A subida eleitoral da extrema direita na Europa
As últimas eleições europeias acabaram por ficar marcadas pela acentuada subida eleitoral da extrema-direita, um pouco por toda a Europa. Como podemos observar pela percentagem dos resultados eleitorais obtidas por essa força política nos diferentes países europeus, a saber: 25% (França), 23% (Dinamarca), 22% (Reino Unido), 20% (Áustria), 15% (Hungria), 13% (Finlândia), 12% (Grécia), 26% (Espanha). Somente na Holanda, o partido liderado por Geert Wilders não alcançou a vitória eleitoral, conforme avançavam as diversas sondagens antes do escrutínio, tendo conseguindo captar “apenas” cerca de 12,3 % dos votos.
A subida eleitoral da extrema-direita na Europa não se alastrou para Portugal, o que acabou por alegrar muitos jornais, comentadores e forças políticas de esquerda e de direita. Este texto vem desmistificar a ideia de que não há uma agenda política de extrema-direita na realidade portuguesa. Por outras palavras, o facto de não haver nenhuma representação partidária de extrema-direita nos órgãos de representação política internos e externos não significa que a sua agenda política não esteja a ser colocada em práxis. Para ilustrarmos esse facto iremos demonstrar a fraca ou inesitante representação política da extrema-direita e como o seu espaço de actuação no sistema político tem sido ocupado por outras forças partidárias.
Antes de aprofundarmos o assunto gostaríamos de precisar que hoje a extrema-direita europeia tem um discurso mais sofisticado e sedutor para atrair a classe média europeia, que se encontra bastante descrente e resignada dada as elevadas taxas de emprego que encurta o horizonte existencial dos cidadãos. Essa classe e outras não conseguem entender o ensejo histórico no qual se encontra a Europa, dado que, segundo o iminente pensador camaronês, Achille Mbembe, “a Europa já não é o centro da gravidade do mundo”.
Esta situação histórica e o seu impacto têm sido pouco considerados pelos meios académicos e media, visto que os europeus sempre alimentaram e continuam a alimentar uma visão de superioridade cultural e intelectual em relação aos outros povos, povos designados, muitas vezes, por “atrasados” ou “incivilizados”. A nosso ver, a decadência europeia está na base do ressurgimento de ideologias nacionalistas, visto que os nacionalismos procuram afastar a sensação de medo existencial da classe média quanto ao presente e afectam, por conseguinte, a capacidade de perspectivar o futuro. Este facto serve para explicar por que razão 50, 3 por cento dos suíços votou a favor da reintrodução das quotas de imigração, colocando, assim, um ponto final no processo de livre circulação de pessoas na Suíça. Para muitos analistas a atitude dos suíços não faz sentido, dado que a imigração tem contribuído significativamente para o enriquecimento do país em termos económicos e culturais.
A nosso ver, a fraca representação da extrema-direita na realidade portuguesa deve-se a quatro motivos, a salientar: primeiro, a fraca participação dos portugueses em organizações políticas de massa. Por exemplo, no período do Estado Novo, quando Salazar estava no poder, nunca houve uma manifesta participação dos portugueses em eventos de grande envergadura humana. Nesse sentido, em Agosto de 1934, o ditador António de Oliveira Salazar insurgiu-se contra a tentativa de Francisco Rolão Preto de criar um movimento de massa, quando este chefiava o Movimento Nacional-Sindicalista, também designado “camisas azuis”, que se tornou, segundo o politólogo José Adelino Maltez, “na forma mais similar ao fascismo, ocorrida entre nós”.
O segundo aspecto diz respeito ao facto da retórica e do campo de actuação da extrema-direita portuguesa estarem a ser sistematicamente ocupados pela elite conservadora e defensora da visão saudosista de um Portugal ultramarino. Foi precisamente essa elite que depois da queda do Estado Novo se aliou a António Spínola, enquanto este ocupava o cargo de Presidente da Junta de Salvação Nacional, e esteve também na base fundadora do CDS/PP. De salientar ainda que essa elite de direita conseguiu sobreviver ao fim do regime ditatorial, porque muitos dos seus elementos, como por exemplo Adriano Moreira, afastaram-se ou romperam com este regime antes da sua queda, por isso conseguiram obter um espaço de actuação política no pós-regime. Muitos acabaram mesmo por voltar para o meio académico, onde já tinham uma grande preponderância académica durante o Estado Novo. Veja-se, por exemplo, que foi no baluarte académico dessa elite, precisamente na Faculdade de Ciências Sociais e Políticas Ultramarina, onde estudou e lecionou Mário António. Como sabemos, Mário António acabou por sustentar a tese do lusotropicalismo desenvolvida por Gilberto Freyre, ao ponto de considerar que a angolanidade é o resultado da crioulidade. Esta visão de Mário António tem sido bastante discutida e refutada por dois académicos e intelectuais angolanos, precisamente Víctor Kajibanga e Luís Kandjimbo, ambos inspirados pelos estudos sociológicos de Mário Pinto de Andrade. Os dois autores têm alertado para a necessidade de haver uma africanização no desenvolvimento do conceito de angolanidade.
