Homens inseguros que fazem de 'seguranças'
Em Luanda, onde a febre de segurança lateja à luz de um sol dengoso e desmotivante, há avenidas que são autênticas caixas-fortes – de um lado e doutro, dezenas de guardas ganham (mal) a vida sentados em cadeiras improvisadas, bancos e bancadas, onde fazem de tudo um pouco: dormem, trocam ideias e comem, trabalham. A sua utilidade é duvidosa (têm falta de formação adequada, muitas vezes não estão armados nem alimentados convenientemente) mas a verdade é que estes homens fazem parte da paisagem na capital angolana.
A noite corria num ritmo forte de grande calmaria. É mesmo assim. Um ritmo forte de grande calmaria. Repito para não deixar dúvidas, porque esta cidade é mesmo assim. Não pode haver dúvidas numa cidade como Luanda, e os seguranças são a ‘cara’ das poucas dúvidas. Como se duvida da integridade moral e civilizacional das pessoas, nomeadamente das mais pobres, toca a contratar seguranças. Adiante. Alguém chega apressado e de telemóvel na orelha. Falava com outra pessoa que está naquele prédio colonial, bonito (mas colonial), lá para a banda do Maculusso. Traz qualquer coisa na mão e precisa de subir a um dos apartamentos, mas a porta do edifício, por segurança, está fechada à chave.
‘Muanza!’. Primeira vez. ‘Mu-an-zaaa!’. Segunda vez. ‘MUANZA!!!’. Terceira vez. Nada se passou. O tal homem, alto e desengonçado, queixo proeminente, bigode e cabelo risco-ao-lado, tinha procurado e berrado pelo guarda. E nada. O receptor da encomenda, que entretanto tinha descido para a apanhar, denunciou Muanza através da porta-de-ferro-fechada-à-chave, informação logo seguida de um movimento elegante do braço, apontando a direcção justa, junto a dois carros que sempre estacionam naquele lugar. ‘Os guardas devem estar a dormir, encostados naquele carro, mesmo à frente dos caixotes de lixo da Elisal, aqueles ali, cor-de-laranja europeia’. O homem desengonçado avança, e apetece adivinhar o que passava pela cabeça dele, naquele preciso momento em que está a pisar o alcatrão já bem fresco.
Ele olha, de soslaio, para o tal sítio junto ao carro. Sorri para dentro – os guardas estão mesmo ali. São três. Dá dois passos atrás. Vai fazer mesmo o que lhe está a apetecer. ‘PUM!’. A descompostura patronal recebida às 21 horas de uma jornada que terá começado pelas 8 da manhã, e as duas horas que gastou para resolver uma emergência, também ela patronal, deixaram-no assim. Descompensado. Desarranjado. Ele tinha acabado de arrear um pontapé “à Eusébio”, perna direita na bola que se vai enroscar na rede quadrada, esburacadamente quadrada. ‘PUM!’. Eram três caixotes do lixo, que chocaram como três peças de um dominó, aquele jogo apreciado pelos guardas, seguranças e taberneiros. Parecia combinado. ‘PUM! PUM! PUM!’.
No segundo seguinte uma reacção em cadeia revelou a incongruência do acto. Uma cidade segura por seguranças seguros não tem alarmes de três carros a tocar ao mesmo tempo, nem pessoas a correrem para a janela, nem caixotes do lixo pontapeados. Nem luzes a acenderem, de forma sincronizada, em toda a vizinhança. Nem pessoas que dormiam, no posto de trabalho, às 23 horas.
Um dos seguranças saiu disparado do ninho, no sentido contrário ao estrondo. Raspou-se, portanto. Outro, o Jorge, estava agachado por detrás do carro-abrigo, só se via a cabeça, ressuscitada de um sonho bonito que certamente estaria bem longe do Maculusso, da insegurança e de um trabalho mal pago. Muanza deslocava-se para ‘a posição’, como ele gosta de dizer. Camisa aberta, esgrouviado, atordoado por um pontapé Eusebiano, qual guardião depois de apanhar com uma bomba do moçambicano cara adentro. Parecia que ele é que tinha sido atingido, não os caixotes cor-de-laranja europeia.
O homem alto e desengonçado gesticula e promete vingança. Não foi possível ouvir a conversa, mas é fácil imaginá-la. Aliás, Muanza costuma repetir ‘nós não dormimos, estamos bem alerta a noite toda’. Está tudo dito – e agora vamos interromper a conversa. Chegou o jantar e Muanza sai disparado, ‘porque o carro que traz a comida, todos os dias à mesma hora, não vai passar mais’. É justo.
Muanza, figura de cinema
Durante os anos 80 e princípios de 90, em plena guerra MPLA – UNITA, Muanza andava no mercado Roque Santeiro “a comprar imbambas para vender nas Lundas”. “Ia no Roque, comprava jeans, ténis, roupa, tudo o que as pessoas precisam, empacotava. Tinha um amigo numa agência de viagens que me levava no Antonov, no russo, o Antonov sabe?, para as províncias, e ia lá vender a mercadoria. Passava vários dias fora, a família ficava em Luanda. Fiz algum dinheiro”. Tanto que deu para construir uma “casa grande grande”, onde actualmente alberga os oito filhos – “eram nove” –, e a mulher. A mais velha, moça na casa dos vinte anos, “já recebeu a carta do pedido, por isso está para casar”. Esta frase Muanza, agora com 49 anos, diz com orgulho, olho brilhante. “Os outro sete estão todos comigo, estudam”, acrescenta.
