“O nosso trabalho é uma balança”, conversa com Benjamin de Burca e Rayne Booth

A conversa com o artista alemão Benjamin de Burca, que colabora em dupla com a artista brasileira Bárbara Wagner, e a curadora irlandesa Rayne Booth da exposição Estás Vendo Coisas, na Galeria da Boavista, teve lugar num café em Santos, no dia 16 de Janeiro pelas 17 horas.

A colaboração com outras pessoas é muito central no vosso trabalho. Pergunto como chegam a essas pessoas e como se sentem confortável com essa colaboração? Há algum momento que podem sentir que estão a usar indevidamente as pessoas? Como é que negoceiam as decisões com os vossos colaboradores?

Benjamin de Burca: É uma boa pergunta para contextualizar o filme Rise (2018). Neste caso contactámos várias pessoas que fazem parte do núcleo do R.I.S.E. - Reaching Intelligent Souls Everywhere e também trabalhámos com dois fotógrafos que documentam as suas acções. Ao percebermos que eles faziam retratos de estúdio para usarem no Instagram, achámos que era uma boa ideia filmar esse processo. Fizemos algumas direcções de cena e adicionámos algum material técnico profissional, como luzes de cinema, nas sessões de fotografia para dar ênfase a essa ideia de retratos documentais. Estas fotografias foram mostradas numa exposição individual do fotógrafo que organizamos posteriormente. Todo este trabalho foi realizado em equipa, porque eles já trabalhavam também em equipa e foi muito confortável nós fazermos parte desse processo. As decisões, nomeadamente de maquiagem ou guarda-roupa, foram tomadas com as próprias personagens e escolhidas através das suas fotografias nas redes sociais, porque se tratava de os representar do modo que mais gostam e que se sentem mais confortáveis.

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Mas vocês escolhem ou pedem?

BB: Contratámos duas pessoas, que também são parte do núcleo do R.I.S.E., para fazerem a maquilhagem e para escolherem as roupas, como elas conhecem bem as personagens é mais fácil. Contudo, os protagonistas sabem muito bem o que querem, porque conhecem melhor o seu próprio estilo. Claro que as pessoas que aparecem nos nossos filmes acabam por ficar nossos amigos durante o processo, por isso todos sentimos mais confortáveis a dar as suas opiniões. As decisões são tomadas entre todos: as duas pessoas que tratam dos figurinos, as personagens que gostam das suas roupas e, por fim, a Bárbara e eu. Em muitos casos, sem a nossa intervenção, eles já têm a roupa que nós gostamos. Na última cena do filme Rise nós não escolhemos a túnica branca da menina. Ela chegou assim e estava perfeito.

E os cenários? E onde as cenas são filmadas? É uma escolha vossa?

BB: Sim. Mas também já aconteceu mudarmos consoante uma ideia ou opinião do personagem que será filmado.

Então o vosso poder está na montagem final do filme?

BB: Geralmente sim. No caso do filme Rise sim, porque fizemos a pós-produção noutra cidade. Foi muito bom neste caso sair do local das filmagens, porque parece que o material fica um pouco mais objectivo. Porém, noutros filmes, durante o trabalho no estúdio de montagem consultámos várias vezes as personagens principais. Mas torna-se difícil, porque existe muita gente a opiniar: o montador, nós e a pessoa que foi filmada. A montagem é um processo complexo. Nós preferimos trabalhar apenas com o montador e não termos os protagonistas presentes. De qualquer forma, as pessoas já sabem de tudo porque nós damos a conhecer o planejamento do filme e durante as filmagens mostramos imediatamente no monitor a cena gravada. No Swinguerra (2019) a Bárbara e eu estamos a ver no monitor algo na cena fora do lugar que nos incomodava. Mas a protagonista Eduarda Lemos tinha uma visão dela muito própria e estava tudo bem. Quando os dançarinos vêem a gravação só se preocupam com a dança e com a coreografia. Eles conseguem ver coisas tão claras que nós não tínhamos visto. Nós achamos a coreografia tão interessante que ficamos maravilhados. 

A coreografia e as músicas são da responsabilidade dos próprios intérpretes?

BB: Sim. Totalmente. No filme Swinguerra a colaboração também passou pela reprodução das músicas que foram dançadas, porque tivemos que refazer as músicas que eles já tinham escolhido através de colagens de sons. Como as letras são muito pesadas e como tivemos que refazer as músicas, podíamos ter decidido retirar partes das letras, mas isso não aconteceu, porque não era possível censurar. Esse é, exactamente, o problema da moralidade que queremos combater e discutir. Claro que também achámos que o filme ficava mais rico e mais corajoso.

Sentem que estão a dar visibilidade a certas umas franjas da sociedade? Sendo artistas privilegiados, o vosso trabalho é uma espécie de mediação entre estas manifestações culturais mais distantes e o público em geral, nomeadamente, da Bienal de Veneza ou São Paulo?

