Luanda e Salvador rediscutem seus laços por meio da arte
Salvador, na Bahia, e Luanda, em Angola, são cidades primas. Mas são como primas distantes: elas têm uma forte ligação familiar, mas perderam o contato uma com a outra com o passar dos anos. Por meio dessa imagem, o artista plástico e curador angolano Fernando Alvim sintetiza sua visão sobre as relações entre a capital de Angola e a capital da Bahia, o estado com maior presença negra no Brasil.
Para ele, é impossível não perceber a semelhança entre ambas. “Há algo na estética, na arquitetura, na maneira como as pessoas se movimentam, no som, no clima, nas cores, que deixa os dois lados do Atlântico muito familiares”. Mas, ao mesmo, tempo, é notável o desconhecimento de um lado sobre o outro – principalmente dos baianos em relação a Angola e à África contemporânea.
Com o objetivo de reaproximar duas cidades histórica e afetivamente já tão próximas, Alvim, através da Fundação Sindika Dokolo, entidade privada angolana organizadora da Trienal de Luanda e da qual ele é vice-presidente, e a Diretoria de Museus do Governo da Bahia (Dimus), assinaram um acordo de cooperação internacional que prevê a realização de eventos culturais periódicos em ambas as cidades. O objetivo é reforçar, rediscutir e, principalmente, atualizar os laços emocionais e culturais existentes entre a capital angolana e a capital do estado da Bahia, o município com a maior presença negra do país. “Estamos promovendo o encontro de dois lugares que têm muito o que dialogar”, diz Daniel Rangel, diretor da Dimus. “Trata-se de um movimento inédito na história contemporânea das duas cidades.”
A premissa é a ação
O protocolo é o desdobramento oficial de um movimento que começou em meados de 2008, quando Alvim participou de uma conferência no Museu de Arte Moderna da Bahia. Nesse encontro, pensadores, artistas, curadores e figuras públicas começaram a pensar em formas de aproximar as duas cidades por meio da arte, sempre a partir da ótica da contemporaneidade. “Nossa estratégia sempre foi partir logo a ação. É como um mecanismo de urgência”. Diz Alvim. No final de 2009, aconteceu a primeira exposição da Fundação Sindika Dokolo em Salvador. Depois disso, em apenas oito meses, outros quatro eventos conectando as duas cidades foram realizados.
Luanda Smooth and Rave 1 (novembro/09)
O Pelourinho, bairro tradicional de Salvador, sediou a exposição Luanda Smooth and Rave 1. A mostra, que ficou quatro meses em exposição, levou aos baianos uma visão bastante contemporânea da cidade de Luanda, por meio de trabalhos dos artistas angolanos Claudia Veiga, Kiluanji Kia Henda, Yonamine e Ihosvanny. O mesmo local também foi palco de uma conferência com o sociólogo angolano Luis Octávio Van Dúnem, que falou sobre as características, desafios e especificidades de Luanda contemporânea.
Gravação do CD da banda Next (novembro/09)
Salvador recebeu em residência artística a banda afro-electro-acústica Next, que gravou material para seu primeiro disco e DVD. Após um concerto no Pelourinho, tiveram início as gravações em estúdio e ao vivo foram feitas na capital baiana. Agora, o material bruto está a ser masterizado por um estúdio em Salvador e por outro em Luanda. Cada um fará o trabalho à sua maneira e, depois, o material será reunido e finalizado. “Será um exercício interessante, pois teremos dois pontos de vista diferente de um mesmo trabalho”, diz Nuno Mingas, vocalista do NEXT.
AsFormigas de Boris Vian (março/10)
A peça de teatro as As Formigas de Boris Vian, do diretor angolano Rogério de Carvalho, foi encenada na capital baiana no teatro Sesc/Senac Pelourinho. A peça apresenta texto traduzido e encenado em duas línguas: português e mucubal.
Concerto de Paulo Flores e as batuqueiras do Celamar
Os músicos angolanos Paulo Flores, as batuquerias do Celamar e a banda NEXT fizeram um concerto do Teatro Castro Alves, em Salvador. Na mesma data os governadores do Estado da Bahia e da Província de Luanda trocaram convites oficiais para integrarem os comitês de honra da I Bienal Internacional de Artes Visuais da Bahia 2010 e da II Trienal de Luanda.
