"Instalou-se aqui uma ditadura que ainda continua", entrevista a Justino Pinto de Andrade (parte 1)

“Estou a fazer parte da história, não estou a passar ao lado da história”. Conversa com Justino Pinto de Andrade sobre Mário Pinto de Andrade, as suas memórias e a sua militância política (parte 1/3)

Gravada em Luanda, no dia 17 de fevereiro de 2024.

 

Primo de Mário Pinto de Andrade, Justino Pinto de Andrade participou na luta anticolonial em Angola, tendo sido preso pela PIDE em 1969 e enviado para o campo do Tarrafal, em Cabo Verde, onde ficou até maio de 1974. De regresso a Angola, integrou a facção dissidente conhecida como Revolta Activa, o que o levou a ser preso novamente, desta vez pelo MPLA. Hoje é professor universitário, ativista político e membro eleito da Assembleia Nacional angolana. 

 

ES – Portanto, estou ligando o gravador agora. Você estava falando do comunismo, não? 

JPA – Mas não, vamos lá ver. Naquela altura quem é que apoiava o regime salazarista? Era o mundo capitalista. Portugal pertencia à NATO, Portugal era um dos fundadores da NATO e naquela altura havia mesmo dois blocos, o bloco ocidental e o bloco do Leste, e os movimentos de libertação de uma forma geral, não exclusivamente, mas de uma forma geral, tinham suporte dos países do Leste, União Soviética, China, RDA, Checoslováquia, embora houvesse nos países ocidentais, algumas sensibilidades favoráveis às independências africanas, a Suécia, a França, de uma forma geral, e mesmo a Itália também.

ES – A Itália tinha um partido comunista forte…

JPA – Sim, a Itália tinha um partido comunista forte, a França também tinha um partido comunista forte, a Inglaterra não, não era assim, o comunismo não entrou lá… E então, nós, naquela altura jovens, identificávamos a luta de libertação nacional, com a libertação social. Havia esta mistura, esta simbiose entre a nossa luta de libertação com a libertação social. E, naturalmente quem nos proporcionava ideias mais favoráveis às duas componentes, eram os países do Leste. Portanto, de uma forma geral, os jovens eram marxistas-leninistas, sem o serem. Eram poucos os jovens que tinham realmente formação cultural e política, mas entusiasticamente… Não era o meu caso, eu já lia muito, eu tinha uma família já com formação, o debate político em minha casa fazia parte da ordem do dia, a história da minha família era longa. Mas de uma forma geral, os jovens que não tinham esta trajetória, infelizmente, aderiam mais por entusiasmo do que por convicção. Não entendiam nada daquilo. É marxista-leninista porque é contra o colono e acabou! Ficava resumido a isso, é verdade.

Até porque, se nos recordarmos, tínhamos três movimentos de libertação. Um deles era apoiado pelos Estados Unidos, a FNLA, o outro era apoiado pela China, a UNITA. O MPLA era apoiado pelo bloco do Leste, mas sobretudo a parte europeia: a União Soviética, e a própria China. 

 

ES – E Cuba depois.

JPA – E Cuba, mas Cuba era um peão, usado pelo bloco do Leste. Era carne para canhão. De facto, o comando era soviético. E portanto os jovens, entusiasticamente assumiam o marxismo como um instrumento de luta, não só para a libertação nacional, mas também para a libertação social. E a PIDE bruta, burra, via sempre fantasmas. Qualquer independentista, era um comunista. Era assim, resumindo. Até porque o Salazar era extremamente reacionário, conservador até não poder mais, era a concepção religiosa da sociedade, do estado. Havia ali uma ligação entre o poder temporal e o poder espiritual da igreja. E portanto existiu esse confronto com a potência colonial. De certa forma, foi um factor de mobilização para nós, porque era mais fácil mobilizar assim. Aquele era o inimigo e quem está do nosso lado são os nossos companheiros… Portanto, não tínhamos que dar muitas explicações. 

É evidente que hoje, fazendo um replay, eu vejo que de facto, de certa forma isto também prejudicou um pouco. E porquê? Porque muitos daqueles que pegaram em armas para lutar pela independência não tinham qualquer ideia de emancipação social. Muitos deles queriam ser os novos opressores, e veja o que deu. Mas pronto, era assim. Eu percebi isso muito cedo, que estava ao lado de futuros opressores. Não tinha dúvidas.

