Black Movement
Na América, a liberdade e o poder estão inextricavelmente ligados. Não se pode ser livre sem se ter poder e não se pode deter poder sem a liberdade de dispor de si próprio.
Martin Luther King.
Numa defesa clara da necessidade de autodeterminação dos afro-americanos, e longe de promover uma ideia separatista, Martin frisa que um ser humano desprovido de poder sobre si próprio é um ser humano desprovido de liberdade. Se este princípio é cada vez mais claro, por exemplo na luta das questões de género, já no caso do racismo continua a suscitar grandes desacordos.
Convidados a estar presentes numa tertúlia para falar sobre a situação dos jovens afro-descendentes em Portugal não pudemos deixar de notar a debilidade e timidez do debate em torno do racismo neste país. Mais uma vez tivemos um contacto privilegiado com aquilo que consideramos ser os restos da mentalidade colonialista e racista de muitos portugueses.
Pretendendo ser uma atitude contra o racismo, as críticas a um movimento afro-descendente autopensado, como sendo uma forma de racismo invertido, revelam-se numa atitude paternalista e profundamente ignorante que visa submeter a perspectiva anti-racista dos afro-descendentes às perspectivas dos portugueses. O mesmo será dizer que a luta pelos direitos de alguém é definida por quem beneficia dessa falta de direitos, e que o mesmo estará apto a renunciar pacificamente da sua situação privilegiada para uma sociedade igualitária.
Antes sequer de nos ouvirem, já nos estavam a ser apontadas três limitações: o sectarismo do movimento Black, o obsoleto das suas ideias e o ênfase na raça em detrimento da classe. Estas críticas são recorrentes em quase todos os contactos que temos com outros movimentos e, além de porem a claro a grande prepotência ideológica de muita gente bem intencionada, revelam também até que ponto a sua necessidade de definir o que é a liberdade de comunidades por si historicamente oprimidas, se converte numa incapacidade de ouvir as perspectivas dessas mesmas comunidades. A sua ignorância em relação a este movimento só mostra o quanto o desprezaram a ponto de ignorar quão ligado estava a outros movimentos, a profundidade da sua análise transversal entre a raça, classe e género (como era o caso dos Black Panthers) e o seu enorme contributo para os direitos civis de tod@s, e não só d@s negr@s.
Se a Revolução Francesa e a Revolução Russa, de 1889 e 1917 respectivamente, continuam a ser defendidas como faróis desta democracia, porque estão as ideias de Malcolm X, ou dos Panthers obsoletas quando são bem mais contemporâneas e a sua luta não está acabada?
Quando Martin Luther King está a dar voltas nas campas com a forma como o capitalismo integrou o seu sonho no sonho americano. Muita gente prefere lembrar-se do discurso “I have a Dream” de Martin Luther King, descontextualizando-o e entendo-o não como um ideal de chegada, mas como o próprio processo de luta. Assim, para uns é preferível que as nossas crianças caminhem de mãos dadas pelos montes da Geórgia, ainda que umas estejam bem calçadas e outras descalças. Ainda que umas tenham que comer dos restos do lanche das outras. Ainda que umas tenham que voltar para casa a pé e sozinhas porque os seus pais estão a trabalhar na casa das outras, cujos pais as acompanham no passeio. É preferível isso a que essas crianças adquiram a plena consciência de que não têm ainda condições para caminhar juntas de igual para igual nos tais montes, e perguntar-se porquê. Que se questionem se querem realmente caminhar juntas nestas condições desvantajosas ou, se pelo contrário, querem reivindicar os seus próprios sapatos, o seu lanche e o tempo dos seus pais.
Não falamos da igualdade como uma oportunidade de aceder ao mesmo que tem o nosso opressor pois isso nada tem de transformador, mas sim como a condição irrevogável de determinar o seu próprio destino (que passa pela possibilidade de rejeitar a “integração” e continuação deste regime), em vez do projecto de cidadania(s) a longo prazo que substitui a capacidade de idealizar, reivindicar e lutar pela efectiva igualdade por uma integração individual. Integração onde vários filtros jurídicos e sociais criam condições de acesso a uma espécie de “negr@s mais aptos”. Negr@s que serão elencados como os casos de sucesso da comunidade e o exemplo do sucesso de políticas de integração e posteriormente cooptados desprovendo a comunidade do seu principal recurso actual que são @s irm@s com capacidade de iniciativa.
Da mesma forma vários movimentos sociais ou grupos políticos tentam captar esses/as irm@s no sentido de doutriná-los e transformá-los em megafones das suas ideias para a comunidade.
De um ou de outro jeito trata-se de um processo de cima/baixo fora/dentro que só tem instrumentalizado esses/as irm@s utilizando-os como multiplicadores do quadro jurídico e institucional, num caso, ou das ideias contra esse mesmo quadro, no outro. Ambas as situações, ainda que tragam consigo um discurso de melhoria das condições sociais, não as traz edificadas sobre os nossos interesses e necessidades.
Trata-se dum processo que se certifica que a nossa luta seja pacífica e pacificada na relação com os demais movimentos cívicos ou organizações em nome dum interesse maior que nos ultrapassa. Um processo que contribuiu para que muitos de nós, na nossa acção pseudo-transformadora, deixe de se focar na nossa experiência e consciência colectiva para se passar a focar nas medidas políticas financiadas por uns e contestadas por outros. Contribuiu para deixarmos de ser amplificadores das nossas angústias e exigências para sermos seus silenciadores, pois em vez de fazermos o nosso grito de protesto para fora, fazemos agora o grito de ordem para dentro. Como o cão fiel ao seu dono que ladra com fome mas depois de satisfeito arruma-se na sua casota e vem cá para fora sob chamamento do seu dono mostrar as acrobacias de que é capaz ao vizinho.
