Nu kre casa!!! - a habitação como direito no contexto caboverdiano
Todos os seres humanos têm o direito a um lugar adequado para viver, uma habitação segura, confortável e saudável. A habitação como direito humano fundamental é internacionalmente reconhecida, tendo inclusivamente merecido a designação de uma relatoria especial na ONU, desde 2000. Mais do que um direito, para a sua efectivação ampla e duradoura, a moradia adequada deve ser uma noção política e cultural de cidadania. Estima-se que 1,1 bilhão de pessoas vive em condições inadequadas de moradia, apenas nas áreas urbanas espalhadas pelo mundo. A falta de habitação condigna pressiona o meio ambiente e aumentam os riscos à saúde pública. Apesar de fundamental, a habitação tem sido imensamente negligenciada enquanto direito humano.
Em Cabo Verde o cenário não é muito distinto. A urbanização do país, sobretudo na última década, tem tido por base a importação de um modelo de desenvolvimento vigente nos países ricos, modelo de cariz heterogêneo e desequilibrado. O resultado é uma dinâmica de modernização que recria exclusão social e segregação territorial para grande parcela da população, colaborando mais para o acirramento do que para a reversão do quadro histórico de precariedade habitacional no país. Grande parte da população nacional ainda vive em moradias precárias e sem acesso à infra-estrutura urbana básica: 39% das casas não têm casa de banho nem retrete; 43% das casas depende de chafariz ou autotanque como fonte de água; 49% das casas não têm frigorífico (INE, 2006).
Desde os anos 90 o governo de Cabo Verde vem apostando no sector turístico e imobiliário como importante pilar económico para o país. Se por um lado há, de facto, uma inversão económica internacional signiticativa para o PIB nacional, por outro, são enormes os impactos territoriais e sociais dos grandes empreendimentos turísticos e imobiliários. Contudo, os custos indirectos destes impactos não têm sido computados adequadamente: crescimento populacional acelerado, sobrecarga da infra-estrutura urbana, concentração de renda, fragilização identitária. Grandes empreendimentos imobiliários de grupos transnacionais têm aportado no país nas últimas décadas, com implicações de diversas naturezas, desde impactos espaciais/ambientais a culturais.
O território como mercadoria de exportação
Em Cabo Verde, a indústria do turismo, vinculada às promotoras imobiliárias, tem sido pautada pelo planeamento urbano voltado para o city marketing, no qual o território é compreendido como uma mercadoria a ser vendida e consumida. É sob esta perspectiva que o Plano Nacional de Desenvolvimento (1995), considera o turismo um sector estratégico para o desenvolvimento social e económico do país, buscando meios para inseri-lo no competitivo mercado internacional. O direccionamento quase que exclusivo da economia caboverdiana para o sector turístico de cariz internacional somado a um entendimento do território em termos mercadológicos tem limitado a análise dos impactos turísticos à perspectiva macro-económica. Contudo, ao avaliar-se as consequências na qualidade da ocupação do territorio nestes locais nos últimos anos, é possível observar uma sobreposição dos aspectos negativos sobre os positivos: as deseconomias do turismo podem, afinal, significar uma implosão da qualidade de vida.
Neste contexto, há forte indução à urbanização, na qual o processo migratório para as zonas urbanas tem ocorrido tanto pela escassez de recursos como pela falta de alternativas económicas e de emprego no meio rural. Por conseguinte, o resultado é um modelo de ocupaçao territorial bastante assimétrico, com destaque nas desigualdades de acesso à terra e de acesso às vantagens locacionais do espaço urbano.
O quadro de “ilegalidade” desenhado sob os padrões de legalidade restritivos e inflexíveis incompreendidos pela maior parte da população apenas colaboram para o acirramento da situaçao de precariedade e inadequação: a população mais pobre é criminalizada e estigmatizada, estando cada vez mais exposta a despejos e deslocamentos forçados, uma das formas mais violentas de atentado ao direito à moradia. Importa ressaltar que a ilegalidade é subproduto da regulação tradicional. Esta tensão entre a porção legal e a ilegal do território das cidades é fortemente marcada nos discursos sobre as cidades caboverdianas. As representações sociais da dicotomia legalidade x ilegalidade tendem a ser discriminatórias, aplicando um juízo de valor negativo sobre a ilegalidade, sem questionar ou contextualizar a sua produção.
