Arquiteturas e Urbanismos do sul em debate
No início de outubro aconteceu em Foz do Iguaçu, o I Encontro Internacional do MALOCA Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul, com o objetivo de apresentar os resultados do seu primeiro triênio (2014-2016) e debater os rumos das pesquisas do grupo para o triênio 2017-2019. Sediado na Universidade Federal da Integração Latino-Americana - UNILA, em Foz do Iguaçu, o grupo de pesquisa MALOCA tem atuado a partir das necessidades prementes de buscar respostas a questões na área voltadas para o contexto de ensino, hábitos de morar e construir, políticas públicas e direitos humanos, sob uma perspectiva decolonial, com ênfase na América Latina e no Sul global.
Com vista a uma arquitetura da autonomia ou uma arquitetura cidadã no Brasil e na América Latina, o MALOCA possui três linhas de pesquisa: (1) Ensino de Arquitetura e Urbanismo na América Latina; (2) Hábitos de morar e de construir no contexto latino-americano e (3) Políticas públicas, território, direitos humanos e sociais. O grupo de pesquisa forma uma rede internacional de aproximadamente 20 pesquisadores/as de instituições em diversas regiões do Brasil, como as federais do Ceará, Bahia, Ouro Preto, São João del Rei, Tecnológica do Paraná e de São Paulo e ainda pesquisadoras da Bolívia e de Cabo Verde, consolidando o diálogo de saberes a partir do Sul. Originário do quadro docente do curso de arquitetura e urbanismo da UNILA, atualmente está vinculado também com o programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Desenvolvimento na mesma instituição.
Desde 2014, diversos projetos do MALOCA têm sido desenvolvidos em parceria com o grupo cultural Afoxé Ogún Fúnmilaiyó, com especial atenção para a valorização da cultura afrobrasileira na região trinacional, numa valorosa ponte entre a comunidade e a universidade, que ora se consolidou na proposição conjunta deste encontro científico. Esta parceria aponta caminhos importantes e estratégicos inseridos na Década Internacional de Afrodescendentes, declarada pelas Nações Unidas para o decênio 2015-2024.
Em finais de 2015, o MALOCA promoveu a Jornada Sociedade e Tecnologia, no âmbito do projeto “Habitação, desenvolvimento territorial e tecnologia social na região transnacional”, fomentado pela Fundação Araucária e Fundação Parque Tecnológico Itaipu. A jornada incluiu dois painéis científicos e um curso de capacitação docente, iniciando na Universidade reflexões sobre as tecnologias e suas possibilidades para a integração regional ambicionada pela instituição. Na ocasião recebemos pesquisadores das Universidades Federais do ABC, São Carlos e de Brasília, Universidade Nacional de Quilmes (Argentina). A partir de então, o MALOCA se aproximou do Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina e da ESOCITE - Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e Tecnologias.
No sentido de aprofundar aquele debate e ampliá-lo transversalmente às demais linhas de pesquisa do MALOCA, foi realizado esse primeiro encontro internacional do grupo, que contou com o apoio do programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Desenvolvimento da UNILA, dos parceiros locais Ilê Axé Oju Ogun Funmliayó e 3 Margens Cinema e Audiovisual, e com o patrocínio da Itaipu Binacional. Buscamos reunir, em Foz do Iguaçu, pesquisadores/as e pensadores/as de destaque nas diversas áreas de conhecimento que tratam tecnologias, políticas públicas e direitos humanos, junto a integrantes do grupo de pesquisa não sediados na região, para um balanço do triênio e formulação de uma nova agenda de pesquisa e reflexão para os próximos três anos. A reunião do grupo de pesquisa, realizada durante o Encontro em 11/10/17, contou com mais de vinte pesquisadores/as, vindo de 14 instituições de diversas regiões do país e do exterior. Além de consolidar o grupo de estudos, esta foi uma oportunidade de ampliar os laços colaborativos e vislumbrar parcerias futuras.
