Gestos solenes na poeira do terreiro, o tchiloli em São Tomé e Príncipe
fotografias da autora.
Nas ilhas atravessadas pelo Equador gerou-se um dos mais curiosos fenómenos performativos de imaginário popular no qual o encontro de culturas - por violências da história -, e a transformadora crioulização, deu origem a um surpreendente teatro tradicional, etno-teatro, cerimónia que combina música, movimento e um texto do século XVI.
Elenquemos alguns dos traços do tchiloli há muitos anos praticado em S. Tomé e Príncipe e agora em decrescente expressão. O texto representado é, na sua base, a versão do poeta madeirense Baltazar Dias da Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno (1664), que acontece mais em S. Tomé, e o Auto de Floripes, representado no dia de São Lourenço (15/8) na ilha do Príncipe. Inspirado em romances castelhanos que, por sua vez, derivam do ciclo carolíngio do século XI, conta a história de Dom Carloto, filho e herdeiro do imperador Carlos Magno que, numa caçada, assassina o seu melhor amigo, de nome Valdevinos, sobrinho do marquês de Mântua. Tal crime passional (motivado pela paixão de Dom Carloto por Sibila, esposa de Valdevinos), leva ambas as famílias a debaterem questões de lei, de justiça e de governação. O imperador é confrontado com o dilema de escolher entre o interesse nacional e o amor paternal, sendo que o filho acaba por ser executado na fortaleza imperial.
Sendo a história apropriada numa terra que nunca teve monarquia, foram sendo acrescentados elementos judiciais e outros mais contemporâneos, numa sobreposição de tempos e de estéticas, de gestos solenes e sumptuosos reencenados na poeira do terreiro.
O tchiloli tem lugar na terra batida de um quintal ou numa praça pública, preservando o carácter didático e comunitário do palco aberto, observável de todos os ângulos. Num extremo do palco ergue-se a corte alta sobre estacas de madeira, coberta com ramos de palmeira, representando o palácio imperial. No lado oposto, no chão, a palhota feita de ramos verdes representa a corte baixa da família enlutada dos Mântua. Durante a apresentação, um pequeno caixão colocado numa cadeira no meio do palco simboliza o defunto Valdevinos.
Era comum assistir-se ao tchiloli sobretudo durante a gravana (estação seca) em festas religiosas, populares ou eventos públicos. Tornou-se um forte atrativo do turismo cultural, sendo os grupos convocados para demonstrações aquando de eventos culturais, de acordo com uma remuneração.
Assisti pela primeira vez a excertos de tchiloli na Bienal Internacional de Artes de STP (em 2008 e em 2011). Em 2013 filmámos a atuação do grupo Florentina de Caixão Grande para um pequeno apontamento num documentário sobre os Naturalistas em África, produzido pela Terratreme.
Os grupos de tchiloli, conhecidos por tragédias, têm cerca de trinta elementos e pertencem a determinada localidade de forros, compondo um mosaico de vários pontos da ilha. Nos últimos tempos os grupos, manifestamente poucos e com atuações cada vez mais esporádicas, passam grandes dificuldades. Os “atores”, normalmente agricultores e pescadores, interpretavam de forma vitalícia as mesmas personagens transmitidas de pai para filho. Um dos atores diz-me que ele é já “a 5ª dinastia do D. Carloto!”. O tchiloli tem esmorecido devido à desmotivação da parte das novas gerações e pelo desinteresse na sua preservação. Assim, apesar de ser referido como emblemática manifestação cultural, o tchiloli corre o risco de se extinguir pois a sua sobrevivência depende de ser uma prática cultural constantemente recriada, não como folclore cristalizado para turista ver.
Diz-se que a palavra tchiloli deriva do português tiroliro (pífaro), a flauta transversal que se toca durante o espetáculo. Mas no estudo do antropólogo Paulo Valverde (1998) é colocada a hipótese etimológica entre tchiloli e teoria (Rougé 1990), evocando um certo ato de distância (“theoria sugere a apreensão de uma longa parcela de território a partir de uma distância considerável”, Richard Rorty). De fato, o tchiloli joga muito com a distância e proximidade na sua apreensão e observação. No decorrer das apresentações que podem chegar a cinco horas de trama entre corte alta e baixa, julgamento e condolências, os atores movimentam-se de um lado para o outro, em gestos que desenham um espaço amplamente percorrido, com sobreposição de cenas, mas também esperas onde só a música, monotemática, permanece. Fundamental no espetáculo, é ela que dá o mote às danças e às cenas mimadas, sublinhando e propiciando a ação e movimentos das personagens. A orquestra tem tocadores de flautas, tambores, bombos e vários sucalos (instrumento nativo constituído por um cesto com sementes no interior). Os atores entram e saem de cena, aguardam a sua vez no recinto à vista de todos, vestem-se em barracas improvisadas, tratam de outros assuntos se preciso for.
A figura do espectador tem um papel atuante. Tomando de empréstimo a terminologia antropológica, é um observador participante. O espetáculo não negligencia nenhuma das suas várias fases, mas não será estranho se for interrompido por uma conversa entre intérpretes e assistência ou até efetuar-se alguma refeição. O espectador é integrado no espaço, permanecendo de pé, de braços cruzados, ou sentado no chão, presente em fragmentos do espetáculo e por divertimento. A sua atenção prende-se a pormenores pois, por norma, já terá assistido àquela cena inúmeras vezes e sabe de cor todas as falas e marcações. Tem também um papel de colaborador com os atores, retoma, imita, comenta o que se passa em voz alta, integrando acontecimentos sociais e políticos da vida do país, ou as más-línguas, não fosse a sátira uma ferramenta para evidenciar os vícios e os abusos sociais e políticos.