De facto, a elite conservadora de direita portuguesa sustentou e suporta, ainda hoje, todas as teorias do lusotropicalismo e de angolanidade de Mário António, só desta forma consegue defende a ideia de um Portugal historicamente virado para o Atlântico ou mar, recusando, por conseguinte, valorizar o papel político de Portugal na Europa. Foi por isso que, na fase inicial, o CDS/PP posicionou-se politicamente como um partido anti-europeu, e essa luta política acabou por ser encabeçada por Jacinto Lucas Pires, um dos mais destacados militantes do CDS/PP. No entanto, com o passar dos anos e o evidente sucesso da integração europeia por parte de Portugal, o CDS converteu-se num partido pró-Europeu. Para esta alteração foi indispensável a ascensão de uma nova elite no seio dessa força, liderada Paulo Portas, sendo que tal elite passou a pautar o seu discurso a partir de uma visão mais populista, xenófobo e racista, dando maior ênfase à questão da segurança, retirando, por conseguinte, o espaço mediático e político à extrema-direita. Por isso, um dos maiores estudiosos da extrema-direita em Portugal, Riccardo Marchi, considera que “Paulo Portas, não sendo líder de um partido de extrema-direita, é o que mais preenche esse vazio: Em momentos de campanha toca muitos pontos da extrema-direita — a segurança, o enriquecimento ilícito, o orgulho nacional — sem cair no racismo ou na xenofobia”. Acresce ainda o investigador, que o CDS apresenta “uma agenda de extrema-direita soft”.
O terceiro diz respeito ao facto do moderno nacionalismo português se basear, acima de tudo, numa perspectiva histórica expansionista ou ultramarina e esse aspecto não tem sido valorizado pela extrema-direita portuguesa. Isto aconteceu, porque a unidade territorial portuguesa acabou por ser efectuada bastante cedo, começando, precisamente, em 1147, quando D. Afonso Henriques, suportado por cruzados germânicos, reconquistou o Reino Islâmico de Badajoz, na Península Ibérica, aos mouros. Esse facto de Portugal ter alcançado esse fenómeno tão cedo fez com que o moderno nacionalismo português procurasse reconstituir outros aspectos identitários, assim um dos mitos populares e popularizados foi sem dúvida o sebastianismo. Segundo José Manuel Sobral (2003:1115), “o sebastianismo é um factor importantíssimo de identificação. Tanto mais que na representação messiânica desse rei que desapareceu e há-de regressar se insere uma ligação do destino de Portugal a uma missão da Providência divina, que não se pode desligar da expansão imperial do século XVI, e que um padre António Vieira prolonga no século XVII, interpretando antigas profecias em função do novo poder e do novo monarca”.
Esse ethos nacionalista é uma propriedade de todas as elites políticas portuguesas quer do regime monárquico, quer as do regime republicano. Por exemplo, a declaração de independência do Brasil, em 1822, despertou mesmo uma crise nacional, ao ponto de alguns deputados reunidos nas cortes colocarem a hipótese de enviarem uma força militar para o Brasil. Também o “Ultimato Inglês” provocou uma espécie levantamento popular, instigado pelas elites republicanas. Esse ethos afectou, ainda, as elites do Estado Novo que embarcaram num conflito militar em três frentes em defesa de um território que consideravam seu por direito histórico, porque a perda dos territórios africanos, nas palavras do investigador português Valentim Alexandre (2006:58), colocaria “em causa a própria sobrevivência de Portugal, que poderia vir a transformar-se numa mera “adjacência da Espanha”.