Ressalte-se que o MALOCA faz cumprir a função social da Universidade, consolidando a tríade ensino/pesquisa/extensão, conforme pôde ser conferido na extensa programação e trabalhos ora registrados nos Anais do I Encontro Internacional do MALOCA Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul. Importa destacar que o Encontro foi aberto à comunidade, seja por meio de chamada de trabalhos ou com a participação totalmente gratuita, como ouvintes, com o principal intuito de reconhecer e aprofundar parcerias locais de pesquisa e atuação social. Foram cerca de 150 inscritos e participantes do Encontro e das oficinas preparatórias, vindos/as do Tocantins, Mato Grosso, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Argentina, Bolívia e Cabo Verde, com a apresentação de 18 comunicações orais e 09 pôsteres científicos.
Recebemos, ainda, diversos convidados/as para a conferência de abertura e mesas-redondas, de temas diversos e atuais, todos vinculados às áreas de pesquisa do MALOCA. As conferências marcaram o perfil epistemológico do Encontro e guiaram os debates.
Conferência e mesas redondas
A conferência de abertura “Desafios tecnológicos para a arquitetura contemporânea em África”, proferida pela premiada arquiteta africana Patti Anahory, teve por objetivo ampliar o diálogo entre os continentes a partir da tecnologia e seus desafios comuns: a escassez econômica e material e a invisibilidade de sua produção arquitetônica. A arquiteta focou sua apresentação nas questões emergentes do júri do Africa Architectural Awards 2017, o maior prêmio de arquitetura africana na atualidade, do qual fez parte, na África do Sul, nas semanas anteriores ao Encontro em Foz do Iguaçu.
A primeira mesa, “A invisibilidade das práticas espaciais e da arquitetura do povo negro e afrodescendente na América Latina” contou com Daniel Schavelzon (Argentina), Miriam Chugar (Bolivia/MALOCA) e Estela Ramos (UNIME/ETNICIDADES/MALOCA), com mediação da professora Angela Souza, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrolatinos da UNILA. O arquiteto e arqueólogo argentino, Daniel Schavelzon centrou sua apresentação no livro de sua autoria “Buenos Aires Negra: arqueología histórica de uma ciudad silenciada”, no qual trata da presença da população negra e sua importância na composição do quadro social no país, e sobretudo, na história da capital. A arquiteta e pesquisadora da Universidade Católica Boliviana San Pablo, Miriam Chugar, apresentou a pesquisa “la representación social del afro-boliviano desde la percepción de la población cruceña en Bolivia”, que coordena no âmbito do MALOCA, a respeito dos/as afrobolivianos/as. Fechou a mesa a professora Estela Ramos, pesquisadora da temática de espacialidades urbanas na formação de bairros negros, com estudos de campo em Salvador, Luanda e Maputo, e de patrimônios culturais em comunidades negras rurais.
Em outras palavras, esteve em foco na primeira mesa, o debate sobre raça, arquitetura e território, em absoluta consonância com a Década Internacional de Afrodescendentes, decretada pelas Nações Unidas para o decênio 2015-2024. Existem aproximadamente 200 milhões de pessoas vivendo nas Américas que se identificam como afrodescendentes. Em muitos casos, a situação permanece praticamente invisível, e pouco reconhecimento e respeito são dados aos esforços das pessoas de ascendência africana para buscar compensação por sua condição atual. Ao abrirmos o Encontro com este tema, nos propomos perguntar qual é o papel da arquitetura, paisagem, urbanismo e dos estudos em tecnologia no debate racial e de gênero. Entendendo que a suposta neutralidade da ciência, sob os auspícios da modernidade, tem sido amplamente questionada, como pensar o ensino, a produção científica, a prática profissional e as políticas públicas na área em colaboração com a plena inclusão dos povos subalternos, e com o combate ao racismo, à discriminação racial, de gênero, à xenofobia e à intolerância.
Na segunda mesa “Reflexões multidisciplinares em urbanismos e Arquitetura do Sul”, estavam presentes conferencistas de distintos grupos de pesquisa: o MALOCA, representado pela professora Andréia Moassab; o Grupo de Estudos da Teoria da Dependência - GETD, da UNILA, com a professora Marina Gouvea e o Grupo de Pesquisa em Arquitetura Contemporânea, da Universidade Federal de Tocantins, com o professor Marcos dos Santos. Esta mesa contou com a mediação do professor André Luis André do programa de mestrado em Integração Contemporânea na América Latina, da UNILA. Se por um lado foi apresentada a produção do MALOCA no último triênio, com destaque para os seus projetos de ensino, pesquisa e extensão, por outro o diálogo foi enriquecido pela perspectiva marxista do GETD no que tange à compreensão de desenvolvimento, inserido no modelo civilizatório da modernidade ocidental, necessariamente pautado pela divisão de classes e pelo debate sobre patrimônio arquitetônico a partir de experiências e práticas fora dos grandes centros e das obras monumentais.
