Conversa com Justino Pinto de Andrade sobre Mário Pinto de Andrade, memórias e militância política (parte 2/3)

“O projecto da Revolta Activa era um projecto de unidade”

Gravada em Luanda, no dia 17 de fevereiro de 2024.

 

ES – Então você regressou a Luanda do Tarrafal em Maio de 1974?

JPA – No dia 4. 

ES – No dia 4?

JPA – Saímos de lá dia 1 e chegámos dia 4. 

ES – E dia 11 é lançado o apelo da Revolta Activa?

JPA – Sim.

ES – E você já sabia disso? Já estava a par das coisas?

JPA – Não sabia, mas imaginava que alguma coisa se estava a passar. No campo nós não tínhamos informação profunda sobre o que acontecia na luta, mas percebíamos que alguma coisa se estava a passar, de negativo. Que a nossa luta estava a sofrer alguns desaires. Portanto, que os portugueses estavam a conquistar espaço e que os movimentos de libertação estavam a ficar cada vez mais fracos. Percebíamos também que havia dentro do MPLA, alguma coisa. Não explicitamente nas cartas, mas percebia-se implicitamente, porque as cartas eram censuradas…

ES – Que havia conflitos.

JPA – Que havia conflitos. Depois chegámos. Eu ainda fui para o Huambo. Fui para o Huambo porquê? Porque eu já não estava interessado em fazer medicina, vou experimentar fazer outra coisa qualquer. Então fui para o Huambo para fazer agronomia. Fui, apresentei-me na faculdade, fui muito bem recebido, mas senti que a agronomia não era para mim. Depois da medicina, aquilo ali era outro exílio. Não um exílio dentro do hospital, mas um exílio no campo. Porque a minha agronomia era campo. E então recebo a notícia de que tinha sido lançado o apelo em Brazzaville. E veio o apelo. Tinha de vir para Luanda. Disse ao meu irmão Vicente: eh pá está-se a passar alguma coisa lá fora e temos de saber o que se passa. Temos que ir. Vamos lá para fora e saber o que se passa, porque é o nosso Movimento. Não podemos ficar à margem do que se passa no nosso Movimento. E eu e o Vicente fomos aqui à Fortaleza, onde estava o Movimento das Forças Armadas, o MFA.

Então fomos lá e fomos recebidos pelo general Tomé Pinto, na altura coronel, que nos recebeu bem. Era português, do MFA. Recebeu-nos bem, ele sabia que nós existíamos, ele estava cá em Angola e sabia que uns Pinto de Andrade rebeldes tinham regressado. Recebeu-nos muito bem e nós explicámos ao General Tomé Pinto, na altura coronel, que tínhamos a obrigação de ir saber junto dos nossos camaradas, o que é que se passava. Não bastava só ver papéis e ouvir coisas. Não, vamos lá fora. E o coronel Tomé Pinto, simpático, disse-nos: é assim, ainda não há cessar-fogo nenhum, mas eu posso facilitar a vossa ida. Porque também tenho interesse em que vocês vão, para dizer ao Presidente Neto que aquilo que está a acontecer não é correcto. E era o quê? As Forças Armadas portuguesas não queriam combater mais e o MPLA andava ali a fazer emboscadas e ataques, já fora de época. E então, o coronel Tomé Pinto disse-nos que seria difícil controlar a tropa portuguesa, quando está a ser atacada e já percebeu que acabou, que o sistema colonial vai acabar, e portanto não faz sentido morrer agora. Então, disse-nos que iria entrar em contacto com o chefe de estado maior e comandante militar em Cabinda, o Major Pimentel, informando-o que nós íamos chegar a Cabinda e que queríamos ir para o Congo, para facilitar a nossa passagem na fronteira. E foi o que aconteceu. 