BB: Essa questão da visibilidade é muito interessante, porque na verdade eles são muito conhecidos nas suas páginas das redes sociais. Claro que é uma visibilidade muito localizada e específica entre as pessoas que consomem este tipo de música e esta comunidade artística. Contudo, eles também gostam de abrir novos caminhos de visibilidade. A Bárbara e eu talvez possamos ser outro possível caminho que, apesar de não corresponder exactamente ao que procuram, também lhes interessa e possa ter algum valor. Por exemplo, é muito bonito e engraçado porque as pessoas no grupo de dança passaram agora a seguir a Bienal de Veneza ou a ArtForum ou outras revistas de arte que falam sobre as nossas obras e sobre o trabalho deles. Por vezes vemos comentários na página da ArtForum de pessoas do Recife, onde vivemos, ou de pessoas que entraram nos nossos filmes ou de outras pessoas que os conhecem. Essa questão de visibilidade é muito complexa.

E torna a obra mais interessante?

BB: Sim. Porque não se trata de lhes dar voz. Eles têm voz e sabem como a usar.

Rayne Booth: São dois mundos que se encontram. Muitas vezes isto não acontece no mundo artístico.

BB: Os lugares onde mostramos as nossas obras são muito importantes para nós, porque para além de galerias, museus ou cinemas, gostamos sempre de mostrar no lugar ou na cidade onde foram realizados. No caso do Recife apresentamos sempre no Cinema São Luiz, inserido no festival Janela Internacional de Cinema do Recife, onde convidamos as personagens do filme a estarem presentes na estreia. Claro que ficamos mais nervosos nestas sessões especiais que noutras ocasiões e em qualquer outro lugar. Quando é possível também convidamos as personagens a apresentarem os filmes connosco noutros lugares, como aconteceu, por exemplo, em Locarno, na Suíça, ou para a Bienal de Veneza. Dentro de pouco tempo, e porque a Bárbara e eu estamos na Europa, e como temos um festival de cinema no Brasil a Eduarda vai apresentar o filme Swinguerra. É muito bom poder contar com ela o mais possível. Com o filme Rise levámos o poeta canadiano Randell Adjei para a Cidade do México e, talvez, ele também nos possa nos acompanhar para Berlim.

RB: Algo que acho muito interessante é que as personagens também se apresentam a si próprias nos filmes que eles próprios realizam. No início do filme Rise eles estão a criar os seus próprios vídeos de música. Assim, acho que é muito óbvio que estas pessoas sabem como querem ser representadas e não algo que seja construído contra a sua vontade. Isto foi umas das principais razões de mostrar os dois filmes em conjunto: Rise e Estás Vendo Coisas (2017). Acho que funcionam muito bem juntos.

ESTÁS VENDO COISAS, 2016, 4K, HD, cor, som 5.1, 16'9,16minESTÁS VENDO COISAS, 2016, 4K, HD, cor, som 5.1, 16'9,16min

BB: Eles fazem muitos auto-retratos como artistas através de vídeos e de fotografias nas redes sociais. Nesses seus trabalhos também falam sobre as suas vidas. São objectos muito abertos e têm imensas possibilidades, que contém em si mesmos vários níveis de auto-retratos. Mas quando outras pessoas fazem um retrato é outro negócio mais complexo. Entra-se num contrato entre quem faz o retrato e o retratado. Este contrato é um jogo, uma discussão, um diálogo. Portanto, o retrato que a Bárbara e eu fazemos não é igual nem tenta imitar o auto-retrato que eles próprios fazem. Talvez, o nosso até seja um pouco mais distante, mas não é tão distante que mude de forma. É uma escolha delicada entre a aproximação entre ambos, ou seja, não é tão perto que mostre tudo, mas não é tão distante para ser outra coisa. Fica a meio caminho.

Considerando a actual situação social e política do Brasil, a colaboração que a Bárbara e tu mantêm desde 2012, pode ser uma reacção engajada?

BB: Sim, o nosso trabalho é uma balança entre as nossas posições políticas, separadas e em conjunto. Nós discutimos muito sobre o assunto. Noutro dia, a Bárbara levantou uma questão muito interessante sobre a ordem dos filmes que produzimos. Quando fizemos filme Terremoto Santo (2017) com cantores de gospel evangélico foi muito bem recebido em vários lugares. Mas quando se iniciou a campanha para as presidenciais tornou-se muito polémico, especificamente, no mundo do cinema. No festival de cinema Janela no Recife, que é muito politizado e de esquerda, acusaram-nos de fazer propaganda de direita e do fascismo. E questionaram-nos porque fizemos este filme? E porque quisemos trabalhar com estas pessoas?

RB: Eu entendo a problema, porque existe muita propaganda de direita no Brasil.

BB: Sim, o problema é muito mais complexo.

Mas também vocês não têm interesse em dar uma resposta ao problema.