 

ES – Isso quando? Já no Tarrafal, ou ainda antes, aqui em Luanda?

JPA – Ainda aqui em Luanda. Eu percebi. Tinha 21 anos, estudante universitário e era uma pessoa de leituras. E percebi que o futuro não ia ser tão risonho como as pinturas iniciais apresentavam. E acertei. Que é que aconteceu depois? Instalou-se aqui uma ditadura que ainda continua. Instalou-se aqui uma ditadura que confunde as pessoas. Felizmente já está a surgir uma outra geração, mais jovem que já tem mais capacidade de análise, porque tem mais informação. Não tem aquilo que nós tínhamos no tempo colonial, nós tínhamos livros. O que nos formava eram os livros.

ES – Quais livros, por exemplo?

JPA – Muitos livros. 

ES – Mas só ensaios, ou também literatura?

JPA – Literatura, ensaios, nós líamos muito. Até porque havia aqui em Luanda algumas livrarias que nos forneciam material que não era oficial. Por trás. Na Lello, a grande livraria de Luanda, um dos responsáveis da Lello tinha sempre uma reserva de livros proibidos que passava para as pessoas de confiança. Havia também uma outra livraria, o Centro do Livro Brasileiro, em que o responsável também era uma pessoa… Havia duas ou três livrarias muito interessantes. E nós, engajados, tínhamos acesso a todo o tipo de livros. Porque havia livros que a censura não permitia que fossem comercializados. E depois tínhamos canais clandestinos também, para fazer chegar livros aqui. Vinham de Lisboa, por exemplo. Tínhamos também articulação com pessoas ligadas à TAP, o transporte aéreo português, hospedeiras, que também transportavam coisas que faziam chegar aqui. Havia aqui redes clandestinas, que funcionavam e muito bem. Nós embora muito jovens, conseguimos criar redes clandestinas, conseguíamos escapar ao controlo, na medida do possível. Ao controlo da PIDE.

Campo do Tarrafal, Santiago, Cabo Verde, foto de Elisa ScaraggiCampo do Tarrafal, Santiago, Cabo Verde, foto de Elisa Scaraggi

ES – Você começou a fazer política antes da instalação da PIDE em Luanda?

JPA – Não. A PIDE instalou-se em Angola em 57. Eu tinha 9 anos. A PIDE instalou-se em 57. É evidente que quando se instalou, pouco depois fez as primeiras vítimas. Em 59 prendeu um conjunto de angolanos. Foi o grande ensaio da PIDE, em 59. Depois foi em 60, até chegar à minha geração e depois da minha geração também. Porque depois da minha geração, nós somos presos em 69, continua a haver prisões, cada vez em número maior. Porque a PIDE a certa altura perdeu o controlo. Para eles, todos eram revolucionários. E então enchiam, faziam rusgas na cidade! E confundiam inclusivamente vadios com políticos, metiam todos lá nos campos. Quando vim do Tarrafal encontrei indivíduos que vinham do campo de São Nicolau, e não tinham nada a ver com política. Alguns eram lumpen, vadios. Mas a PIDE prendeu todos e depois ganharam estatuto de presos políticos. Mas não eram presos políticos. É um período um pouco complicado… Mas também do meu ponto de vista foi um período muito bom, para mim, como cidadão. Porque foi um período de grande engajamento, com convicção. 

ES – E esperança talvez…

JPA – E esperança. E sobretudo o que me animava era… Nós tínhamos angolanos que foram para o exterior, exilaram-se, viviam fora, andaram pelo mundo. Se nós perdêssemos a guerra, eles não vinham, eles não podiam voltar. E o meu pensamento era: eles têm de voltar. Nós não podemos perder essa nossa batalha, senão os nossos irmãos não voltam. E isso animou-me muito na luta anticolonial. Era a sensação de que uma derrota nossa, remeteria para uma vida completa fora do país, de pessoas ligadas a nós, dos nossos familiares, ao Mário por exemplo.

ES – Você não conheceu o Mário, antes? Ele já tinha saído?

JPA – Não… o Mário saiu daqui quando eu nasci.

ES – Qual era a relação de parentesco entre vocês?

JPA – O meu pai e o pai do Mário eram irmãos.

