"Como um gesto de força”, conversa com Catarina Botelho e Sandra Vieira Jürgens
Por ocasião da exposição qualquer coisa de intermédio, teve lugar no Pavilhão Branco - Galerias Municipais, no dia 17 de Janeiro pelas 12 horas, uma conversa com a artista Catarina Botelho e a curadora Sandra Vieira Jürgens.
Pergunto se quando começas um projecto para uma exposição tens uma ideia pré-concebida sobre o que vais fazer? E se, neste projecto, sentiste necessidade de sair da cidade e olhar para outras coisas, como reação anti-turística.
CB: A pergunta que me fiz enquanto habitante da cidade foi: onde se pode respirar? Onde tenho de ir para poder respirar? Desde há três anos que vivo grande parte do tempo em Barcelona, e quando estou em Lisboa fico no centro onde, aliás, já vivia. Em ambas as cidades senti uma certa exaustão: na intensidade da circulação, do consumo, na quantidade de lojas. Ambas as cidades estão a funcionar com base num ritmo acelerado de trabalho e de consumo, de produtividade. Neste momento, oferecem poucas possibilidades de espaços que não sejam os utilitários, de tempos sem objectivos e fins claros. Claro que estou a generalizar, porque o território de uma cidade é sempre desigual.
Esse sistema podia atrair-te. O comércio, a vivência da cidade e os turistas podiam atrair o teu olhar. Mas, pelo contrário, quando sais, estás a recusar o centro e a preferir a periferia.
CB: Eu fui procurar espaços de possibilidades. No início não pensei em sair da cidade, comecei a procurar dentro da malha urbana mas, depois, a minha pergunta levou a que me afastasse cada vez mais e acabei fora de portas, quando a cidade deixa de ser chamada cidade, quando o chão é de terra. Barcelona e Lisboa parecem-me hoje, paradigmas de um sistema neoliberal que explora de forma intensiva espaços e tempos. A crescente densificação que Lisboa está a sofrer é sintoma disso. Zonas anteriormente sem função definida, parecidas com aquelas que fotografei, estão a ser urbanizadas a velocidades antes impensáveis, os passeios ocupados por esplanadas, quiosques, etc. O espaço é rentabilizado de forma intensiva e claro, o centro é o lugar mais saturado.
Porque está tudo muito pré-determinado?
CB: Porque é mais regrado e com funções previamente definidas, mais vigiado. Aquele espaço dificilmente pode ser usado de outro modo e, face àquele entorno, temos dificuldade em usar o tempo de outras maneiras que não sejam as já previstas. Nos lugares que escolho fotografar para esta série, nos terrenos baldios, nos espaços em espera entre a ordem urbana, humana e a vegetal, há uma liberdade diferente. Outro tempo e outro espaço, que permitem outros tipos e construções de vidas, de pensamento, de estares. O que também só é possível porque o espaço não é vigiado. Não quer dizer que não existam espaços que permitam coisas parecidas dentro da cidade, mas parece-me que são cada vez menos, ou mais escondidos.
Interessa-te esse lado de baldio, sem regras, indigente e subversivo? Onde tudo pode acontecer?
CB: São lugares onde muitos dos corpos que não têm lugar na cidade acabam por ir parar. E isso interessa-me, sim. São espaços usados de muitos modos, usos que a cidade construída não permite. Existem hortas informais, ocupadas, muitas mesmo. É visível o trabalho sexual, e noutros sítios, encontros de sexo fortuito. Também há jovens e não tão jovens que, como não têm poder económico para ir aos bares - e em Espanha é proibido beber na rua -, vão para ali fazer uma fogueira, beber, ou então para consumir drogas. E depois, há quem vá apenas caminhar, passear. São, no entanto, espaços maioritariamente ocupados por homens. O espaço público, mesmo nestas margens, ou possivelmente mais ainda nestas margens, é um lugar de homens. No entanto, com a crise da habitação que actualmente vivemos nas cidades, o número de pessoas a viver nesses sítios aumentou. Em Barcelona, há muita gente a viver em tendas. São pessoas que, de alguma forma, foram expulsas da cidade, despejadas, ou que simplesmente não tinham aí lugar. Não foi exatamente isso que fotografei mas, nas minhas caminhadas, fui acompanhando esse crescimento.
É uma cidade marginal, porque já não é possível acontecer no centro, porque este foi higienizado?
CB: Sim, claro, a gentrificação gentrifica tudo, sabemos bem que não são apenas os edifícios. Acho que se seguirmos, por exemplo, a deslocação do trabalho sexual ou do consumo de drogas no espaço público se pode entender como é que a cidade está a ser gentrificada. Em Lisboa, o caso mais óbvio talvez seja o do Intendente.