Assim é caso para afirmar que as nossas comunidades não têm voz, porque nós em vez de a dar estamos a retirá-la. Mais, ainda que alguns e algumas tenham retirado daqui dividendos políticos, profissionais e financeiros (que embora tão tímidos foram suficientes para nos vislumbrar), poucos são os resultados concretos dessa “liderança” nas condições sociais, económicas e políticas dos afrodescendentes e de muitos imigrantes negros.
A nossa liderança goza então dum grande reconhecimento de cima/fora, e de nenhum reconhecimento da base/de dentro. Por nós falamos, cujo grande empolamento foi mais dado pela reacção dos jornais e de organizações exteriores do que propriamente pela reacção da nossa comunidade às nossas actividades.
Malcolm X chamar-nos-ia House ou Domestic Niggas. Talvez estejamos apenas confusos e iludidos com a nossa condição de copeiros e mokambas. Felizes por estar a servir à mesa dos nossos sinhôs e sinhás, partilhando da sua intimidade e protegidos das chuvas torrenciais ou do calor ardente por baixo do qual os Field Niggas caminham de grilhetas nos pés à mercê das chicotadas dum capataz. Orgulhosos por saber falar a sua língua e poder comer da mesma comida, ainda que depois deles. Radiantes por poderem caminhar livremente pela sua casa, ouvindo as notas do seu piano, vestindo uns trapos mais apresentáveis do que aqueles Field Niggas que, lá ao fundo, arrancam algodão ou café ao som dum gospel de tenebrosas lágrimas de sangue e suor. Satisfeitos pois, algures, as nossas camas são mais confortáveis que a palha das senzalas.
É uma metáfora dura mas ilustrativa pois cabe-nos perceber se os direitos reconhecidos no artigo 13º da Constituição já estão efectivamente ao nosso alcance. Se a Lei da Nacionalidade e a Lei da Imigração reconheceram todos os jovens cá nascidos e regularizaram todos os imigrantes. Se a Declaração dos Direitos Humanos teve capacidade de deter os assassinatos arbitrários dos jovens negros nos nossos bairros ou a detenção de irm@s nos Centros de detenção de Imigrantes. Se o fim do colonialismo ditou o fim da exploração do Norte pelo Sul que mina as estruturas de África impedindo-a de se desenvolver.
Não há dúvida de que somos muito bons/boas a mediar a integração dos Imigrantes ou a inclusão dos seus descendentes, mas quantos olham para lá desse prisma e questionam esse quadro de normas que está a seleccionar seres humanos e a enviar os outros para as sucatas da sociedade? Quantos põem este regime em causa e procuram formas de luta alternativas ou complementares àquelas com as quais fomos doutrinados nas associações e movimentos a que pertencemos? Poucos. Não temos uma agenda própria. Andamos ao sabor de agendas alheias.
Posto isto, cabe-nos reconhecer que não temos uma luta sistematizada e implementada mas sim um conjunto de acções soltas que têm promovido, sim, indivíduos ou grupos que se têm identificado, ou sido identificados como líderes comunitários, num caso, ou revolucionários, noutro.
Luta, digna desse nome, só pode ser feita a partir da escuta activa e envolvimento das nossas comunidades no pensamento do processo. No diagnóstico e busca de solução com a sua luta enquadrados num espectro político.
Um grande desafio da luta afro-descendente e, portanto, da Plataforma GUETO, é servirmo-nos das nossas ferramentas pessoais para organizar as pessoas para o pensamento das suas questões. Não é, de forma alguma pensar pelas pessoas e chegar à comunidade com as ideias feitas e/ou os projectos aprovados.
Outro grande desafio é perceber as particularidades históricas, psicológicas, sociológicas, culturais das comunidades e agir a partir da sua aceitação e não da sua negação. A negação do impacto do colonialismo só continua a fortalecer este neo-colonialismo que todos os dias força a deslocação de milhões de irm@s para os centros urbanos onde nos encontramos presos a céu aberto. As grandes correntes ideológicas vigentes não foram pensadas para e nem com negr@s, nem tão pouco as grandes medidas de intervenção social.
É nesse sentido que só podemos defender um movimento negro que, por agora, e sabe-se lá até quando, só poderá ser saudável se se preservar livre e autónomo nas ideias e acção. E isso é precisamente o contrário do sectarismo. A nossa consciência vem enriquecer as perspectivas de luta de outros movimentos e não enfraquecê-la. Mas só o pode fazer se for realmente livre para se amadurecer na sua especificidade e particularidade. E é nesse amadurecimento que forjamos a nossa relação com a generalidade, com a globalidade. Com os outros movimentos. Qualquer coisa menos que isso será um pai a ensinar um filho, um marido a ordenar uma mulher ou um patrão a dirigir um operário.
Qualquer coisa menos que isso leva a que continuemos a ser açoitad@s pelos novos capatazes à ordem dos novos slave owners. A ser “educados” para nos aceitarmos como selvagens carentes de civilização, a ser assistidos pela caridade da missão “evangelizadora” da mesma instituição que legitimou e abençoou a partida à descoberta de novos mundos. Qualquer coisa menos que isso é o passado. Qualquer coisa menos que isso é nada.