ES – Ah, então são primos?

JPA – Primos em primeiro grau. Mas o Mário naquele tempo tinha 20 anos e o Mário sai daqui, quando eu nasço.

ES – 48…

JPA – 48. Eu devia ter 6 meses. Mas é engraçado que fomos crescendo, fomos percebendo as coisas, tomando consciência de que havia uma luta… A minha consciência da luta começa muito cedo, porque eu com 11 anos, assisti praticamente às primeiras prisões. Algumas dessas pessoas são pessoas ligadas a nós, familiares nossos, amigos da nossa família e aquilo mexeu logo comigo. Tomei consciência de que havia ali um problema. Embora a potência colonial procurasse passar uma ideia de que era todo um Portugal, do Minho a Timor, sem distinções de raça, de credo, aquela história… Eu por acaso, em termos de raça devo dizer que não tenho recordações negativas, de segregação racial para mim. Não tenho.

ES – Já era um período em que eles tentavam suavizar…

JPA – Já… andei nas mesmas escolas, e os nossos amigos, fazíamos uma vida sem qualquer problema, pelo menos na minha geração e nas escolas onde andei, não havia separação. Mas havia ainda resquícios de um passado. E porque é que eu digo isso? Porque me recordo, que quando eu vou para a terceira classe, eu entro na sala, no primeiro dia de aulas, e sento-me na primeira fila, porque estava habituado a sentar-me na primeira fila. Sento-me na primeira fila e noto que, na primeira fila, eram só brancos e que os mais escuros estavam lá no fundo. E há um qualquer que me diz: ó Justino, o teu lugar não é aí, vem para aqui]. E eu: o meu lugar? O meu lugar é aqui. Nãããoo… E eu percebi, estão a dar uma conotação rácica à posição dos alunos na sala. Mas eu fiquei no meu lugar e ninguém me perturbou. E fiquei sempre na primeira fila. Portanto, não era discriminado na escola. Não tenho razões de queixa de qualquer injustiça na avaliação dos conhecimentos, antes pelo contrário. Eu até era acarinhado pelos professores, os professores eram brancos. É evidente que eu tinha uma vantagem que era a minha família, a minha classe social. Embora não fosse endinheirado, o nosso poder era um poder intelectual. E isso favorecia.

ES – O seu pai também fazia parte da Liga Nacional Africana?

JPA – O meu tio, pai do Mário, é que era um dos fundador da Liga. O meu pai não, porque o meu pai morreu muito cedo. Mas eu não tenho queixas pessoais, de alguma discriminação pessoal. Embora eu compreenda e tenha percebido que havia discriminação na sociedade, que havia diferenciação. A Baixa era dos brancos e os não brancos em princípio, eram dos bairros, da periferia. Embora houvesse também aqui alguns não brancos. A minha família vivia aqui, nas Ingombotas. A minha família originariamente vivia na Baixa. Não tenho esses traumas de infância porque vivi uma vida normal. Mas compreendia aquilo que se passava na sociedade. Eu recordo-me… (risos) Há uma cena que nunca me esqueço: um dia quando vou para a escola, geralmente ao sábado, havia um período de meia hora, de intervalo como chamávamos, e nós jogávamos à bola. E eu recordo-me de sairmos para o intervalo e alguns colegas nossos com uma bola, dizer vamos jogar branco contra preto. E começaram a fazer as escolhas, tu deste lado, tu daquele. E tu? Eu jogo deste lado aqui. E era o lado dos brancos. Eh pá! Mas tu não és desses. Quem te disse que não sou desses? Eu não sou desses, não sou vosso, não sou nada, somos todos colegas de escola. Não vamos fazer um jogo de brancos contra pretos. E pronto, percebi que naquela altura já havia… Eu era miúdo, mas a vida não era assim tão linear, como eu a tinha vivido até então. Mas mesmo assim, na minha trajectória de estudante nunca fui discriminado.

ES – Você era estudante de medicina aqui, ou foi para Portugal?

JPA – Não, não. Na altura já havia uma universidade aqui. E não tive problemas nenhuns. Era um bom aluno, quando tinha boas notas eram realmente boas, eu nunca fui mau aluno.

ES – Depois você desistiu da medicina?

