Espaço Cultural Elinga, salvaguarda da liberdade espiritual artística
No meio de uma cidade frenética para o bem e para o mal, há pontos de abrigo – que nos abraçam e nos lembram que aqui também é a nossa casa. É importante não esquecer isto. O Espaço Cultural Elinga, local que alberga uma série de actividades lúdicas e culturais, é um desses pontos de abrigo. É antes de mais um local de cultura. Cultura no seu sentido mais original. A antiga Casa das Beiras do período colonial português é uma espécie de salvaguarda da liberdade espiritual artística, onde tudo é possível acontecer – mas sempre com algum estilo, com uma linguagem própria e interdisciplinar, com referências locais mas também internacionais.
A principal referência daquele espaço é o grupo Elinga Teatro (da língua umbundo ‘elinga’, que significa “acção, iniciativa, exercício”), criado no dia 21 de Maio de 1988. A sua existência inscreve-se numa linha de continuidade iniciada com o grupo teatral Tchinganje (1975/76), prosseguida com o Xilenga-Teatro (1977/80) e com o Grupo de Teatro da Faculdade de Medicina de Luanda (1984/87). De comum entre todos, a presença do mesmo director artístico, José Mena Abrantes, a activa participação de um núcleo de actores e, acima de tudo, um mesmo projecto de teatro, voltado para o resgate e promoção da cultura angolana a todos os níveis, incluindo um tratamento moderno dos seus valores tradicionais, e para a difusão de um reportório teatral universal. Em 1999, foi constituída formalmente, pelos elementos do Elinga Teatro, a Associação Cultural Elinga Teatro, sem fins lucrativos, que tem dado continuidade ao trabalho anterior.
José Mena Abrantes nasceu em Malanje. Concluiu o liceu em Luanda e fez os estudos universitários em Lisboa, onde se licenciou em Filologia Germânica. Esteve exilado na Alemanha. Regressou a Luanda, fundou quatro grupos de teatro e participou na criação da Angop, a agência de notícias do Estado. Desde 1993 que é o assessor de imprensa do Presidente da República. É, sem qualquer espécie de concessão amigável, o principal mentor de todo este projecto Elinga Teatro. E um dos que mais colocou as mãos no fogo, digamos assim: é dramaturgo, escritor, encenador, gestor, motivador…
Peças da História
Em 2009, em declarações ao semanário “O País”, afirmou o seguinte: “Até ir para Lisboa, nunca tinha visto teatro. Em Malanje só havia cinema, algo que eu adorava. Quando finalmente vi a minha primeira peça em Lisboa – no Teatro da Feira Popular – confirmei que não gostava”, confessa. Tudo mudou quando fez uma segunda tentativa e foi ver uma peça da Associação Académica da Faculdade de Direito. A peça, do argentino Osvaldo Pragón, chamava-se “Histórias para Serem Contadas”. Mena Abrantes diz que “no final do espectáculo estava arrepiado. Percebi, nessa altura, que o teatro seria a minha paixão. Pouco tempo depois, ofereci-me para ser actor no grupo cénico da associação”. Em Maio de 2008, o Elinga Teatro comemorou 20 anos. No livro “A História do Teatro”, de José Mena Abrantes, ficamos a saber que o grupo apresentou ao público 34 peças – vinte e uma das quais de autores nacionais – e representou Angola em diversos festivais internacionais de teatro.
Em 2012, o Jurí do Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola atribuiu-lhe o prémio na categoria de Literatura, argumentando com as seguintes razões: “José Mena Abrantes dedicou parte da vida a produzir textos dramáticos, modalidade literária raramente cultivada em Angola e pouco conhecida enquanto tal. Destinando-se o texto literário dramático à representação, é inegável a importância desta vertente estética da obra de José Mena Abrantes, numa altura em que o teatro anima cada vez mais o público e floresce em palco. Além de escrever peças de teatro e de se dedicar à direcção do grupo Elinga Teatro, desde 1988, o autor produziu romances, poesia e ensaios. O conjunto da obra de José Mena Abrantes é consubstanciado por uma profunda carga existencial. Trata-se, pois, de uma produção literária que preserva factos históricos ocorridos no período colonial, no espaço que hoje chamamos Angola, e que se afirma como crítica e reflexão sobre a realidade social e moral da época”.
O Espaço Cultural Elinga, um antigo e charmoso, mas agora envelhecido edifício colonial, na baixa de Luanda, alberga (e sempre albergou) figuras quase históricas, como António Ole, um dos mais importantes artistas plásticos do país e também realizador e fotógrafo. Mwamby Wassaki, jovem estilista e criador de moda, também está lá instalado. O Movimento X, turma de jovens imparáveis na flor das ideias, que organiza noitadas, festas e encontros regados à “música da batida” (house, hip-hop, afro beat) e bom ambiente, também vive naquele espaço.
