Eu também tenho um sonho
Celebraram-se 50 anos do famoso discurso I Have a Dream de Martin Luther King.
Foi há cinquenta anos que o Reverendo Martin Luther King, em Washington, proferiu um dos mais célebres discursos de todos os tempos. O I Have a Dream marcou a história e, hoje ainda, é relembrado e homenageado por pessoas comuns, políticos, activistas, estudantes, artistas e muito analisado nas aulas de hermenêutica, retórica nos cursos de comunicação.
Cinquenta anos depois, será que o sonho se realizou?
Quando Barack Obama foi eleito irradiou no coração de milhões de pessoas a esperança de que a América ia mudar a sua política interna e externa. Os profetas da hipocrisia e os adeptos das grandes ilusões apressaram-se a anunciar o fim do racismo e a apregoar a chegada de uma sociedade pós-racial. Yes, We Can tornou-se um slogan popular. Deste lado do oceano, a comunidade africana, e não só, também todos aqueles e aquelas que estavam fartos do tirano do George Bush e das suas guerras, celebraram a “vitória”.
Em África, os africanos corriam e gritavam pelas ruas, faziam festa e viam a eleição de Obama como uma segunda reconquista da liberdade. A eleição de Obama simbolizou uma vitória de todos os povos de cor e oprimidos do mundo. Criou-se a expectativa de que Obama melhoraria a política externa americana e colocaria um stop na política colonialista e genocida do Estado Sionista de Israel.
O farol da esperança era semelhante ao da proclamação da Lei de emancipação, assinada em 1862 por Abraham Lincoln, que deixara os escravizados regozijados com a possibilidade do fim da escravatura. No entanto os negros só receberam promessas e continuavam a ser escravizados e linchados nos Estados do Sul. A eleição do primeiro presidente negro foi vista como a realização do sonho de Martin Luther King. Mas pelos vistos não passava de chuva de verão e de promessas que não iriam ser cumpridas. Também a febre Obama veio mais uma vez provar que só através da organização e da luta é que vamos rachar o caminho para terminar a longa noite dos cativeiros e plantações modernas criadas pelo racismo e capitalismo. O próprio Luther King via o sistema capitalista como inumano. No seu discurso Where Do We Go From Here perguntava o porquê de haver quarenta milhões pobres na América? E quando se começa a fazer esta pergunta, levanta-se a questão sobre o sistema económico e a distribuição da riqueza. E quando se levanta essa questão, começa-se por questionar a economia capitalista”. Martin Luther King rejeitava o capitalismo mas não se assumia como defensor do socialismo. No mesmo discurso afastava-se do socialismo afirmando “eu li o Manifesto Comunista e O Capital há muito tempo e penso que Marx talvez não tenha seguido Hegel o suficiente. Agarrou na sua dialéctica mas abandonou o seu idealismo e espiritualismo. E tomou o materialismo do filósofo Feuerbach e transformou-o num sistema que denominou de Materialismo Dialéctico. Eu tenho que rejeitá-lo. O que estou a dizer é que o comunismo esquece a vida individual e o capitalismo esquece que a vida é social.” King não era comunista mas rejeitava o modelo capitalista.
A questão é se devemos e temos alguma coisa a comemorar neste dia ou se devemos aproveitá-lo para lutar contra as injustiças que o povo negro ainda sofre na América e no mundo.
Na série de desenhos animados The Boondocks há um episódio em que Luther King regressa do coma no qual dormia há quarenta e tal anos. King acorda e fica escandalizado com a situação dos negros e com a política externa americana. Chega a ser acusado e de ser anti-américano quando se posiciona contra a guerra no Iraque e é chamado de apoiante de terroristas. No filme ele diz “não há nada para comemorar”. Faço minhas as suas palavras. Não há nada para comemorar, apenas lições a tirar.
Cinquenta anos depois o negro vive num constante açoite, não só na América mas no mundo. Hoje é um negro o rosto de uns dos impérios mais violentos e genocidas que a humanidade conheceu. É o rosto que veste a hipocrisia de uma sociedade pós-racial. Mas sabemos que a América é controlada por grandes corporações que se apoderaram do Estado e usam-no nas suas aventuras militares pelo petróleo e pelo mercado e que a supremacia branca ainda é uma doença que corrói aquele país colonial. Não queremos e nem desculpabilizaremos Barack Obama, pois este deu seguimento à política de agressão e de espionagem contra os povos do mundo.