Chegámos a Cabinda, fomos ao Comando das Forças Armadas portuguesas, apresentámo-nos: Justino e Vicente Pinto de Andrade, membros do MPLA. Ele disse: sim, já recebi informação do coronel Tomé Pinto, de que vocês vinham e para facilitar a vossa passagem pela fronteira. E agradecia, tal como ele vos disse, que dissessem aos líderes do Movimento que não vale a pena continuarmos a perder gente. Já que a tropa portuguesa está acantonada e não quer lutar, vocês também não vale a pena fazerem emboscadas a quem não quer lutar. Nós concordámos com isso. Eu também concordo com isso. Se já não queremos lutar e queremos encontrar uma solução por via negocial, não temos de estar aqui a matar-nos uns aos outros. E chegámos à fronteira e já estavam à nossa espera. Fomos num carro, em Lândana e chegámos à fronteira. A tropa portuguesa tratou-nos com cortesia. Justino, Vicente Pinto de Andrade? São do MPLA? Sim somos. Temos aqui uma instrução do Major Pimentel para os senhores poderem passar para o Congo, sem qualquer obstáculo. E assim passámos. Cheguei ao Congo, a Ponta Negra, eu e o Vicente, e percebi que havia ali um deficit grande, da parte de alguns responsáveis locais do MPLA. Não só um deficit, mas também já uma certa animosidade em relação a nós dois. “Os intelectuais”, era assim que nos trataram. Nós percebemos, bom, estamos mal. “Nós sabemos camaradas que como vocês, como são intelectuais, seguramente vão…”

ES – O seu irmão tinha estudado o quê?

JPA – Economia. 

ES – Economia também.

JPA – Sim. “Como vocês são intelectuais, nós sabemos que vocês não vão estar do lado do Camarada Neto.” Mas quem é que lhe disse que nós não vamos estar do lado do Camarada Neto? Como é que você já intuiu isso? Nós estamos aqui….

ES – Vocês ainda não tinham assinado o Apelo, não tinham aderido oficialmente à Revolta Activa?

JPA – Não, nada, nada, estávamos de saída, mas eles já estavam desconfiados. Eu disse ao meu irmão: Vicente olha, estamos em risco. Estes gajos não gostam de nós. Significa que as coisas lá do outro lado estão pior ainda. Então depois, fomos para Brazzaville. E fomos à delegação do MPLA, à sede, ao Bureau do MPLA. E apresentámo-nos. Disseram ah tal e tal. O camarada Lara depois veio ter connosco depois, comigo e com o Vicente, passámos uma tarde juntos a conversar, na varanda da casa onde nós estávamos. Quando o Lara abriu-se connosco, nós abrimo-nos um bocado com o Lara, um bocado… Não sabíamos o que é que cada um estava a guardar, mas percebemos que o conflito era grave. Mas o Lara teve a cortesia de nos levar depois ao Joaquim. O Joaquim tinha acabado de chegar também. Era hóspede do Presidente congolês que lhe arranjou uma casa da presidência. Então o Lara levou-nos à casa do Joaquim, e disse-nos: seguramente vocês vão encontrar lá os da Revolta Activa: Gentil Viana, e tais e tais. Bem, chegámos lá, eu já não via o Joaquim há 14 anos, desde que o Joaquim tinha sido preso. A última vez que tinha visto o Joaquim, foi em 1960, tinha 14 anos, se não me engano. Encontrei o Gentil, encontrei o Adolfo, encontrei o Monimambo, a Maria do Céu, o Videira, a Amélia Mingas…

ES – Alguns desses militantes você já conhecia de antes?

JPA – Não, vamos lá ver. O Gentil é meu primo também, da parte da minha mãe. Mas eu não conhecia o Gentil. Sabia que era meu primo, o primo Gentil, tipo o Mário. Mas a Amélia Mingas eu conhecia. 

ES – Da faculdade?

JPA – Não, mesmo daqui de Luanda, antes de ela ir para Portugal estudar. Ela ainda conviveu aqui. E outros, conhecia só os nomes, o Paiva, o Videira, o Adolfo Maria, o Monimambo, Maria do Céu Carmo Reis, o Vieira Lopes, intelectuais… E pedimos que eles nos explicassem o que se passava, já que tínhamos estado a falar com o Lara. Ouvimos o Lara e vamos ouvir também a vossa explicação. E queremos dizer-vos que estamos instalados em instalações do Neto. Estamos lá sob a alçada da direção. Não temos conhecimento de nada. Viemos ouvir o que se passa. E então, eles lá foram explicando os problemas, e tal e tal… Tudo bem, então vamos regressar ao sítio onde estamos. E regressámos para a casa onde estávamos instalados. Era uma casa sob tutela do Neto.

ES – E o Presidente Neto estava lá?

JPA – Não, ele estava na Tanzânia.

ES – E vocês já se conheciam, já tinham se encontrado?