Luanda Smooth and Rave 2 (maio/2010)
Em 31 de maio, foi inaugurada no Museu de Arte Moderna (MAM), a exposição Luanda Smooth and Rave 2. Com obras de fotografia, artes plásticas, instalação, vídeo e documentário de 21 artistas angolanos, a mostra já havia sido exposta em Luanda e em Bordeaux, na França.
O que vem por aí
Os próximos projetos desenvolvidas em conjunto pelas duas entidades são:
3 Pontes — II Trienal de Luanda| Luanda
Setembro a Dezembro/2010
A II Trienal de Luanda tem como tema Geografias Emocionais |Artes e Afectos e terá um espaço dedicado à arte contemporânea brasileira. A mostra 3 Pontes, de curadoria de Daniel Rangel, diretor da Dimus, levará artistas baianos contemporâneos a capital angolana. O nome 3 Pontes, explica Daniel, deve-se aos três principais momentos de intercâmbio entre a Bahia e a África: o tráfico de escravos, o movimento tropicalista, nas décadas de 1960 e 1970 e uma terceira que está sendo criada — de maneira mais definitiva — agora.
Bienal da Bahia | Salvador
2011
O governo da Bahia, por meio da Dimus e do Museu de Arte Moderna, anunciou o lançamento da Bienal da Bahia, em substituição ao Salão da Bahia que há mais de uma década era realizado anualmente. A mostra dará ênfase à produção artísticas da África, América Latina e Ásia. A Fundação Sindika Dokolo participará do evento. A exemplo da Trienal de Luanda, a Bienal da Bahia também será um evento descentralizado: isto, é, terá múltiplos curadores e acontecerá em diferentes espaços da cidade. “A Bienal tem de envolver a cidade, não faz sentido que ela aconteça apenas em um local”, diz Rangel. A Fundação Sindika Dokolo participará do evento.
Para além da arte
Para além do interesse artístico, este intercâmbio intercontinental que iniciou-se no campo das artes tem um papel bem mais amplo: discutir, apresentar e atualizar as relações entre Brasil e Angola sob o prisma da contemporaneidade. Apesar dos dois países terem uma longa história em comum, que resultou em ligações culturais, econômicas, políticas e afetivas muito intensas, quem transita pelos dois lados do Atlântico logo percebe que existe a necessidade de reforçar e construir esses laços a partir de uma visão da contemporaneidade. É como se a ponte que atravessa o Atlântico tivesse ficado presa ao passado. “O brasileiro ainda tem uma visão muito folclórica sobre a África”, diz o sociólogo José Octávio Van-Dúnem, diretor da Faculdade de Direito Agostinho Neto (Luanda). Segundo o Van-Dúnem, que já viveu seis anos no Brasil, a situação está mudando, mas ainda há um longo caminho pela frente.
Presente em Salvador na inauguração da exposição Luanda Smooth and Rave 1, o sociólogo apresentou aos brasileiros um pouco da história de Angola e fez uma reflexão sobre Luanda contemporânea. Por que essa cidade de seis milhões de habitantes, que acolheu tantas pessoas de tantos cantos, se desorganizou, se construiu, avançou e nunca parou de crescer foi batizada de suave e frenética? O que ela representa, simboliza, comunica? Com quem ela se relaciona, a quem pertence, quais são os seus desafios e peculiaridades?
Sua visão como sociólogo dialoga de forma interessante com as obras apresentadas na exposição Luanda Smooth and Rave 1|Salvador. Van-Dúnem destaca a importância de projetos artísticos em comum. “Ao mostrar aos brasileiros artistas africanos contemporâneos, os estereótipos e mitos que existem sobre o continente são desconstruídos, e isso é muito importante.” Segundo ele, a arte também pode ajudar a levar para Angola uma percepção mais aprofundada e complexa da realidade brasileira, hoje reduzida ao que as emissoras brasileiras que transmitem ao continente africano apresentam.
Fazer com que a arte contemporânea, a música, o teatro, a dança e as diversas outras manifestações culturais circulem de um lado para o outro do Atlântico permite revelar, sem condicionamentos, aos angolanos, aos africanos, aos brasileiros e ao mundo, a história e a cultura de um passado recente e longínquo em comum para que se possa compreender a história contemporânea dessa duas localidades, suas inter-relações e a sua relação com o mundo. Além disso, enxergar e entender o universo do outro é uma forma de se conhecer melhor. Conhecer o que está fora é uma forma de repensar o que está dentro. E essa experiência tem muito a acrescentar aos dois lados.
Fotografias de Juliana Borges