As marcas urbanas da violência colonial
Das várias formas de preconceito que continuamos a experimentar no século 21, um racismo muito mais perigoso do que o racismo institucional do passado é o racismo que está arraigado nas estruturas.
Ângela Davis
Cicatrizes da cidade
A raça, embora seja conceito biologicamente superado, continua operando como um critério de classificação dos sujeitos, a estruturar a distribuição do poder no sistema capitalista. Convertido no pós-abolição em construção social legitimadora da exploração da mão-de-obra dita “livre”, o racismo sobreviveu mesmo à derrocada das premissas eugênicas em voga no mundo “científico” da virada do século. Enquanto processo de produção de identidades políticas e contrastivas, atravessa a classe e o gênero, constituindo-se fator fundamental para compreender a dinâmica hierarquizada das relações inter-raciais.
Sob essa ótica, a história hegemônica da urbanização, de autoria da intelectualidade branca e predominantemente masculina, tem invisibilizado a participação negra e indígena na construção das cidades e na formação da nação brasileira, estabelecendo-se como estratégia de desumanização das pessoas e dos povos não brancos. Trata-se de máxima expressão da violência cognitiva: um voraz epistemicídio.
Esse apagamento, de um lado, alinhado à forma(ta)ção sectária do espaço urbano, de outro, deve ser lido como manifestação das mecânicas racistas da sociedade como um todo: não é apenas o território habitado que define a segregação nele experimentada, mas são as interações sociais, em diversos âmbitos da vida, que, orientadas pela branquitude normativa, objetivam manter o status quo, isto é, a mesma lógica colonial da Casa Grande/Senzala, traduzida no tecido urbano como Centralidades/Periferias.
A herança da escravidão não deixou cicatrizes apenas nos corpos e espíritos. Marcas da violência colonial estão impressas na carne das cidades brasileiras e de todo o Sul geopolítico. Nesse contexto, raça, classe e gênero incidem simultaneamente para impor o lugar sociopolítico da pessoa negra. As cidades exprimem os conflitos e desigualdades na produção do espaço, ao mesmo tempo em que os acirram e (re)produzem. Isso já era evidente na gênese oitocentista do urbanismo, cuja perspectiva higienista marginalizou populações estigmatizadas, sob a falsa neutralidade da técnica. Atuando como saber ou disciplina de esquadrinhamento e controle, o urbanismo colabora para aprofundar a segregação socioespacial, que é igualmente, étnico-racial. Flagrantemente eurocentrado, ele tem ignorado o impacto do racismo nas principais decisões geopolíticas num quadro de globalização conflitiva.
Em toda a América nos deparamos com os vestígios dramáticos desse tão presente passado. O cenário não difere nas cidades africanas, colonizadas massivamente nos séculos XIX e XX e gravemente feridas pelo urbanismo modernista, que sob os preceitos (e preconceitos) da ordem, separou física e simbolicamente brancos e não brancos. Assim, a institucionalização do apartheid, seria apenas a explicitação posterior de um regime urbano já vigente. A matriz funcionalista imperante no período andou de mãos dadas com a política colonial: as cidades africanas, construídas por mãos negras, não pertencem de fato a elas.
Lá e cá, do quilombo à favela, os nós de uma teia urbana racialmente hierarquizada denunciam perversas continuidades. Áreas dotadas da melhor infraestrutura e de maior capital político, são as casas-grandes contemporâneas. Enquanto isso, a precariedade das periferias evoca as senzalas de outrora. Não por acaso o hip-hop as vem designando “periafricanias”, pois, nelas a forte presença afrodescendente é escancarada. A atitude crítica do hip-hop desvenda, assim, uma territorialidade fragmentada, excludente e segregadora, questiona o lugar do/a negro/a na sociedade e transforma esses territórios em espaços de resistência e esperança: os quilombos do século XXI.