Cinquenta anos depois, a América apoia incondicionalmente o Estado sionista e racista de Israel, Estado esse que, segundo o jornal The Guardian, esteriliza à força os judeus negros da Etiópia e constrói Jardins de infância que separam as crianças africanas das crianças israelitas.
Cinquenta anos depois o império americano cobre o continente africano com as bases militares e bases de drones através do Projecto Africon e lança bombas sobre vilas na Somália.
Cinquenta anos depois a América continua com o seu projecto colonizador escondendo os seus tentáculos por detrás das vestes do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio e do Fundo Monetário Internacional.
Cinquenta anos depois os nativos americanos são tratados como não-cidadãos, quando a América assassinou os seus ancestrais, roubando-lhes as terras.
Cinquenta anos depois a cada 36 horas um negro é assassinado nos Estados Unidos da América. O caso mais conhecido é o caso de Traivon Martin, executado por Zimmerman. Traivon era um jovem negro de 17 anos assassinado por um segurança de condomínio. O caso foi tão flagrante que até mereceu a atenção do presidente Barack Obama.
Cinquenta anos depois a farda da brutalidade continua com a sua campanha de terror nas comunidades afro-americanas.
Cinquentas anos depois do I Have a Dream, o racismo é veemente nas declarações de partidos racistas como o Tea Party.
Cinquenta anos depois a América continua a condenar à morte os líderes negros que se atrevem a lutar pela sua liberdade. Um dos mais conhecidos prisioneiros políticos, que actualmente cumpre uma pena perpétua sem direito a liberdade condicional, é Múmia Abu Jamal.
Cinquenta anos depois do I Have Dream o número de negros encarcerados cresce exponencialmente num conluio entre o sistema judicial americano, o complexo industrial prisional e o complexo industrial militar. Segundo o livro Golden Gulag, de Ruthie Wilson Gilmore, as prisões americanas são autênticas máquinas para assassinar as pessoas.
Cinquenta anos depois de acordo como documentário Bloods and Crips, Made in Amerikkka, as crianças negras que vivem em certas zonas de Los Angeles estão a sofrer do stress-pós-traumático assim como as crianças que estão expostas às guerras, como por exemplo, as crianças iraquianas, palestinianas e crianças-soldado da Serra Leoa.
Cinquenta anos depois, segundo National Urban Leagues, em 1963, 10 por cento dos afro-americanos encontravam-se desempregados comparados com os 12.3por cento da actualidade. Na maioria das vezes, o desemprego entre os negros foi quase o dobro dos euro-americanos.
Cinquenta anos depois, as comunidades negras e latinas na América, são tão vulneráveis economicamente que os seus membros são “forçados” a ingressar no Exército Americano para que possam ganhar a vida. Em 1964, o partido Dos Panteras Negras denunciava que os negros eram postos de propósito na linha da frente na guerra do Vietnam para morrerem mais rápido. Hoje nas guerras americanas, a maioria dos soldados são negros e latinos oriundos de comunidades pobres.
Cinquenta anos depois, em Portugal, o negro é executado na praça pública e o seu assassino é ilibado e é o morto que é julgado nos tribunais.
Cinquenta anos depois o negro encontra-se preso em guetos onde a miséria e a violência todos os dias se multiplicam.
Assim como Martin Luther King “Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial” de que as nossas comunidades são alvo em Portugal e noutros países da Europa, nas Américas, em África, nas Caraíbas e na Austrália. “Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a rectidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza” porque foi o que faltou no caso de Élson Sanches, conhecido como Kuku, e noutros casos de jovens que foram mortos pela polícia em Portugal.
Também temos o nosso sonho. O sonho de ver o fim do terrorismo policial e laboral sobre as nossas comunidades. O sonho de ver um sistema que dê prioridade às pessoas em vez do lucro. Temos o sonho de viver em paz e sossego. E isso só se consegue com luta e amor.
Em suma, não temos nada para comemorar, só temos o exemplo inspirador de Martin Luther King que nunca se calou contra as injustiças, contra o racismo e as segregações, contra as guerras imperiais, a brutalidade policial etc. Porque 50 anos se passaram e o negro ainda não é livre nem na América, nem no mundo, nem na própria Mãe África. Hoje é um dia de luta e não de celebração.
A luta Continua. Justiça e Paz.