As Formigas, a guerra, o actor e a experiência, peça de Rogério de Carvalho
Imagine-se Boris Vian em português e em mucubal, língua de uma etnia do sul de Angola que vive entre os desertos Namibe e Kalahari. Além da experiência semântico-linguística, que convoca o espectador para duas culturas com significados diferentes, o diálogo em conflito, as sonoridades e tradução das duas línguas constroem o próprio material dramático da peça. A complexidade começa logo aí. As Formigas, com encenação de Rogério de Carvalho e interpretação de Meirinho Mendes e Dulce Baptista, não faz nem uma ilustração do texto nem particulariza o acontecimento da guerra.
Passar de um universo literário para uma realidade teatral
Primeiro houve uma residência artística de um mês na cidade do Namibe, sul de Angola, proporcionada pela Fundação Sindika Dokolo (durante a preparação da 2ª Trienal de Luanda, 2010). Tempo apertado, ainda para mais com a malária de que os actores padeceram, para trabalhar um texto tão complexo e apaixonante. Foi nesta residência que se chegou da matéria literária à construção de uma narrativa dramática.
Seguiu-se a “construção de partituras por acções físicas e palavras” até chegarem à fase da montagem. É que o encenador angolano Rogério de Carvalho tem como metodologia a estruturação de planos de sequência a partir de acções improvisadas pelos actores, neste caso no contexto da novela de Boris Vian. E o actor é sempre o centro do seu trabalho. “Não seguimos o processo habitual de construção de uma dramaturgia. Fomos construindo a partir do actor, daí a pureza do resultado”.
Não foi um processo fácil, pôr em palco duas línguas diferentes, mas o próprio conflito linguístico ajudou-os a pouco e pouco a ir avançando. “Daí também a necessidade de harmonizar e trabalhar sonoridades às quais não estávamos habituados”, conta o encenador. “A preocupação não era contar uma história, mas sim a vibração de duas línguas num espaço comum de comunicação. Não se tratava de trabalhar ao nível de acções realistas da vida quotidiana. Se de processo se pode falar, era um processo escondido em relação a cada um de nós.”
A guerra de que o texto fala é de todos mas em Angola percebe-se melhor
Podia ser o desembarque das tropas americanas na Normandia que punha fim à 2ª Guerra Mundial. Mas “guerra é guerra e nada mais. Sejam elas ideológicas, coloniais, culturais, tribais, raciais ou mesmo familiares, todas as guerras são horríveis, provocam destruição, perda de valores morais e esvaziamento do valor da vida. Não houve nenhum momento da minha existência em que a humanidade não estivesse em guerra.” Palavras do actor angolano Meirinho Mendes, que sabe bem o que significa ter um país em guerra até à exaustão, para lá da exaustão, da qual ainda estão todos a ressacar, nem passou uma década, e que gostava de ver este tema debatido com mais profundidade. “Trata-se de algo que está muito presente no nosso imaginário colectivo. Não vamos conseguir apagar as marcas da guerra a que estivemos submetidos durante tantas décadas, ainda na memória dos angolanos, se não abordarmos o tema com frontalidade, sem medo, para que possamos perceber o horror e a dureza desta mesma guerra, o vazio irreparável que, directa ou indirectamente, deixou em todos nós.”
Ao combinar o falso realismo com o delírio implícito no texto As Formigas, nos vários contos onde a farsa surge do drama, a raiva é pungente e o humor um “exagero feroz”. O potencial de base é incrível. A comunicação deste texto com Angola deve-se precisamente a esse carácter universal que vem do particular. “Dentro do contexto angolano é fácil observar as situações propostas no espectáculo. Não procuramos uniformizar o ponto de vista do espectador. Cada um processa o seu próprio imaginário, vivendo o espectáculo no enquadramento da sua história individual, na relação com a História recente de Angola. São marcas e feridas de uma luta fratricida que a tragédia grega nos dá como exemplo”, explica o encenador.
É um texto cuja força não deixa ninguém indiferente, a simples permissão e estímulo para matar outro ser humano é algo que dá sempre que pensar. “Neste espectáculo vemos o fluxo da consciência de um indivíduo que está a narrar uma guerra. Através do seu relato percebemos o horror das imagens”, que já lá estão, nos actos da guerra.