Por sua vez, o corpus jurídico nacional, ao contrário do discurso e das acções sobre o território, segue tendências mundiais progressistas no que concerne ao direito à habitação e respeito aos direitos humanos universais. Na constituição nacional o respeito pelos direitos do homem é amplamente tratado (artigos 1º, 7º, 11º, 17º). O direito à habitação condigna é assegurado pela Constituição no artigo 71o. Em adição, o direito à moradia é reconhecido como um direito humano em instrumentos internacionais aplicáveis a Cabo Verde: Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (1966); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e de Discriminação contra a Mulher (1979), entre outros. Tais compromissos internacionais acarretam obrigações e responsabilidades aos Estados. Além disso, sendo a habitação condigna um direito previsto na Constituição, o Estado de Cabo Verde tem a obrigação de efetivar o bom atendimento deste direito.
O que é Moradia Adequada?
A Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada trabalha com os seguintes parâmetros para a definição de moradia adequada: condição de ocupação estável (sem o medo de remoção); acesso a serviços, bens públicos, infra-estrutura e a bens ambientais; acesso a subsídios compatíveis com os níveis de renda; condições adequadas de habitação (tamanho, proteção contra intempéries, ameaças à saúde e riscos); acesso prioritário à moradia para grupos vulneráveis; localização adequada; adequação cultural (construção com materiais, estruturas e disposição espacial que viabilizem a expressão da identidade cultural de quem habita).
Nos últimos anos, no cenário internacional, o tema da habitação como direito humano tem sido reforçado através da elaboração da Carta Mundial do Direito à Cidade (2005), redigida em consenso por um conjunto de organizações da sociedade atuantes com as questões urbanas. O seu artigo XVII é integralmente dedicado ao direito à habitação. A carta tem como principal objectivo ampliar o reconhecimento do direito à moradia para o direito à cidade como novo direito humano junto aos organismos da ONU.
Ao integrar o direito à moradia ao direito à cidade, evita-se a perpetuação dos modelos de políticas isoladas de habitação social. Ninguém mora em condições precárias por vontade própria. Este ano, o Dia Mundial do Habitat tem como lema “melhores cidades, vidas melhores”, numa clara abertura da habitação para o debate da condição urbana. Raquel Rolnik, relatora especial da Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, afirma que com demasiada frequência, este refrão conduziu projetos de renovação urbana que melhoraram a vida da classe média às custas dos mais vulneráveis. A atenção prioritária deve ser direcionada para a melhoria da vida e da moradia dos mais pobres. As pessoas que vivem em situação de pobreza e os grupos vulneráveis raramente são beneficiados por projetos de renovação urbana. Ao final da declaração, são responsabilizadas pela desigualdade no acesso à moradia adequada, as autoridades locais que tentam atrair investimentos privados, focando em áreas urbanas estrategicamente escolhidas.
Há que se refletir como este processo tem-se configurado em Cabo Verde. Alguns projectos, sem duvida, como Gamboa Frente Marítima, na Praia, ou os hotéis do grupo Riu, não contradizem esta afirmação. Projectos desta natureza, hoje em dia com maiores restrições de implantação nos países centrais, têm encontrado terreno fértil nas urbanidades periféricas.
É evidente que tais investimentos privados, como afirma Rolnik “não consideram nem visam explicitamente às questões de direitos humanos, como a discriminação enraizada e a desigualdade sócio-econômica. Tragicamente, o resultado é o agravamento da dor e da negação de direitos”. Apesar dos instrumentos legais que garantem o direito à habitação condigna, para a efectivação deste direito é necessária uma luta colectiva e prolongada sobre direitos e cidadania no país. O clientelismo e práticas politico-partidárias com base no favor e nas “cunhas” adiam constantemente o reconhecimento da moradia como direito em Cabo Verde e a exigência por parte dos cidadãos nacionais para que o Estado cumpra o seu dever.
Neste sentido, apoderar-se dos direitos numa perspectiva emancipatória é ponto fundamental para pressões socias colectivas em prol da garantia, pelo Estado, do direito à habitação condigna no país.
Fotografias de Andréia Moassab.
Texto publicado originalmente no jornal A Semana de 26/10/10, p. 26.