JPA – Com o Neto? Não. O Neto esteve muito pouco tempo cá. Ele veio em 60, esteve aqui o máximo cinco, seis meses e foi preso. Foi preso com o Joaquim. O Neto foi preso em 60. Ele esteve cá pouco tempo. Eu tinha ouvido falar do Neto, que tinha um consultório médico, nunca tinha visto o Neto pessoalmente.

O que é que nós sentimos depois? Lá na casa onde estávamos hospedados, em relação a nós, era pouco cordial. Sentíamos que eles não gostavam desses intelectuais, faziam-lhes uma certa confusão na cabeça. 

ES – E quem era considerado um “intelectual”?

JPA – Um indivíduo que estudou, andou na universidade, que leu muitos livros…

ES – Era uma definição muito ampla.

JPA – Muito ampla.

ES – E você e o seu irmão, mesmo tendo passado pela prisão… Não tinham esse prestígio, essa legitimidade política de ter passado pela prisão?

JPA – Tínhamos… e tenho até hoje. Acho que tenho até hoje.

ES – Digo, naquele momento…

JPA – Naquele momento, eu acho que tínhamos. Só que o clima era tão desagradável, a desconfiança entre as partes era tão grande, avizinhava-se o princípio da independência e então as linhas separaram-se: os dissidentes de um lado e do outro lado, os outros. A agressividade era verbal, pelo menos. E era esse o clima que nós encontrámos. Eu e o meu irmão…

ES – O seu irmão é mais velho, ou mais novo?

JPA – Mais novo. Tomámos a decisão de sair daquela casa, porque sentíamos que podia acontecer alguma coisa de negativo. Porque ouvimos conversas e eles não sabiam que estávamos a ouvir. Disse ao Vicente: eh pá, é melhor sairmos daqui, senão um dia quando dermos conta, já fomos… Como o Navalny agora… Tive essa sensação de que a animosidade era muito grande. Então comunicámos a nossa partida, que íamos sair e que íamos aderir à Revolta Activa e fazer tudo por tudo para fazer cumprir o projecto da Revolta Activa, que era um projecto de unidade. 

As pessoas não sabem, que a Revolta Activa, entre muitas coisas, que uma das razões porque surge o projecto da Revolta Activa, ao contrário do que se possa pensar, era para unir, não para dividir. Porquê? Porque o conflito entre o Neto e o Chipenda estava tão violento – houve fuzilamentos – estava tão violento, tão violento, que era preciso uma força de interposição para fazer a articulação entre os dois pólos antagónicos. E a Revolta Activa, surge, entre outras razões, com intenção de conciliar, conciliar as partes que estavam em conflito, mas conflito sério. E eu concordei, eu e o meu irmão concordámos com esta visão. Temos de ir para a Independência com unidade. Não podemos deixar cá fora, uma parte. As coisas entre o Neto e o Chipenda estavam de tal forma, que uma parte tinha de ficar fora. Então aderimos à Revolta Activa. Aderimos à Revolta Activa, e assumimos a responsabilidade de vir esclarecer em Luanda o que se estava a passar lá fora. E eu e o meu irmão viemos, e fizemos sessões de esclarecimento, em minha casa, em nossa casa. As pessoas apareciam, camaradas nossos…

 

ES – Isso foi em que mês, Junho, Julho?

JPA – Por aí …

ES – Antes do Congresso? 

JPA – Antes do Congresso. O Congresso é em Agosto. Então fizemos sessões de esclarecimento. Arriscámos. De tal modo que os da facção Neto disseminaram panfletos acusatórios contra nós. 

ES – Eu encontrei estes panfletos no arquivo do Mário.

JPA – Sim sim, está lá no arquivo do Mário.

ES – Você já conhece? Porque eu trouxe o computador para mostrar.

JPA – Pode mostrar. Eu vi isso também. Mas este Mário era incrível. Como é que o Mário conseguiu guardar este panfleto? Nem nós guardámos. 

ES – Ele guardou muita coisa. 

JPA – Ele guardou muita coisa! E nunca nos disse que tinha esse panfleto. (risos)

ES – Encontrei dois [panfletos acusatórios contra a Revolta Activa] no arquivo do Mário… E um, encontrei nos arquivos da PIDE. Esse é o recorte de um jornal, é um esclarecimento assinado por você, pelo Adolfo [Maria], pelo Liceu [Vieira Dias]…

JPA – Pelo Liceu. Isto é História. Manda-me depois. Eu vou explicar porquê que eu fiz aquilo: isto é uma história interessante. Este comunicado tem uma história interessante… 

ES – … e pela Maria do Céu [Carmo Reis].