Após o trabalho campo, como é que escolhes as imagens? Em que medida é que a Sandra está presente nessa escolha? E como é que vocês se relacionaram?
SVJ: Como é que partilhámos o processo?
CB: Acho que foi bastante fácil. Eu tinha já uma seleção de imagens que gostaria de apresentar e que mostrei à Sandra. E a partir daí, acho que nos encontrámos muito bem.
SVJ: Foi algo muito orgânico e natural, compreender o tema que a Catarina estava interessada em explorar. Entendi as questões no sentido em que ela já referiu, ou seja, pelo contacto com outras formas de existência. Mas também, o das pessoas que abandonam a cidade com a preocupação de encontrar outras possibilidades de vida, nem que seja um espaço para reflexão onde se sentem mais confiantes nessa indefinição que o espaço dá. Acho que este projecto também tem a ver com uma experiência muito pessoal de ir à procura destes espaços não normativos.
CB: Claro, e em que medida esse espaço permite novas possibilidades para a tua própria vida.
SVJ: Isso mesmo. O que é que a vivência desse espaço traz para o quotidiano da tua vida. Creio que tem muito a ver com isso. O facto de a Catarina não ter apresentado o trabalho acabado e ter continuado a fotografar, mesmo depois de termos iniciado a colaboração neste projecto, foi um work-in- progress que ocorreu até quase ao último momento. Neste caso foi bom que assim acontecesse, permitiu-nos debruçarmos mais sobre estas problemáticas. Inicialmente, não foi muito confortável, porque gosto de ter as coisas mais definidas mas foi um processo de reflexão mais aberto que resultou muito bem.
CB: Eu também costumo trabalhar com mais tempo. Desta vez o processo estendeu-se. Dei-me mais tempo para me perder, para experimentar, demorei um ano a chegar a estas fotografias e acho que isso foi bom. Até porque o próprio processo o pedia. Fazia longas caminhadas quase todas as manhãs, e a maioria das vezes voltava sem nenhuma fotografia que me agradasse.
SVJ: Primeiro, começámos por olhar só para as imagens, para encontrar um bom grupo e vermos o que fazia sentido. Inicialmente, pensámos num conjunto mais alargado. Só depois começámos a pensar nas fotografias instaladas no espaço. De alguma forma, procurámos adequar, ajustar e pensar no espaço do Pavilhão Branco e tentar ver como é que as fotografias podiam dialogar.
O confronto das fotografias no espaço permite uma montagem não convencional, nomeadamente, no facto de serem fotografias mais baixas do que o que é habitual, outras suspensas, ou ainda, a montra pintada de cal, que cria um distanciamento com o espaço exterior do jardim. Isso foi pensado aqui na galeria ou vinham com uma ideia já estabelecida sobre o que iam fazer?
SVJ: Foi no espaço. Teve a ver com a experiência do corpo que vagueia naqueles espaços fotografados e que também pode vaguear no espaço expositivo. Tomar estas decisões de montagem foi um desafio para mim, porque normalmente prefiro ter já tudo idealizado e uma planificação mais concreta e definitiva.
CB: Também costumo fazer tudo previamente, mas desta vez acho que foi preciso olhar para as fotografias no espaço. Tinha um esquema prévio sobre o qual conversei com a Sandra, estavam definidas as dimensões das fotografias próximas da escala real e também quais seriam as peças suspensas. Mas depois no espaço houve todo um trabalho de adaptação desse projecto.
SVJ: Desse ponto de vista, foi muito interessante ter de lidar com estas questões e indecisões. As relações entre as fotografias e o espaço, só se podiam fazer durante a montagem.
Também porque as próprias imagens pediam uma ideia não convencional de exposição?
SVJ: Sim. Na montagem fomos tentando ir ao encontro daquilo que eram as nossas preocupações, em termos da definição de um espaço onde os vários pormenores e todos os constituintes reforçassem a ideia e não houvesse, digamos, uma dispersão daquilo que era a maneira como nós víamos os dispositivos. A questão da pintura dos vidros e a folha de sala com as notas da Catarina, não estava predefinida, mas num determinado momento passou a fazer sentido. Há pouco, a Catarina falava num projecto que foi evoluindo ao longo do processo e estas decisões foram tomadas muito naturalmente ao longo do tempo.
CB: Sim, primeiro veio a ideia da pintura dos vidros, que tinha proposto à Sandra há já algum tempo, e depois veio a da suspensão de algumas das fotografias. Fomos assim avançando, aos poucos.
SVJ: E, por fim, na última semana, decidimos que fazia sentido oferecer a experiência das notas que a Catarina escreveu durante o trabalho de campo. Achámos que podia ser interessante oferecer mais esta perspectiva aos visitantes.