A mesa de encerramento, “A Inserção Social da Tecnologia”, buscou aprofundar o debate sobre a necessidade de pensar a tecnologia como uma construção social, sem qualquer neutralidade nas escolhas tecnológicas e o seu impacto na sociedade. Pedro Arantes (UNIFESP), com vasta pesquisa sobre as transformações na forma e nos processos produtivos na arquitetura contemporânea, trouxe para o debate as práticas participativas em arquitetura e urbanismo, a partir da experiência do grupo Usina, entidade sem fins lucrativos que presta assessoria técnica a movimentos populares na área de habitação e reforma urbana, da qual foi coordenador por seis anos. Na mesma direção, o professor Gabriel Cunha (UNILA/MALOCA), abordou alguns conceitos chave que envolvem a noção de tecnociência. A apresentação procurou mostrar a importância de repensar o papel da tecnologia na sociedade atual, a sua democratização e a necessidade de redefinir os rumos das decisões técnicas como indispensáveis para traçar alternativas ao capitalismo. Por sua vez, José Afonso Portocarrero (UFMT) tem se destacado com um dos raros arquitetos no país a pesquisar tecnologia indígena, trazendo aportes inovadores em seus projetos de arquitetura, voltados, entre outros, para a eficiência energética. No seu premiado projeto o Espaço de Conhecimento do SEBRAE/MT, o arquiteto escolheu como modelo as casas xinguanas para idealizar o espaço, resultando em um edifício em forma ogival, com as proporções baseadas nas ocas Yawalapiti e Kamairurá. Sem paredes, a proposta arquitetônica visa a incentivar o uso comunitário do espaço, seguindo a tradição indígena. O trabalho do arquiteto demonstra claramente como pesquisar tecnologia dos povos tradicionais é uma ferramenta fundamental para apontar rumos inovadores em tecnologia, alinhados com a preservação ambiental. A mediação, por conta de Marcos de Jesus, do grupo de pesquisa Epistemologias do Sul, da UNILA, enriqueceu os debates sobre tecnologia com os aportes do pensamento decolonial.
Exposições e mostra de vídeo
Integraram a programação do Encontro três exposições de trabalhos acadêmicos e uma mostra de vídeo. As exposições resultam de trabalhos dos e das discentes do curso de arquitetura e urbanismo da UNILA, cuja temática colaboram para demonstrar a relação indiscernível entre as pesquisas do MALOCA e ensino: Mulheres na Arquitetura Latino-Americana; Arquitetura da Revolução: 100 da Revolução Russa e Abril pra Cor. A mostra de vídeo MALOCA em Diálogo, exibida na última manhã do encontro, apontou para as diversas possibilidades de popularização da ciência, isto é, traduzir em linguagem contemporânea temas relevantes e atuais das pesquisas científicas, como foi o caso dos trabalhos exibidos. O documentário Terreiros, dirigido por Maurício dosSantos e Felipe Lovo, resultou da pesquisa com terreiros de candomblé em Foz do Iguaçu e foi contemplado pelo edital de Curtas Universitários do Canal Futura 2016/2017. O documentário “Taller Total: Año 1970 al 1975” mostra a única experiência pedagógica, interdisciplinar, coletiva, desenvolvida como plano de estudos para um curso de graduação na história da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina.