JPA – E a Maria do Céu. Éramos os quatro que estávamos cá dentro, a representar naquela altura, a Revolta Activa. Isto faz parte da minha história. Mas isto estava nos arquivos da PIDE? Como é que a PIDE…? Pois, naquela altura a PIDE ainda estava por aqui.

ES – Ainda estava por aqui.

JPA – Acho que o título era “Revolta Activa e MPLA”, é isso?

ES – São dois panfletos. Então esse é o da PIDE: “Esclarecimento da Revolta Activa”.

JPA – Pois é, é isso. (risos)

ES – 31 de Dezembro, está assim datada, no fim. 

JPA – Manda-me isto no final. Eh pá, isto faz parte… “Circula em Luanda um panfleto da JMPLA – já não me lembrava que era da JMPLA – em que se afirma que a Revolta Activa pretende abrir um escritório em seu nome…”. Manda-me isto faz favor. E o outro qual é?

ES – Sim, sim, mando. E o outro… Tem esse… Bom, não está assinado. 

JPA – “Atenção Povo Angolano”. Eles lançaram isto, lançaram em Luanda, lançaram em Malanje, em várias cidades, a acusar a mim, pois, eu e o Vicente. 

ES – Os irmãos Andrade, Vicente e Justino.

JPA – “…estes elementos vindos recentemente de Brazzaville, andam em Luanda a querer…” Era o que estava a explicar, era necessário esclarecer, esclarecer as pessoas sobre o que se estava a passar lá fora.

ES – Também diz que estão fazendo “tudo em favor do seu tio”, Mário Pinto de Andrade.

JPA - Não era nada. O Mário nem aceitava. Nem tinha motivo. O Mário não queria ser presidente.

ES – E depois tem esse… Aqui diz que os autores do panfleto, do apelo, são vocês.

JPA – (risos) Bom… Não é Apelo. O Apelo dos 19?

ES – Os autores do panfleto…

JPA – A esclarecer? De esclarecimento? 

ES – De esclarecimento. “Todo o verdadeiro angolano deve saber que este panfleto que traz agrafado um Apelo a todos os militantes foi feito em Luanda”. 

JPA – Não me lembro de ter feito isso… É uma posição falsa.

ES – E depois diz: “eles foram não sei onde e voltaram… agora porquê voltaram?”

JPA – Fomos ao Congo. E voltámos precisamente para… porque quando nós voltamos… eh pá! E nos arquivos da PIDE havia muita coisa? Bonita? 

ES – Algumas … (risos

JPA – E o meu processo?

ES – Não vi, por acaso não vi.

JPA – Eu também nunca vi. Nem quero ver. Eu só teria interesse em ver o meu processo, se lá conseguisse encontrar os denunciantes. Ou a correspondência que eles interceptavam.

ES – Os nomes dos denunciantes não costumam aparecer. Pelo menos nos processos que consultei, não tem lá os nomes dos informadores.

JPA – Era só para saber…

ES – Mas às vezes tem cartas, as cartas que eles copiavam. Achei interessante.

JPA – Tem cartas tem… Eu lembro-me que uma vez veio a Luanda uma comitiva de estudantes de farmácia de Coimbra e encontrámo-nos no Huambo. Nós tínhamos ido numa excursão ao Huambo, esses estudantes de Coimbra também foram, encontrámo-nos no Huambo e ficámos no mesmo hotel. Uma das moças de Farmácia, de Coimbra, engraçou-se comigo e trocámos até uns beijinhos (risos). E depois viemos para Luanda e ela fez questão de ir à minha casa comigo, para conhecer a minha mãe. No caminho, passa uma carrinha com operários brancos. Ela era branca. Eu ia com ela no passeio, e os gajos quando me viram com uma moça branca, começaram a insultar. E ela ficou escandalizada com o facto de estarem a insultar um indivíduo por estar a acompanhar uma moça branca. Bom, ela voltou para Coimbra e ter-me-á escrito. Eu só soube que ela escreveu para mim, na PIDE.

ES – Nunca recebeu a carta? 