Patrimônio, memória e embranquecimento
As fronteiras simbólicas das cidades são acentuadas pelo quase total desconhecimento sobre as espacialidades africanas e afro-brasileiras. É chegada a hora de questionar a confecção da memória e o seu deliberado embranquecimento. Vergonhoso constatar o número pífio de bens arquitetônicos tombados nacionalmente em alusão à história dos/as negros/as e seus saberes. Vale lembrar que a emergência das políticas de preservação no país testemunhou um período em que se buscava construir o patrimônio cultural pautado pelo desejo de unicidade e homogeneidade da nação brasileira. Em plenos anos 1930, as diretrizes para sua institucionalização foram embasadas em valores da elite, consagrados na monumentalização da arquitetura colonial de estruturas de poder, não raro apaziguando e encobrindo seu lado opressor. Trata-se de uma memória parcial que se arroga universal, sob os moldes da razão metonímica da modernidade ocidental: eurocêntrica, androcêntrica, urbanocêntrica, etnocêntrica e heteronormativa.
A cristalização de uma única memória arquitetônica também acaba por perenizar sistemas de dominação social em favor de determinados grupos. Esse viés predominou até a inovadora Constituição de 1988, a qual incorporou referências culturais dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira. Passadas três décadas, no entanto, essa transição discursiva não deu conta de reverter significativamente a paisagem embranquecida da historiografia oficial. No livro do tombo do IPHAN, permanecem exíguos os bens culturais indígenas e afro-brasileiras, tanto no concernente a conjuntos urbanos quanto a ícones arquitetônicos isolados. Dos quase mil bens materiais protegidos em nível federal, apenas 1% concerne à memória afrodescendente: 02 quilombos, 09 terreiros, 01 senzala e 01 museu da “magia-negra”, num total de irrisórios 13. Urge, portanto, a reinvenção do passado. Outros sentidos, técnicas, materiais e modos de habitar merecem ser registrados, valorizados e integrados, de fato, na memória coletiva nacional.
Construindo a cidadania negra
Acompanha o apagamento dos bens construídos um silêncio quase generalizado em torno de relevantes personalidades negras da construção civil brasileira. Os irmãos engenheiros André e Antônio Rebouças são um dos poucos exemplos a receber a devida atenção da historiografia recente. Sua contribuição, porém, extrapola em muito os arrojados empreendimentos ferroviários com que se fizeram populares: é de autoria deles o primeiro grande plano de saneamento do Rio de Janeiro, responsável por inaugurar o abastecimento de água domiciliar para os mais pobres da então capital nacional. Estudos similares foram encomendados para a Curitiba imperial, a ponto da fonte na Praça Zacarias ser-lhes dedicada.
Na capital paranaense, outros nomes são dignos de menção, como Vicente Moreira de Freitas, um dos mestres à frente da reforma da Igreja Matriz, atual catedral. Tendo conquistado sua liberdade em meados de 1880, o exímio construtor tinha também expressivo engajamento político. Foi membro da Irmandade do Rosário dos Pretos, importante espaço de associativismo e resistência da comunidade negra de Curitiba. No ano da abolição, participou da fundação da Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, sendo responsável pela edificação de seu primeiro prédio. Sociedade esta que no dia hoje, aliás, faz aniversário.
Décadas mais tarde, a curitibana Enedina Alves Marques foi a primeira mulher a se diplomar em engenharia civil no Sul do país. E a primeira brasileira negra a integrar a categoria. Formada na Faculdade de Engenharia do Paraná, em 1945, a despeito do preconceito, consagrou-se profissionalmente na Secretaria de Estado de Viação e Obras. Sua produção e trajetória apenas agora começam a ser desvendadas. Militava na União Cívica Feminina e no Centro Feminino de Cultura. Ainda, colaborou ativamente com Octávio Ianni para o seu livro Metamorfoses do escravo (1962).
Reconhecer o protagonismo de mulheres e homens negras/os é inadiável para descolonizar a memória, chave para o empoderamento e a emancipação coletivos. Construtoras/es de cidades e de cidadania, suas histórias desconstroem a versão embranquecida de um 13 de maio que pretendeu, durante muito tempo, reiterar a subalternização e o apassivamento. Ao contrário de comemorativa, esta é uma data de luta contra as marcas da violência colonial arraigadas nas estruturas e nos territórios brasileiros.
Publicado originalmente aqui.