O medo de Portugal se transformar num mero “adjacente de Espanha” desapareceu com a inclusão do país num projecto transnacional (União Europeia). No entanto, o discurso transatlântico não deixou de estar presente na mente de algumas elites portuguesas panorama político português, ganhou sim um novo cunho e uma maior capacidade de integrar-se numa lógica mais ampla. Por exemplo, é bastante comum Adriano Moreira debruçar-se em diversas conferências sobre esse desígnio português e o seu legado histórico, procurando reinventar um tipo de relação entre os povos ditos “lusófonos”. Isto é algo que nos devia preocupar claramente, porque o termo lusófono constitui per se um verdadeiro atentado identitário aos povos colonizados e uma continuidade histórica colonial, ainda que mais soft. Como frisa, e bem, o escritor e o intelectual moçambicano Luís Bernardo Honwana, “o conceito de lusofonia não corresponde a nenhuma realidade sociológica ou política e não tem qualquer validade científica” (Gonçalves, 2012:1). O intelectual sustenta ainda que o termo surgiu de uma “forma atabalhoada para resgatar o espaço do império cuja desaparição relegou Portugal a uma situação de subalternidade no palco europeu e mundial”.
Notamos, mais uma vez, que o espaço discursivo de um nacionalismo saudosista que a extrema-direita, precisamente o PNR, poderia ocupar acaba por estar nas “mãos” das elites portuguesas do CDS, PSD e PS. Neste sentido, o PNR tem procurado revalorizar outros mitos/valores nacionais, como, por exemplo, Viriato ou D. Afonso Henriques, duas figuras importantes na história de Portugal, mas não tão influentes na consciência nacional.
Por ultimo, o quarto aspecto diz respeito ao facto de Portugal não apresentar uma elevada tensão social, étnica e económica, isto porque em Portugal não se observa uma forte mobilização social dos imigrantes. Assim, os imigrantes acabam por efectuar os serviços ou trabalhos que os nacionais não desejam realizar no seu país, nomeadamente na construção civil, na limpeza ou restauração, como estamos cientes, áreas de actividades económicas com os mais baixos salários. Pelo que os portugueses acabam por estar numa situação societal mais favorável face aos imigrantes ou não-nacionais. Para esta situação societal em muito tem contribuído, a nosso ver, a mensagem política quer dos partidos de direita, quer de esquerda que colocam sempre a tónica na situação do trabalhador nacional e não no trabalho em solo nacional. Este tipo de mensagem política é bastante comum de encontrar nos partidos de extrema-direita na Europa, enquanto que em Portugal é recorrente encontrar nos partidos de esquerda, principalmente no PCP. Isto acaba, portanto, por mostrar que os partidos portugueses, principalmente o PCP, sofreram um processo de nacionalização da sua agenda política, retirando dessa forma o espaço mediático e de actuação política do PNR.
Acresce ainda a situação de fraca ou mesmo inexistente representação dos interesses das minorias na realidade política portuguesa. Por sua vez, nos outros países europeus, observa-se cada vez mais uma representação ou representantes dessas comunidades em órgãos políticos no plano nacional ou local, isto acaba por suscitar alguma competição política, dando, assim, espaço de manobrada aos partidos de extrema-direita. No entanto, gostaríamos de precisar que este tipo de representação nem sempre tem significado uma melhoria nas condições de vida dos imigrantes. Ainda assim, não podemos menosprezar o efeito dessa visibilidade social e política, porque pode servir de base para suportar os sonhos e as ambições dos imigrantes.
Em suma, gostaríamos de dizer que fizemos este pequeno exercício de demonstração para provar que a agenda política da extrema-direita tem sido executada sem a necessidade de haver um partido com esse rótulo político na Assembleia da República. Por isso, não é fundamental haver um partido para que a sua agenda política seja executada, sendo sim mais importante e fundamental procurarmos entender o que representa de facto a ideia de extrema-direita e que interesses têm vindo a servir. Porque, como sobejamente sabemos, o fim último dessa força ou desse tipo de forças é colocar o nacional à frente dos demais interesses presentes numa comunidade, ou seja, os sujeitos fora dessa comunidade não estão legitimados política e socialmente para apresentar e defenderem uma agenda política própria. Por exemplo, enquanto essa percepção do político subsistir no social, então teremos que continuar a conviver com a agenda política da extrema-direita.
Publicado originalmente na Plataforma Guetto.