JPA – Nunca recebi a carta. E o Vieira, o chefe da PIDE, disse-me: E então, a fulana de tal (esqueci-me do nome dela) também é comunista seguramente, como você? Fulana de tal? Eu conheço essa pessoa. Pois, escreveu para ti, as cartas dela estão aqui todas. Disse-lhe: vocês chegaram até esse ponto? Interceptar cartas pessoais de uma estudante como eu? Foram longe demais. Portanto, eu acredito que haja lá cartas da…Já me esqueci do nome dela… Era bom que estivesse viva, porque ela, coitada, olhava para a sociedade de uma forma idílica, independentemente das raças, da cor, do credo… A juventude daquela altura… Então quando ela se apercebe da agressividade dos portugueses, eram operários e iam numa carrinha, ela: Angola é assim? Já chegámos a esse ponto? (risos) Disse-lhe: estás a ver? Não acreditavas? Esta é a realidade. Mas não te preocupes, vamos embora. E lá fomos. Quando chegámos, contei à minha mãe, apresentei-lhe a minha mãe, esta é a minha amiga e contei o episódio à minha mãe. Que fomos apupados na rua… Mas nunca recebi as cartas delas e depois vim a saber que ela escrevia para mim e que aqueles sacanas da PIDE, para eles ela também já era uma comunista. Coitada da rapariga. 

https://www.buala.org/sites/default/files/imagecache/full/2025/02/tarraf..." alt="Interior da caserna dos presos angolanos no Campo do Tarrafal, foto da autora
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ES – E no Tarrafal, a sua correspondência era vigiada? 

JPA – Super vigiada.

ES – Recebia regularmente, ou…?

JPA – Recebia regularmente, mas muitas vezes cortada. Mas cortada mesmo assim a tesoura. Mas depois, o meu amigo, o meu camarada Juca Valentim, teve uma vez a visita da irmã, a Isabel. Conseguiu ir visitar o irmão. O Juca era um engenhoso do diabo. Então na visita que teve com a irmã, o Juca levou duas folhas de papel tipo A4, em que ele fez buraquinhos onde só cabia uma letra. E deu instruções à irmã: tu ficas com isto e eu vou ficar com a outra. 

ES – Um código…

JPA – Um código. Então é assim: quando quiseres passar uma mensagem, não passas explícita, passa através dos buracos. Tudo que não estiver ali escrito, nem vou ler. São baboseiras. Fala dos passarinhos, das plantas, das estradas, do vento, fala do que tu quiseres, porque eu vou pegar e leio a mensagem. E como é que eu vou descobrir a mensagem? No canto superior direito põe um x, e nós vamos descobrir que nessa página tem a mensagem.

ES – Que esperto!

JPA – Então ela também levou a sua folha com os buraquinhos. E nós, algumas informações que tivemos foi através desse sistema. Outra forma de contar eram os cigarros. Tirava-se o papel… 

ES – O papel do cigarro? Ou o filtro? 

JPA – Tirava-se o papel… Tirava-se os cigarros e enrolava-se uma mensagem em prata.

ES - E como é que vocês sabiam quais os cigarros?

JPA – Essa é que era a maka! (risos

ES – Alguém depois fumava a mensagem…

JPA – Há um dia… Nós tínhamos um colega que fumava muito. O Chefe da guarda traz a correspondência e traz as encomendas. Tabaco. O sacana do Chico apanha o maço de cigarros, tira um cigarro e acende. E a certa altura começa a sair um fumo esquisito. E o gajo começa: eh pá, esse cigarro pá, esse cigarro… Eu olhei para aquilo… Ai cum caraças… O chefe da guarda que ainda estava lá, na nossa caserna, “mas o que é que se passa?”, “Não, não é nada” e puxo o Chico lá para o fundo. Caraças, era o cigarro da mensagem! Eh pá, já tinha fumado metade da mensagem. (risos)

ES – Então tinham de controlar qual cigarro trazia…

JPA – Tinha de ser… Tinha de fumar. Eu não fumava, O Chico fumava, muito poucos fumavam, o tabaco vinha mesmo só pela questão da mensagem. Então o Juca conseguiu com a irmã, criar esse sistema de mensagens. Ou pelo tabaco, ou por carta, assim íamos tendo algumas informações, que nos deram ideia de que as coisas não estavam lá muito boas, lá fora. E de que havia um refluxo na luta.

ES – E também suspeitavam de tendências autoritárias, ou…?