CB: São ideias que fui pensando e que fui colocando no papel, são notas que fazia quando chegava ao atelier, depois de fotografar. Em relação às imagens - tinha falado sobre isto com a Sandra -, poucas vezes trabalhei com alguém na curadoria que não fosse da fotografia e que escolhesse tão bem imagens. E com a Sandra funcionou mesmo bem.
A fotografia da barricada em fogo é apresentada na sala na qual estão presentes as imagens da cidade. Ao contrário das outras, esta não está à escala real, e apresenta uma acção em movimento. Aquilo está a acontecer no momento em que foi fotografado. Pergunto: o que é aquela imagem enigmática? O que é que ela sugere? Porque foi ali colocada?
CB: Essa foi uma fotografia que fiz durante os protestos em Barcelona, que aconteceram ao mesmo tempo que estava a fotografar esta série. De alguma maneira, esses momentos de barricadas e confrontos, parecem-me respostas a uma certa impotência que sentimos hoje em dia, talvez sobretudo nas cidades, nestes sistemas indisponíveis a construções mais colectivas, que aplicam uma violência silenciosa. Aliás, foram uns meses particularmente acesos, estes últimos, com os protestos no Chile, Equador, Hong Kong, etc. agora com a greve em França, e parece-me que a tendência é para continuar. Pensei essa última sala como uma espécie de chegada à cidade e ao mesmo tempo à revolta contra essa mesma cidade, e a esse mesmo sistema a que esta dá corpo. As barricadas são situações que me interessam particularmente, porque são realmente interrupções no espaço urbano.
Ao contrário de outras imagens que estão na fronteira entre o que é o campo e a cidade, na barricada dá-se um corte quase político. De repente, há um momento e um espaço, um espaço-tempo que se afirma disruptivo, no sentido em que é uma acção desregulada naquele espaço regrado.
CB: Sim, é uma interrupção de uma ordem, um gesto colectivo de revolta, de raiva. O resto das fotografias são propostas de construção do mundo. As barricadas são normalmente construções improvisadas, precárias, feitas com os materiais que se encontram nas proximidades, sejam os contentores, o lixo, as pedras das ruas, ou as cadeiras e mesas de uma universidade. São um tipo de interrupção, de muralha, dos que sentem que não são donos do seu espaço, do seu tempo. A imagem é apresentada junto de outras duas imagens da cidade fechada, dura.
SVJ: E também resistência, pela sua ligação à imagem do vaso partido.
CB: Revolta e resistência. É como se o corpo se apresentasse em frente e dissesse: a partir daqui, não mais. Tal como a planta que lentamente cresce e acaba por partir o vaso que a quer conter. A resistência humana e a resistência vegetal.
O corpo já não se pode conter naquele espaço.
CB: O corpo já não pode ser contido por aquele espaço. Como um gesto de força. As barricadas podem servir para fechar uma escola, cortar uma estrada, ou defender um espaço, mas muitas vezes são actos simbólicos ou de revindicação de espaço. Independentemente do contexto concreto daqueles acontecimentos, aquelas barricadas parecem-me gestos de insurreição, porque não estavam a barricar nada, a não ser quem ali estava, porque estávamos atrás delas a levar com gás e balas de borracha da polícia de intervenção. Mas, no fundo, era um jogo de poder. A quem pertencem as ruas?
SVJ: Em relação à escala da imagem, a intenção foi que existisse um momento de atenção. As imagens têm todas elas muita presença, são mais contemplativas e implicam que haja um afastamento do corpo do espectador para as ver. Naquele caso, tratava-se de não atribuir uma importância que canalizasse o discurso para um certo tipo de narrativa, mas que houvesse uma atenção mais concentrada naquele momento.
CB: Aquela é a única fotografia que funciona como imagem, ao contrário das outras que me parecem esculturas na sua escala e no que mostram, onde através de objectos, materiais, construções, imaginamos os usos que possam ter aqueles lugares. Nesta outra fotografia temos um acontecimento, e por isso é a única que não está à escala real. É também o que a Sandra está a dizer, não queríamos entrar numa lógica mediática, sabemos bem como estas imagens, especialmente com fogo, são tantas vezes espectacularizadas.
SVJ: Mas não é como se fosse uma consequência final. Não se trata aqui de criar um fim da narrativa, mas sim de a deixar sempre como uma possibilidade.
CB: Os corpos e as vidas de quem ocupa os baldios acontecem ao mesmo tempo daqueles outros corpos em revolta. São situações simultâneas. Enquanto uns têm uma proposta de criação, outros há que estão em revolta. Foi assim que pensei a narrativa da exposição. Ambas são, de maneiras muito diferentes, respostas a um sistema político e económico.