BB: É muito estranho. Porque nunca tínhamos tido um problema desses ao fazer um filme. Gostámos muito das pessoas com quem trabalhámos. Tivemos muita empatia e foi muito enriquecedor para discutir entre nós sobre toda essa problemática. Mas o que queria dizer à pouco, sobre a discussão entre a Bárbara e eu, é que se trocarmos a ordem dos nossos filmes entre o Swinguerra e o Terremoto Santo, seria completamente diferente. Imagina o que era fazer agora este filme com os cantores de gospel evangélico? E se tivéssemos feito o Swinguerra antes da presença militar no governo brasileiro? O meio do cinema e todas as políticas de esquerda iam achar os filmes muito bons. Acho que muito vezes os artistas não sabem de facto o que estão a fazer e as visões sobre as suas obras podem mudar ao longo do tempo. O que nós tentámos fazer foi responder a uma questão naquele momento e não estivemos preocupados com o tempo sobre aquele tema.

SWINGUERRA, 2019, vídeo 2K, cor, som, 21'SWINGUERRA, 2019, vídeo 2K, cor, som, 21'

Não têm problemas em se fixarem numa ideia ou se estabelecerem naquilo que estão a tratar.

BB: Sim. E os filmes vão-se revelando e, mesmo sendo feitos com equipas profissionais de cinema, nós vamos experimentando. Muitas vezes não há um guião pré-definido, não tem actores, e novas coisas entram no momento em que acontece e temos que reagir de imediato. E sempre deixando em aberto. Nós tomamos um risco, na verdade, e depois vemos se ficou bem.

Quais os novos projectos?

BB: Agora já iniciámos um novo projecto. A Rayne e eu começámos a dialogar há cerca de dois anos atrás quando ela estava a fazer curadoria da Temple Bar Gallery, uma instituição alternativa, em Dublin. Juntos escrevemos um projecto para concorrer a fundos do Arts Council, na Irlanda, e ganhámos verbas para fazer um filme.

RB: Estamos a trabalhar com a música tradicional irlandesa e ainda estamos a colaborar com três instituições. Temos o apoio de um grande festival de música tradicional que acontece todos os anos no verão. Vai ser um grande projecto para todos nós. O Benjamin têm estado a viver na Irlanda os últimos meses. Nas viagens que tem feito pelo interior do país tem encontrado diferentes músicos com quem gostariam de colaborar.

ESTÁS VENDO COISAS, 2016, 4K, HD, cor, som 5.1, 16'9,16minESTÁS VENDO COISAS, 2016, 4K, HD, cor, som 5.1, 16'9,16min

BB: Entretanto adicionámos uma nova parte da pesquisa em Marselha, onde a Bárbara está a actualmente a viver para fazer investigação considerando a influência do norte de África na origem da música irlandesa. É uma música acústica e apenas com voz, sem instrumentos.

RB: É uma música muito tradicional. É um antigo estilo de canto, sem instrumentos, mas é muito popular na Irlanda. As pessoas adoram e é muito conhecido por todos, sobretudo no país rural, em bares e lugares nocturnos. Não se trata de música religiosa que se houve nas igreja, tem um carácter muito mundano.

BB: Nos centros rurais na Irlanda esta música está muito presente nos espaços sociais e faz parte dos encontros entre as pessoas. No filme vamos gravar diferentes cenas em duas casas da aristocracia colonial que foram transformadas em museus. As músicas vão acontecendo com os visitantes dos museus a entrar e começam a ouvir estas músicas que não é um produto destas casas. Mas não sabemos o que vai acontecer. Vai ser uma grande incógnita, como todos os nossos filmes. Também vamos gravar em Marselha no conservatório de música e que antigamente tinha sido uma escola de artes. Mas apesar de ser uma escola de música clássica, a música que se vai ouvir é a tradicional da Irlanda. Por isso acho que vai ser um filme muito complexo. Porque para entender as dinâmicas do colonialismo é necessário aceder a níveis de informação mais complexos e profundos, talvez mesmo sentimentais e emocionais. Contudo, o filme é só isso, pessoas cantando nesses lugares.

RB: É a primeira vez que vão gravar o mesmo filme em dois lugares diferentes.

BB: Sim. Por isso a Bárbara está em Marselha e eu na Irlanda. Esta separação também foi uma escolha nossa para darmos continuidade à experimentação, com novidades e novos riscos. Vai ser complexo para assegurar uma continuidade, porque são dois filmes e duas equipas. Vai ser complicado. Vamos ver como fica.

 

Estás Vendo Coisas, Bárbara Wagner & Benjamin de Burca

Curadoria Rayne Booth I Galeria da Boavista - Galerias Municipais I 17.01 - 12.04.2020

 

por Hugo Dinis
Cara a cara | 13 Fevereiro 2020 | Arte brasileira, Bárbara Wagner, Benjamin de Burca, funk, swing, videoclip