Depois de uma breve apresentação no Namibe, o espectáculo estreou em Luanda, e foi apresentado no Grand Théâtre de Bordeaux, integrado no evento LUANDA, SMOOTH AND RAVE, no Brasil em Curitiba e Salvador da Bahia, e em Portugal no Festival de Almada.
Nos quatro dias de exibição em Luanda houve pessoas que assistiram todos os dias, por não se tratar de um espectáculo de fácil leitura e haver necessidade de perceber melhor, e porque encontravam semelhanças com a história mais recente de Angola. Algumas abandonavam o espaço durante o espectáculo sem perceber nada daquilo, outras choravam, porque ali viram uma sessão de exorcismo.
Trabalho de Rogério de Carvalho em Angola
A actividade de Rogério de Carvalho em Angola, que tem sido ligada às instituições mais vocacionadas para a contemporaneidade teatral em Angola: o Elinga Teatro e a Fundação Sindika Dokolo, não lhe poupa as reservas e cuidados para não compelir a um teatro europeu. “E é natural que assim aconteça. Não se pretende implantar nem impor qualquer método de técnicas de actor”, ressalva. Fez workshops em 1998 de onde saíram actores como o Virgílio e o Carlão. Participou em acções de formação na 1ª Trienal de Luanda, trabalhando a expressão corporal e voz numa residência de dois meses em 2006 de que resultou o espectáculo Os Negros, a partir de Jean Genet, apresentado no Teatro Nacional São João, no Porto, em Outubro 2006, com um elenco de actores africanos ou de origem africana.
Em Angola, Rogério trabalha nestes núcleos de formação onde são ministradas oficinas de interpretação com vista a trabalhos futuros. Assim, vai de encontro e reflecte as resistências e sintonias que fazem parte do próprio trabalho.
“O teatro é uma arte efémera, estamos sempre em processo de aprendizagem, em mudança contínua. Fazer teatro implica um trabalho muito intenso, um constante movimento. O trabalho de teatro em Angola, actualmente, vive dessas resistências e sintonias. Há um gerir de situações que se reflectem na produção de espectáculos ou na gestação de um núcleo de teatro. Há vários problemas que podemos sintetizar nos estímulos do público e privados, na formação de actores, nos espaços adequados, na profissionalização.”
Numa sociedade como a angolana que vive actualmente na exaltação da riqueza e numa procura materialista e de sobrevivência, em que os critérios de avaliação das pessoas estão apenas ligados ao dinheiro, poder e propriedade, ficam ofuscadas uma série de acções milagrosas e práticas de solidariedade do dia-a-dia. “O teatro pode ultrapassar essa barreira que esconde o processo de intimidade que as pessoas transportam. Pode ajudar na transcendência do ser humano perante a morte, perante o outro, perante si próprio. O teatro procura encontrar o humanismo e é, sem dúvida, uma necessidade que revela o espírito, as ansiedades e os problemas da sua própria época.” O teatro será sempre moderno ao estar no espírito da sua época, trata-se de um grande espelho que permite ver mais do que a imagem.
Rogério, em vez de falar em fazer teatro, prefere falar em trocar experiências num intercâmbio vivencial para chegar a uma história contada no plural.
Os angolanos já tinham podido ver teatro assim, sem narrativa fixa, em evolução e vozes colectivas, na peça Os Negros. Porém, como encenar uma peça é, para ele, “gerir o convívio entre as pessoas e as informações que os actores trazem é a base com que esta se constrói”, com o seu corpo e a sua realidade, tudo isso muda em função do contexto em que é produzida. Assim sendo, a peça Os Negros, de Jean Genet, originou um resultado muito diferente em Angola e em Portugal.
Podemos identificar uma linha comum ao trabalho do Rogério: evitar o dogma de ter de contar uma história, dar às narrativas um princípio, meio e fim, em formato de intriga, como se tudo tivesse uma sequência diacrónica, ou esse jogo de simulação de personagens do teatro. Rogério olha para o teatro como o meio para ir além daquilo que nos é visível e perceptível, uma aproximação ao jogo da vida, da sociedade e do indivíduo, que se confronta com os seus dramas internos, a sua integração na comunidade, com os problemas sociais e políticos, e se frustra com a incapacidade de intervir. “Procuro encontrar a espiritualidade que poderá existir no ser humano.” Esse jogo vive das situações e do próprio actor que, nas suas acções físicas, “cria mundos e formas que terão ecos no imaginário do espectador activamente e interpretadas já segundo a própria avaliação de quem vê.”