JPA – Mas isso depois veio-se a confirmar. Tendências altamente autoritárias e perigosas. Eu, por exemplo, a certa altura deixei de obedecer às palavras de ordem do Neto.

ES – Em que altura?

JPA – Ainda antes de ser preso. E porquê? Porque o Juca vinha com orientações supostamente de fora, e eu achava aquelas orientações um bocado esquisitas. Isso não faz sentido. Ele está lá fora, não percebe nada do que se passa cá dentro. Eu não vou obedecer aqui dentro, a uma ordem vinda dele que está lá fora. Nós temos de ter completa autonomia, porque ele não sabe o que se passa aqui dentro. E como ele não sabe nada o que se passa aqui dentro, eu não vou obedecer às ordens do Sr. António Agostinho Neto. E disse ao Juca. E o Juca: isso é rebelião, isso é rebeldia. Está bem, chamem-me rebelde, chamem o que quiserem. Eu não obedeço. E aí comecei a perceber que havia coisas que não estavam bem. Por exemplo: aquela mensagem, palavra de ordem do Neto “Todos para o Interior!”. Eu achava aquilo uma loucura, vão morrer todos. Porquê? Porque a PIDE estava à espera deles. E a nossa sorte, é que também tínhamos infiltrações nos serviços secretos portugueses. E então conseguimos saber antecipadamente de operações que iam levar a cabo na Frente Leste, precisamente para eliminarem os dirigentes do MPLA, no interior, quando entrassem. E eu disse ao Juca: Não, não! Este camarada está desfocado da realidade.

ES – Esse não era o mesmo princípio da “ideia força” do Gentil Viana?

JPA – Do Gentil? De todos para o interior?

ES – Não. Lembro-me de que ele tinha um plano, chamado de “ideia força”, que se propunha treinar todos os quadros, para depois entrarem na luta armada.

JPA – Mas isso era de facto… Vamos lá a ver: o Gentil vinha da China e tinha percebido que havia uma certa desmobilização por parte de alguns quadros do MPLA. E quando ele lança o “Movimento de Reajustamento”, ele é o homem do Reajustamento, ele mais o Gika, ele queria transformar aquele facto do Movimento de Reajustamento, num estímulo para a participação dos quadros na luta. Mas isso seria feito de forma faseada e cuidada. O Neto, do meu ponto de vista com “todos para o interior”, levaria a… Porque a PIDE sabia de tudo, de todas as rotas de passagens. E nós sabíamos. Nós conseguimos fazer chegar lá fora, à direcção do MPLA, informações que obtivemos sobre a preparação de uma operação de limpeza aos dirigentes do MPLA que iam entrar.

ES – Vocês conseguiram passar essa informação da cadeia?

JPA – Antes de sermos presos. Nós tínhamos esses contactos da TAP. Tínhamos um camarada, o José Ferreira Fernandes, que é jornalista em Portugal, José Fernandes… Era oficial do exército, branco, angolano, e depois desertou. Tinha conseguido através da TAP… Ele era um galã. O José Fernandes naquela altura era um jovem galã, e então com as suas namoradinhas, hospedeiras e tal, conseguiu criar uma rede que passava mensagens através da companhia aérea. E uma das mensagens que o José leva, era precisamente essa. A prevenir que estava a ser montada uma operação, porque a PIDE tinha toda a informação sobre o circuito que eles iam fazer e depois ia abatê-los, ou apanhá-los. Face a esta situação e outras que me apercebi, não tem como obedecer a estes camaradas. A nossa luta cá dentro, não pode estar subordinada a orientações vindas de fora. Quem conhece o interior somos nós. Nós é que estamos aqui no terreno, no interior e temos fontes diversas.

Nós tínhamos por exemplo, um oficial nosso, o Gilberto que depois foi morto, um alferes angolano, nosso camarada que depois foi preso pela PIDE, oficial do exército português, no Moxico. E o Gilberto conseguia muitas informações na companhia que ele dirigia, porque a PIDE articulava-se com as forças armadas. E o Gilberto era nosso e recolhia muita informação e passava-nos. E nós fazíamos fé. Portanto, nós tínhamos conhecimento, tínhamos inclusivamente acesso a relatórios produzidos pela PIDE sobre operações militares que eles faziam. Soubemos por exemplo de uma operação em que eles disseram que suspeitavam que tinham morto o comandante Certa. Porque, de acordo com eles, quando atacam o grupo do MPLA, abatem algumas pessoas e dizem que o Comandante Certa tinha sido ferido e deixou uma pista de sangue até à fronteira. E eles pensam, ou chegou e morreu do outro lado da fronteira, porque ele estava ferido e pelos vistos ele estava muito ferido. De facto, o Certa foi apanhado passados alguns anos, foi mesmo preso. Mas, nós sabíamos isso tudo. Por isso é que quando eu sou interrogado pela PIDE, eu digo ao Chefe Vieira: “Isso de infiltrações, todos nós infiltramos. Vocês infiltram e nós também infiltramos.” E ele ficou… 