JPA – Não, não desisti… Quando vim do Tarrafal, percebi que a minha vida não dava para ficar fechado num hospital. Percebi. Bom, se eu tivesse continuado, não tivesse sido preso e deportado, eu faria medicina e hoje era médico. Seria médico já reformado. Mas pensei, a partir de agora a minha vida vai ser mais ligada às questões da sociedade do que dentro de um hospital a tratar doentes. Não posso conciliar a minha condição de médico com a sociedade onde estou inserido e onde há uma luta a travar. 

Então quando regressei fui até à minha faculdade, os meus professores receberam-me muito carinhosamente, saudaram o meu regresso e ainda fiquei uns tempos lá a frequentar as instalações da faculdade. Mas senti que já não dava. Então resolvi mudar. E fui para Economia. Fui para Economia e formei-me em Economia. E depois ainda fui estudar Direito, também estudei Direito…Percebi que para mim, a área social era mais apelativa. Porque dentro do hospital, não dava. Eu não queria repetir aquela estória do hospital, porque enquanto estudante a nossa vida era instalações da universidade e hospital. Já não dava. Fiz um adeus aos meus colegas e meus professores e vim para a rua.

 

ES – E não se arrependeu?

JPA – Não. Não me arrependi. Acho que tenho um compromisso social, como cidadão. E quero intervir. Intervir sempre que achar que posso intervir positivamente. E depois disso tive outras situações complicadas (risos) Estive preso já depois…

ES – Vamos falar disso depois. (risos) Então, na família falava-se do Mário, quando ele estava fora, falava-se dele? 

JPA – Falava-se. 

ES – Em que termos? E do Joaquim também?

JPA – Fomos para Cabinda quando éramos miúdos, o meu pai morreu em Cabinda e então, quando o Mário foi para Portugal, não tinha bolsa de estudo, e o meu pai era um dos tios que contribuía para a manutenção do sobrinho em Portugal. E eu recordo-me, quando o Mário sai e depois vai para a França, a minha mãe e o meu pai dizerem: o Mário fugiu. Isso foi um facto que registei e eu tinha na altura 6 anos. Registei: o Mário fugiu. Foi o que aconteceu. E o Joaquim também. O Joaquim era uma figura mais próxima, porque ele veio para cá, depois de Roma.

ES – Então você conviveu com ele aqui? 

JPA – Convivi, com o Joaquim convivemos até ele ser preso. Depois ficámos 14 anos sem nos vermos. Com o Mário ficámos 20 anos sem nos vermos, porque nunca nos tínhamos visto. Ele viu-me, pequeno com 6 meses! Mas eu me lembrava do Mário. E então depois encontrámo-nos na Zâmbia. Com o Joaquim encontramo-nos no Congo. Quando saímos daqui para o Congo, o Joaquim saiu de Portugal também para o Congo e encontrámo-nos em Brazzaville.

ES – Quando saiu do Tarrafal veio para Luanda, ou foi para o Congo?

JPA – Vim para Luanda e depois para o Congo.

ES – E chegou aqui como? De barco?

JPA – De avião. Do Tarrafal? De avião. Um avião especial pelo governo de Angola. O Movimento das Forças Armadas é que fez esta cortesia de fazer regressar os presos de avião. Quando fui, fui de barco.

ES – E voltou com o Cardoso?

JPA – Não… Há aqui um equívoco histórico… Eu não voltei com o António Cardoso, sabe porquê? Porque o António Cardoso ficou lá mais uns dias… O Cardoso não veio connosco. Saímos juntos da cadeia. Vimo-nos na cidade da Praia. Eu vejo o Cardoso a passar, um adeusinho, com as barbas dele e tal (risos). Quando cheguei a Luanda, os pais do Cardoso pensaram que o filho também tinha vindo connosco. E foram até à Casa da Reclusão, onde nós fomos colocados e os pais do Cardoso foram ter comigo e com o meu irmão Vicente. Ah, nós viemos buscar o Cardoso, mas não o estamos a ver, os velhinhos coitaditos… O seu filho deixámos na Praia, ficou lá.

ES – Ele tinha uma namorada?

JPA – Não era bem namorada dele. Era uma miúda que ele conheceu, quando ele estava na cadeia, essa miúda ia com a mãe ao campo, a mãe ia vender banana, ou outra coisa qualquer, e eu penso que o Cardoso brincava com a miudinha: um dia vais casar comigo (risos). E a miúda cresceu, ficámos tantos anos na cadeia… Quando ele sai, a miúda já é uma mulher e é essa miúda que depois se torna mulher do Cardoso. Veio depois e já veio com ela.