As suas acções estendem-se à dança, tendo sido sede da Dançarte, de Mónica Anapaz e Rita Oliveira, e actualmente do Grupo de Dança Kussanguluka, de cariz tradicional, e dos Grupos de Hip-Hop Corpo da Dança e X-Boy. O Marado Teatro de Rua também desenvolve as suas acções neste renomado espaço. No mesmo local também se organizaram aulas, grupos de Capoeira e exposições artísticas. Já albergou algumas associações, como a Brigada Jovem de Literatura (BJL), a Associação Angolana dos Amigos do Livro (AAL) e a Associação Angolana de Teatro para a Infância e Juventude (ASSATIJ).
Sempre em cena
O Elinga Teatro tem 35 actores, dos quais apenas 16 são permanentes. “Tanto inclui pessoas com formação universitária como desempregados”, explicou Mena Abrantes na sua já referida entrevista. “As pessoas (assistentes) vão aparecendo nos ensaios e, por vezes, chegam a ser chamadas para representar quando alguém falta. Até o nosso segurança foi fazendo pequenos papéis nos ensaios e agora já entra em algumas peças”, contou divertido. Várias figuras do teatro angolano cresceram nos meandros do antigo palacete: Orlando Sérgio (um dos fundadores do grupo, entretanto afastado) e Raul do Rosário são apenas dois das dezenas que por ali passaram. E deixaram a sua marca.
Nos últimos 24 anos o Elinga Teatro nunca interrompeu a sua actividade. Durante este período, apresentou ao público 34 peças e representou Angola em diversos festivais internacionais de teatro: II Encontro de Teatro Africano em Itália (1988); XVIII Festival Internacional de Teatro Ibérico no Porto (1995); I Mostra de Teatro em Língua Portuguesa em Lisboa (1995); Estações da Cena Lusófona em Maputo (1995), Mindelo (1997), Coimbra e Braga (1999), São Tomé (2002) e Coimbra (2003); Expo 98 em Lisboa (1988), Festival Internacional de Almada (1988); III e VI MindelAct no Mindelo (1997, 2000) e no Festival Gravana em São Tomé (2002).
Em Maio de 2008, para comemorar os vinte anos, o Elinga realizou o I Festival Internacional de Teatro de Luanda, com a presença de diversos grupos nacionais, dois de Moçambique, dois de Portugal e um de Cabo Verde. Em Novembro desse ano, o grupo foi galardoado com o 2.º Prémio Nacional de Cultura e Artes 2008, na categoria de teatro. A 18ª edição do Festival Internacional de Teatro Mindelact, considerado o maior acontecimento teatral da sub-região africana, que decorreu de 7 a 15 de Setembro de 2012, no Mindelo, agraciou o Elinga Teatro com o Prémio Homenagem, patrocinado pela Presidência da República de Cabo Verde. O grupo angolano exibiu nesta edição do festival o espectáculo “O Cego e o Paralítico”, uma versão adaptada por José Mena Abrantes da peça homónima do autor cingalês Dharmasena Pathiraja (Sri Lanka).
Destruindo fronteiras físicas e sociais, o Elinga Teatro encontra-se a desenvolver um projecto com a participação de São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Brasil, Portugal e Espanha (Galiza), de características multiculturais. Trata-se do P-Stage (Portuguese-Speaking Theatre Actors Gather Energies), também conhecido por Estágio Internacional de Actores Lusófonos. É financiado pela União Europeia/ACP e tem como parceiros a Associação Cena Lusófona, de Portugal, e a Acção para o Desenvolvimento (AD), da Guiné-Bissau. Trata-se de um projecto que, para além da formação de actores, pretende efectuar uma co-produção internacional com a apresentação de espectáculos nos países acima citados, abrangendo mais de 5 mil espectadores. A par disso, vai voltar a realizar o Festival Internacional de Teatro, com convidados provenientes de diversos países, em Maio de 2013.
Naquela varanda aberta onde se vê a Kianda, numa marginal agora que anda ao som de novas perspectivas – o Elinga nunca dorme. A escada de madeira fusca que vira à direita para quem sobe é linda. Porque guarda histórias incontáveis. O Elinga-Teatro, o Elinga-Feliz, o Elinga-das-Noites-Quentes-com-Chuva, onde pelo menos uma noite na vida já fomos felizes…
fotografias de Carlos Louzada
publicado originalmente na revista Austral nº 95