 

ES – Ele não esperava (risos

JPA – Porque ele dizia assim: o nosso homem infiltrado tal e tal… para ver se nos desmobilizava. Recordo-me de ele ter contado uma história que contou também ao meu irmão: “um dos nossos homens infiltrado na direcção do MPLA, contou-nos o seguinte, está aqui o relatório, em que ele perguntou ao Camarada Neto: Camarada Neto, um dia depois da independência, o que acontecerá com os mestiços?” E segundo o PIDE, o nosso informador disse que o Neto respondeu: os mestiços servem enquanto nos servem. Eu olhei para o Vieira, o chefe Vieira: e então o que é que o senhor quer dizer com isso? Quero dizer que um dia tu podes ser vítima dos teus próprios camaradas. Eu disse: Ó Chefe Vieira, eu não estou no MPLA por causa do Agostinho Neto. Mesmo que isso seja verdade, eu estou nisto, por causa da independência de Angola. Independentemente de quem for o Presidente do MPLA ou da República. Portanto, se pensa que nos vai desmobilizar por causa disto, a questão do racismo, eu estou preparado para isso. Estou preparado para vocês, depois da independência, sem nenhum problema.

Ele diz: Os nossos homens também são infiltrados. E eu: Todos nós nos infiltramos. Ai é? Vocês também? Se vocês têm infiltrados, nós também temos os nossos homens infiltrados no vosso aparelho. Isso é possível?

Havia um alferes que tinha sido estudante em Coimbra, espero que esteja vivo, e veio cá cumprir missão. A certa altura articulou-se connosco. Era um alferes assim loiro. E ele passava muita informação. Ele também era contra o regime em Portugal. Veio para cá para a guerra colonial, ele era contra a guerra colonial…

 

ES – Foi obrigado…

JPA – E articulou-se connosco e foi também uma fonte de informações.

ES – E foi descoberto?

JPA – Espero que não tenha sido descoberto e esteja vivo! Eu penso que não, uma vez vi uma imagem daqueles grupos que antecederam o Bloco de Esquerda. O Bloco de Esquerda é uma junção de grupos de esquerda, chamada extrema-esquerda, chama-se esquerda moderna, esquerda do século XXI… E eu lembro-me de ter visto, uma imagem, este é o camarada. Eu penso que ele esteve ligado ao 25 de Abril e que esteve ligado à formação daqueles grupos… a UDA? Porque havia uma série de grupos de estudantes e tal, que muitos vieram aqui de Angola. Quando fomos presos, uma série de colegas nossos foram para Portugal e lá dinamizam grupos contra o sistema. Muitos deles deram origem ao que é hoje o Bloco de Esquerda.

ES – Não sabia dessa genealogia…

JPA – É. Era a UDP. União Democrática de Portugal. Um deles, Chico… Chico, era meu colega na universidade… Os nomes já me estão a escapar, mas havia muitos jovens interessantes, não me lembro dos nomes, eram brancos, foram para Portugal… A Sita Valles… 

ES – Você conheceu a Sita Valles?

JPA – Foi minha colega. Foi minha colega de liceu e na universidade. Entrámos juntos para Medicina. Foi a Miss Caloira da minha geração, no concurso de Miss Caloira. Era bonita! Essa malta dessa geração, mais conotada com as lutas, foram, alguns conseguiram dar o salto para o estrangeiro, outros fixaram-se em algumas cidades de Portugal, articularam-se e criaram lá grupos contestatários contra o regime e dão origem ao que hoje já é outra geração. 

[Texto editado de acordo com o entrevistado]

 

Ler a primeira parte. 

por Elisa Scaraggi
Vou lá visitar | 2 Fevereiro 2025 | Justino Pinto de Andrade, Mário Pinto de Andrade, mpla, Revolta Ativa, Tarrafal