Tem andado doente e por isso perdeu muitos quilos nos últimos dois meses. Em caso de necessidade, não terá arcaboiço para lutar com qualquer ladrão, mesmo que ele seja o brasileiro-brega-anão, aquele, ‘comé?’, o Nelson Ned. É, nem o Nelson Ned perdia um braço de ferro com o tio Muanza dos dias de hoje. “Estou com febre tifóide e paludismo. Mas já me estou a tratar. No final do tratamento vou estar normal. São 94 comprimidos”, explica, com os óculos de haste dourada empoleirados e enviesados, à direita, na sobrancelha, à esquerda, na menina-do-olho, excitado e confiante, agora que a patroa lhe tinha dado dinheiro para a consulta.
Muanza e Jorge são guardas do mesmo prédio, mas de pessoas diferentes. O dia-a-dia deles submete-se a uma rotina quase non-sense. De manhã, cada um deve dizer uns cinquenta e cinco ‘bom dia, sim’. É o trabalho deles, dizer ‘ok, bom dia, sim’. (Pelo meio ouve-se um rádio, jibóia-se e trocam-se ideias). De tarde, o calor aperta e o exercício é deveras estimulante – encontrar a melhor sombra ‘para descansar depois do funje’, como diz Muanza. Passam do passeio oposto à entrada do prédio, para depois se sentarem debaixo da pala da entrada do prédio, para finalizarem o dia nas arcadas junto da galeria comercial. Chega a noite e aqui é fácil – pitar e dormir.
Dormir? Então e os ladrões? “Estou aqui como segurança há 5 anos e só por uma vez houve maka com bandido”, começa por dizer Jorge, o mais experiente de todos. “Fui o primeiro guarda daqui”, repete de forma profundamente concisa e, até certo ponto, orgulhosa, sobrancelhas arregaçadas na cara redonda e marcada pelo tempo, pelas peripécias de uma vida pouco fácil. “Naquele dia havia umas motas grandes dentro do prédio, os bandidos quiseram entrar”. Desconseguiram. Jorge chamou a polícia e depois de muita discussão os bandidos não voltaram mais.
Como quase todos os guardas da cidade (digamos melhor, “como quase todos os homens da cidade”) Muanza e Jorge têm um passado ligado à guerra e à vida militar. “Ah, eu estive no mato mesmo, com as FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), sei ver bem longe um bandido – se tem arma ou se vem com intenção de roubar, eu já estou a vê-lo”, afirma Jorge. Muanza é mais tranquilo e da guerra só fala dos “6 anos passados no Lubango, a lutar contra os sul-africanos. Eles só atacavam com aviação, sabia disso? As bomba saiam do cú do avião cá para baixo!, os cubanos tinham radares e binóculos, foram a nossa salvação”.
Muanza, alegoria anti-bandido
Jorge vive na Estalagem, pouco antes de Viana, subúrbio desenfreado de Luanda. Lá é que estão os bandidos. “Ah, tem muito bandido mesmo, ainda ontem bateram na minha porta – querem levar tudo, aparelho, rádio, antena, dinheiro. Ainda há os seguranças que parecem bandidos, a própria polícia também é bandida e nas áreas difíceis nunca aparece, não gira e não vê nada, nunca”.
Manuel, 33 anos, é guarda de uma pastelaria que não tem cadeiras, nem mesas, nem bolos, nem cerveja Cuca, sequer. Ainda não abriu. Mas já tem segurança, claro. É no Alvalade, uma das zonas nobres de Luanda. Em frente à pastelaria tem uma casa de um qualquer general que, por incrível que pareça, possui uma gazela fechada no quintal. Se calhar foi o mesmo que o ameaçou quando estava de serviço num condomínio privado, perto da Samba.
- Sai da frente senão vou-te bater e levar na unidade. Abre o portão!
- Senhor, todas as pessoas que queiram entrar têm de se identificar. De seguida eu vou perguntar a quem se dirige, para saber se o conhece, se está à sua espera. Só depois pode subir.
- O quê?! Você não sabe quem eu sou?
- Não meu senhor, não sei.
Manuel foi obrigado a telefonar para o administrador do prédio, e foi ele que resolveu o problema. “Quando o general bazou, me deu uma olhada! Xé!”. Tem dois filhos e mora para a banda do Morro Bento, zona sul da cidade. “Ah, lá é Centro de Bandidagem mesmo, celular?, eh!, é bom para bandido”. Na ‘posição’ em que se encontra, lá no Alvalade, o dia passa-o como todos os outros seguranças da cidade. ‘Ok, bom dia, sim’. ‘Ya, boa tarde, sim’. ‘Obrigado, obrigado’. Sentado numa cadeira de plástico branco, daquelas bem agradáveis numa esplanada virada para o mar.
No Maculusso a luz passou de baça e amarelada, quase chinesa, para a ausência total. Está escuro. O trânsito desapareceu, as pessoas também, apenas alguns jovens escorregam Luanda fora, noite fora, Cucas fora. Por volta das zero horas os dois únicos carros que circulavam nas imediações da Liga Africana beijaram-se. Boca com boca, violentos, quase loucamente apaixonados. Apaixonados demais – deu bronca, deu estoiro e travões a fazerem de reco-reco e chapa com chapa. Vermelha contra cinzenta.
- Não diz porra, tá a ouvir? Ele tem a culpa, e da próxima vez que este jovem disser porra eu vou-lhe dar!, berra um dos acidentados na direcção daqueles mirones que logo surgem debaixo das pedras, quais lagartos à espera da presa ideal.
Os intervenientes e os ‘lagartos’ discutiram, gritaram, a energia da rede foi e voltou, apareceu a polícia. Bazaram, voltaram todos e bazaram de novo. Fizeram barulho, ameaçaram-se. Muanza nem se mexeu. Continua enroscado nele mesmo, posição fetal, junto dos carros estacionados em frente aos caixotes cor-de-laranja europeia, provavelmente a sonhar com o dia do casamento da filha mais-velha.