Dois actores encontram-se
Recordações e memória associada às imagens sensíveis, a violência da vida e da morte, o espaço cénico e o espaço da palavra, tanta matéria para os actores, desde logo, trabalharem. “O actor e o personagem vivem naturalmente em conflito num só corpo, uma só mente, isso leva-nos a estar em permanente revolução com a nossa arte.” É Meirinho Mendes que fala, actor angolano que iniciou a sua carreira em Luanda e já fez muito teatro em Portugal e Espanha.
Rogério compreende os seus actores de As Formigas como “duas pessoas de temperamentos e indiossincracias, maneiras de estar e ver o mundo muito diferentes. Sinto que essas diferenças ajudam a criação dos actores transformando-se em resultados complementares e não antagónicos. Há neles uma atitude de arrogância positiva face a um material que exigia uma rebeldia por parte deles.”
Haverá especificidades para o actor africano?, pergunto. “Neste caso o actor angolano não pode nem deixa facilmente cair numa visão de fazer teatro pela via da submissão das técnicas do teatro europeu. As suas vidas reflectem realidades diferentes. Talvez a simplicidade e a emoção sejam os valores que mais definem as suas propostas.”
Dulce Baptista, que nasceu no Namibe em 1972 e tem nesta experiência o seu primeiro trabalho teatral, transporta uma riqueza cultural própria das suas origens. Viveu até aos 20 anos no seio do grupo Mucubal, pastores de gado e nómadas do deserto, de que é oriunda. “É um investimento forte para um país que pretende fomentar a arte dramática ao nível das suas raízes culturais. É uma actriz que, no palco, se transfigura e nos transmite a Coisa que a representação procura revelar.” Em relação a Meirinho, Rogério pensa que a experiência do actor faz com que a ingenuidade já tenha sido ultrapassada “estando, presentemente, na fase de se confrontar com os problemas que a representação levanta.”
Para Meirinho este foi um projecto muito importante mas fácil é que não, “havia medos, insegurança e um certo desconhecimento da parte da Dulce, como todos um dia tivemos quando entramos em algo que cremos desconhecido.” E ele percebe bem o pau de dois bicos que a experiência acarreta, “é um grande suporte para quem a tem em certas situações, noutras, pode ser um obstáculo ao processo criativo.” Por isso, quando começa um novo trabalho, tenta sempre “partir do zero, estar como virgem, disponível para dar e receber. Basicamente foi isso o que aconteceu entre mim, a Dulce e o Rogério, partilhamos as experiências que possuímos individualmente, e depois usamo-las dentro do colectivo. Creio ter sido esta a chave para que a Dulce pudesse entrar e conquistar o seu espaço neste universo tão belo e vasto e, ao mesmo tempo, muito exigente como é o da representação e do teatro.”
Diz ainda o actor, cujo trabalho com o Rogério fez-lhe repensar em toda a sua relação com o teatro: “Pode representar-se bem ou representar mal, o importante é representar com verdade. Representar verdadeiramente significa estar certo, ser lógico, coerente, pensar, lutar, sentir e agir em uníssono com o papel.” Das coisas mais interessantes no trabalho do Rogério, refere ainda Meirinho Mendes “é o respeito que ele tem para com o teatro e os seus mais diversos intervenientes, a devoção inequívoca que põe no seu trabalho, a simplicidade com que leva a sua própria vida, o cuidado e sensibilidade na transmissão dos conhecimentos que possui, apesar da rigidez dos seus métodos. Desconstrói os egos e vaidades do ser para depois construir a verdade do actor sobre bases sólidas.”
Rogério de Carvalho tem uma grande experiência e quer passar essa bagagem para as gerações vindouras, é uma pessoa exigente que tenta encontrar o lado mais profundo do actor. Nesta peça, sintetiza Meirinho, a dificuldade deve-se ao conflito dos actores com os próprios sentimentos, “com aquilo que desconhecemos sobre nós próprios. Admiro-o não só pelo seu trabalho mas pelo estilo de vida. É um ‘bicho do teatro’. É uma pessoa que me faz acreditar.”
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