ES – Ah ele veio com ela?

JPA – Ela já tinha um filho. Ele veio com o miúdo como se fosse filho dele. Mas o Cardoso não veio no mesmo avião que eu. Ficou lá perdido na cidade da Praia (risos). Andava à procura da miudita e encontrou uma mulher (risos). Mas foi uma fase bonita da minha vida…

ES – Bonita?

JPA – Bonita sim.

ES – A volta, ou a estadia…?

JPA – Tudo o que eu vivi, até mesmo aquelas situações mais difíceis, mais violentas … Mas foi bom, foi uma vida preenchida…

ES – Engraçado, o Luandino Vieira também diz que foram os anos melhores da vida dele.

JPA – É isso. Porque foi uma vida preenchida… Vamos lá a ver, não fiquei fora do mundo, fiz parte da história.

ES – Tinha essa consciência?

JPA – Sim. Estou a fazer parte da história, não estou a passar ao lado da história. Estou a fazer parte da história, com erros ou coisas bem feitas, mas estou a fazer parte da história. E esta sensação de fazer parte da história, para mim é muito importante, mesmo depois quando voltei a ser preso e essas coisas todas, fiz sempre parte da história. Mesmo hoje, faço parte da história. Continuo a agir em sociedade, politicamente, tanto como professor universitário, como cidadão, mas eu ajo, ajo. Estou preocupado com o futuro da humanidade, com o ambiente, com as novas questões, com os novos desafios da sociedade. Daí surgirem partidos políticos que já não são aqueles partidos clássicos, tipo o Partido Comunista português. Isso já está ultrapassado. Hoje temos outras forças políticas mais modernas, adequadas ao momento que se vive, à dinâmica da sociedade. E eu acho que isso é muito importante para mim. Não me arrependo de nada. E se tivesse que repetir a minha vida eu tinha feito as mesmas coisas, com as mesmas consequências. Eu tenho muita coisa escrita sobre esta fase da vida.

ES – Publicado, ou não?

JPA – Ainda não.

ES – Ok, mas pretende publicar…

JPA – Pretendo. Mas eu acho que tenho vivido uma vida plena, cheia de desafios. Uma vida sem desafios não vale a pena. No dia em que eu me demitir da sociedade, começo a desaparecer. Não é à toa que quando venho para aqui [um café em Luanda], escrevo. Faço a minha vida sempre assim. Tenho três computadores: um na universidade, um na Assembleia e este. Estou sempre em contacto com o mundo. Sempre a aprender coisas. Todos os dias evoluo, todos os dias procuro… Sabe o que eu pesquisei há dois dias? Os ninhos das rolas. Os pássaros.

ES – Porquê? Como se interessou por isso?

JPA – Sim, porque gosto muito da natureza. Então como é que fazem os ninhos, como alimentam as crias, quanto tempo de vida útil tem este tipo de pássaro. Eu gosto muito da natureza e no dia em que eu me desligar desses meus interesses, então começarei a falecer. E é bom que faleça. Ninguém vai ficar aqui, vamos todos para o céu. Senão o mundo não tinha espaço para toda a gente, não é? Se não falecêssemos, a certa altura a humanidade extinguia-se. Porque os velhos não fazem filhos. Portanto ia aumentar, aumentar, aumentava e a certa altura, já não morria ninguém, então haveria mais velhos do que novos e a sociedade, a humanidade, desaparecia. Por isso nós temos de encarar a nossa vida com um princípio e um fim. Não é a concepção religiosa, que não tenho concepção religiosa nenhuma. Mas é verdade, a morte ajuda a humanidade a manter-se. É evidente que a longevidade também permite que as pessoas vivam mais tempo, usufruam mais tempo de actividade, mas no fim têm de desaparecer. Agora, é preciso saber desaparecer, deixando ordem, participando na sociedade, fazendo parte da história. Assim vale a pena.

[Texto editado de acordo com o entrevistado]

por Elisa Scaraggi
Cara a cara | 7 Janeiro 2025 | Justino Pinto de Andrade, Mário Pinto de Andrade, Tarrafal