Por sua vez, o vídeo “Arquiteturas Afrolatinas”, resultou de projeto de pesquisa de Iniciação Científica na UNILA “Arquitetura Afro-Latina: uma análise crítica e histórica do patrimônio arquitetônico de influência africana na América Latina e no Caribe” em curso, coordenado por Céline Veríssimo e co-coordenado por Andréia Moassab, em diálogo com os projetos de extensão “Cartografias do Devir no Quilombo Apepu” (coordenação de Andréia Moassab e Tiago Bastos) e “Os Orixás em Terras de M’Boi” (coordenação de Andréia Moassab), todos realizados no âmbito do MALOCA. Esse vídeo foi preparado para ser exibido na XX Bienal de Arquitectura de Chile, realizada em outubro e novembro de 2017, na cidade de Valparaiso/Chile, cujo tema se intitula “Diálogos Impostergables”. Anteriormente, esse trabalho foi considerado um dos vinte mais relevantes da bienal para ser levado à XXVI Asamblea de Ministros y Máximas Autoridades de Vivienda y Urbanismo de América Latina y el Caribe - MINURVI, que aconteceu em Buenos Aires, em junho do mesmo ano. A mostra Maloca em Diálogo deve como debatedores Maurício Santos, realizador do curta “Terreiro”, Gabriele Bastita e Geovanny Flores, participante da pesquisa e do vídeo “Arquitecturas Afrolatinas”.
Atividades Pré-Encontro
Antecederam o I Encontro Internacional do MALOCA Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul, sete oficinas e uma mostra de filmes destinadas à preparação de público e aprofundamento das temáticas debatidas durante o evento. Foram as oficinas: Espaços de Acolhida e Diversidade (Bruno Oliveira/CASA1/MALOCA); Esto es Arte Porque lo Dijo un Europeo (Bruno Oliveira/CASA1/MALOCA); Etnografia de Acessibilidade na Tríplice Fronteira (Karine Queiroz/UNILA/MALOCA); Mulheres Negras, Arquitetura e Espaços Sagrados (Marina Galdino/Ile Ase Ogún Fúnmilaiyó, Estela Ramos/UNIME/ ETNICIDADES/MALOCA e Joice Berth/MALOCA); Tecnologias Sociais (José Afonso Portocarrero/UFMT), Gabriel Cunha/UNILA/MALOCA e Marcos dos Santos/UFT); e Tecnologias Sociais: Mapeamentos Culturais (Ana Paula do Val/MALOCA) e Thiago Hoshino/MALOCA/ RENAFRO/PPGD-UFPR).
Também fez parte das atividades preparatórias, a mostra de cinema “Territórios, Corpos e Narrativas em Disputa”, a qual contou com a apresentação de 04 curtas-metragens brasileiros (Vando Vulgo Vedita; C(elas); Chico; e Maria) e uma mesa de debate composta por Joice Berth, arquiteta, feminista negra interseccional e pesquisadora do MALOCA; Isadora de Assis, antropóloga, pesquisadora na área de gênero, diversidade sexual, raça e encarceramento, e Felipe Lovo, produtor e realizador audiovisual, graduando em Cinema e Audiovisual pela UNILA.
Festa de Encerramento: Saudosa Maloca
O I Encontro Internacional do MALOCA Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul encerrou com a festa de confraternização Saudosa Maloca, realizada no Ilê Axé Oju Ogún Fúnmilaiyó, importante parceiro local do grupo de estudos nos últimos anos. O nome da festa não é casual. A partir da música de Adoniran Barbosa, escrita nos anos 1950, a referência à Saudosa Maloca exprime os preceitos do grupo com a responsabilidade social do ensino, pesquisa, extensão e atuação profissional na área, em defesa do direito à moradia e contra os despejos forçados.
Desdobramentos: Agenda próximo triênio e manifesto em defesa da Unila
Com esta vasta programação e intenso debate, os/as integrantes do MALOCA Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul, reunidos/as em Foz do Iguaçu, reforçaram seus laços, ampliaram suas parcerias e definiram a agenda do grupo para o próximo triênio, que segue fortemente focada no debate étnico-racial em arquitetura e urbanismo e nas questões de ensino na área, com prioridade, para o triênio, no debate sobre a relação entre formação e egressos/as, isto é, o exercício profissional e o papel social do/a arquiteto/a e urbanista no Brasil e na América Latina.
Todos/as pesquisadores/as do grupo presentes ao encontro redigiram e assinaram a “Carta da Fronteira: Manifesto MALOCA em defesa da UNILA”, aprovada ao final da reunião do grupo e lida publicamente na mesa de encerramento do Encontro. A Carta, publicada na íntegra nos Anais do Encontro, manifesta o repúdio dos/as pesquisadores/as aos ataques reiterados à educação pública e à pesquisa no país, em especial, às campanhas de calúnias contra a UNILA, nos últimos meses.
As informações completas sobre o encontro podem ser conferidas no site: https://encontromaloca.wordpress.com/