalhos: Patrícia Silva com o curta “Mãe Pretinha” e a poetisa e diretora Artemisa Ferreira com “Os 47s – Depoimentos do que Ficaram”.
Fora do Nicho Novembro e do Goethe-Institut, a programação da Tela d’Pano-Terra se prolonga ainda por três noites de cinema cabo-verdiano num Off no Cineclube Garaginha do espaço Edith Cultura, em Bragança Paulista. Nesse local alternativo em plena Serrinha se farão reprises de alguns dos melhores filmes mostrados em São Paulo, aos quais acrescem o icónico “Cabralista” de Val Lopes, fechando a programação do Dia Nacional da Consciência Negra com um olhar sobre um dos mais célebres líderes Pan-africanistas, Amílcar Cabral.
Consta ainda “Bianda: Olhando para trás, para frente, percebendo o tempo presente”, uma retrospectiva e ensaio poético sobre a obra do artista pluridisciplinar e intelectual público César Schofield Cardoso, que a editou especificamente para o Tela d’Pano Terra. Nascido em 1973, Schofield Cardoso é o único artista anterior à independência de Cabo Verde presente nessa mostra.
“A obra do César” diz Pedro José-Marcellino, “se radica numa gramática visual bem contemporânea que resume muitos dos aspectos da nossa curadoria e ainda coloca o dedo na ferida aberta que é qualquer exploração profunda da caboverdianidade. Elez faz também a ponte entre os sonhos do Cabo Verde da independência e a realidade sincrética, complexa, inspiradora, às vezes também desapontante do país atual, pós-colonial, quase-esquizofrénico, hiper-conectado e simultaneamente muito insular. Ele é incontornável.”
AfrObliquidades e Outras Transversalidades
A obra de César Schofield Cardoso ficará patente na Casa Lebre, também em Bragança Paulista, integrada na exposição transmídia “AfrObliquidades e Outras Transversalidades”, em que são expostos os videoartes e trabalhos digitais de dez cineastas e artistas multidisciplinares de Cabo Verde e algumas incursões da Guiné Bissau, representadas por peças do ator, artista e diretor Welket Bungué, e de Miguel de Barros, influente sociólogo e pensador, ambos personagens bem conhecidos do público brasileiro.
Estarão ainda em exibição obras físicas e digitais de Angela Brito, designer e artista caboverdiana-brasileira que nessa mesma semana estará brilhando com sua nova coleção nas passarelas da São Paulo Fashion Week. O trabalho da Ângela está representado por seis peças da sua icônica coleção Identidade (2020) em que resgata o pano terra-objecto da sua infância em Assomada, no interior da ilha de Santiago e explora identidades e afrofuturos num desfile virtual lançado no SPFW de 2020, que virou digital devido à pandemia. Essa participação transmídia na Casa Lebre será complementada pelos filmes de Ângela passando também no Edith Cultura, e no CCSP, salão nobre da cidade de São Paulo.
Está previsto que essa exposição imersiva e emocional seja inaugurada com a presença da Primeira Dama de Cabo Verde, S.Exa. Sra. Débora Katisa Carvalho. Pode ser visitada na galeria da Casa Lebre de 17 a 22 de Novembro, de terça a sábado, das 14H às 20H. A mostra das vídeoartes continuará no atelier até 17 de Dezembro.
Transmissão digital
Para permitir que o público consiga assistir ao máximo possível de filmes, serão promovidas duas sessões reprises pela SALA 54 (www.sala54.com.br), plataforma de streaming exclusiva do instituto NICHO 54, que pode ser acessada em qualquer lugar do Brasil e do exterior. As reprises estarão disponíveis por streaming em dois períodos específicos (horário de Brasília): de 8h de segunda-feira
(07/11) até às 14h de terça-feira (08/11), com reprises das sessões presenciais de sexta (04/11) a domingo (06/11); e no domingo (13/11), das 8h às 18h, com as obras projetadas no CCSP entre terça (8/11) e sábado (12/11).
Formação: mão na massa com Laurence Lascary e desmontando o filme com Pedro José-Marcellino
Como parte das atividades de formação do NICHO Novembro o destaque é o workshop “Desenvolvimento de documentários criativos de âmbito internacional”, que acontece entre os dias 8 e 12 de novembro, das 9H às 13H, na sala de aula do IMS. Atendendo a demandas do campo documental e fortalecendo a internacionalização de projetos e carreiras, o workshop é realizado em parceria com o EURODOC, observatório e programa de formação francês que atua em atividades focadas na produção de documentário criativo. Voltada a convidados da comunidade NICHO 54, a atividade será ministrada em inglês e contará com a presença da renomada produtora francesa Laurence Lascary. Lascary que se notabilizou, entre outras produções, pela comédia romântica de 2017, “L’ascension” e é fundadora da produtora De l’Autre Côté du Périph. Os participantes do workshop com Laurence Lascary apresentam os seus projetos a players de mercado durante uma rodada de negócios marcada para o dia 12 de novembro. Pedro José-Marcellino, também ele um premiado documentarista e produtor executivo radicado em Toronto, integrará a mesa de players do setor, auscultando oportunidades de co-produções com Cabo Verde, com Canadá e com a Europa.
O Tela d’Pano Terra: Nova Onda Cabo Verde termina também com um evento exclusivo para a indústria, uma masterclass de desconstrução de filme documental intitulada “Desconstruindo o Documentário ––Desmontando Kmêdeus: Come Deus de Nuno Miranda, Omi Nobu: O Homem Novo de Yuri Ceuninck, #4Mangifera de Flávia Gusmão, Identidade de Ângela Brito e Ulime: Estou Aqui de Tambla Almeida”.
Nessa sessão exclusiva para profissionais do setor, que decorre no Edith Cultura em Bragança Paulista, no dia 21 de Novembro às 18H, José-Marcellino abordará de forma prática o fazer e criar em comunidade, a soberania cultural e as narrativas hiper-locais na produção audiovisual, o financiamento internacional e como esses fundos se evidenciam no ecrã, e ainda o reverse engineering criativo dos filmes propostos.
Apoios
A quarta edição do NICHO Novembro é realizada pelo NICHO 54 e Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, por meio da Spcine, com apoio institucional do Projeto Paradiso, Globo Filmes, Centro Cultural São Paulo e Embaixada Francesa no Brasil. Tem parceria com o Instituto Moreira Salles e o Goethe-Institut. A curadoria Tela d’Pano Terra é realizada pelo Instituto de Cinema Pano Terra e o Baobab Film Collective, contando ainda com um pequeno apoio do NuNaC – Núcleo Nacional de Cinema e do Ministério da Cultura e Indústrias Criativas de Cabo Verde, e uma parceria estratégica com o site BUALA – Cultura Contemporânea Africana.