As crianças imitam os movimentos de Reinaldo ou do Capitão Montalvão, mimetizam a feminilidade das damas da rainha (os papéis femininos são interpretados por homens como no teatro vicentino). As cadeiras destinam-se a convidados de fora da localidade, personalidades importantes do país ou estrangeiros. Paulo Valverde fala do fascínio que o tchiloli exerce para o espectador de fora, preso ao mistério daquele improvável encontro entre Idade Média, Renascença e Europa, em pleno Equador africano, criando uma “ilusão ótica temporal”, uma espécie de projeção no tempo num cenário improvável.
Dos longos debates acerca da origem do tchiloli nas ilhas (quando e como se começou a encenar este texto, como se foi passando o legado, como foi sendo transformado esta apropriação, o seu posicionamento etc) não nos vamos ocupar aqui (SEIBERT 2009). Segundo Valverde, é nos anos 60 e 70, mobilizada pelo sector cultural da administração colonial, que esta prática começa a ser apresentada, com presença em festas coloniais e em concursos nos quais se disputa a originalidade de cada grupo (a partir de um cânone comum, vão-se acentuando subtis diferenças nos acessórios e nos movimentos) e até uma (limitada) internacionalização das atuações que fez com que muitos participantes se obrigassem aos ensaios (muitas vezes caminhando longos quilómetros) na perspetiva de viajarem e conhecerem mundo (oportunidade única para muitos ilhéus). A partir de então, a manifestação cultural das populações do interior das ilhas passa a ser um espetáculo de singularidade etnográfica, ganhando teatralidade pelos elementos cénicos como palavra, som, luz, adereços e cenário.
Ao ler a tese da investigadora Ana Pais (2015) sobre a teoria dos afetos no acontecimento teatral, deparei-me com o conceito de communitas de Schechner e Turner. Relacionada com a função artística e política da performance e distinta da ideia de comunidade, communitas caracteriza as relações estabelecidas em zonas liminares entre aqueles que participam do ritual por laços diretos, não racionais e igualitários, promovendo uma relação não-mediada entre os participantes do ritual – atores e espectadores –, à margem das normas sociais (Turner apud SCHECHNER 2002, 71). Este encontro que o teatro/performance promove implica uma transformação – política, social, artística – que, por sua vez, deriva do ritual que gera este sentido de communitas. O paradigma antropológico está na origem dos Estudos de Performance: a experiência cultural do teatro – o ritual faz repensar politicamente os tipos de performance nos quais o corpo assume um lugar de destaque.
“A relação com o público é entendida como um processo de comunicação no qual o espetador é um intérprete, ou uma prática cultural na qual o espetador é participante. Em particular o trabalho de Victor Turner sobre o ritual, permitiu pensar o teatro enquanto prática social inscrita num contexto cultural amplo, bem como refletir sobre práticas não-artísticas à luz do novo conceito operativo: a performance.” (PAIS, 19)
O etnólogo Jean Yves Loude (2012) salienta ainda que uma das principais motivações no tchiloli é o culto dos antepassados e, nessa relação, a força comunitária de catarse de grupo, em efeito de terapia coletiva. Além de conseguirem, através dele, ludibriar o controlo da sua expressividade é de admirar a resiliência da sua manifestação ao longo do tempo. “Não sabemos quando foi a primeira vez, mas após um século e meio é praticado por um povo pouco alfabetizado, num português do século XVI e com uma duração longa.” Acrescenta “Nunca se diz ‘o ator vai bem’ mas sim ‘o figurante está montado’ por um antepassado. Eles têm de convidar os mortos, é quase vudu: um ritual para tratar a sociedade global.”
O investigador Gerhard Seibert, que trabalhou muito sobre tchiloli, nomeadaente no artigo «Carlos Magno no Equador. A introdução do Tchiloli em São Tomé», refere que tradicionalmente uma tragédia do Tchiloli está associada a uma determinada localidade dos forros que viviam em segregação espacial dos contratados de Angola (os de Cabo Verde e de Moçambique vieram apenas a partir de 1903 e de 1908 respectivamente), cujas condições de vida e de trabalho não eram muito diferentes das da escravatura. Mas os serviçais angolanos nas roças não tinham acesso às manifestações culturais (tchiloli, dança sócópé) e religiosas (irmandades) dos forros. Rega geral, antigamente não era possível que um serviçal angolano podia participar numa atuação do Tchiloli, que só é “introduzido em S.Tomé nos fins do séc. XIX.”
Os atores manifestam um certo pragmatismo com a performance, respeitando as histórias que os mais-velhos lhes contam, sendo fundamental esta transmissão. Daí a centralidade do traje, acessórios e figurinos para contar a história, desenvolvendo-se “uma funcional e a-história génese da tragédia no “trajo”, que é um dos elementos mais marcantes, visual e ideologicamente.” (VALVERDE, 224) Confecionada pelas famílias ou por pessoas da terra, a indumentária assenta numa estética de materiais de recuperação: restos de fitas, estofos, papéis de chocolate, os espelhos, os dourados, as luvas caseiras, os óculos, esculturas policromadas do século passado, telefones e máquinas de escrever. Para Gründ (2006), todo este material, sempre renovado, ganha valor simbólico de luxo a partir de materiais pobres. Os objetos são sacralizados porque investidos de força durante a atuação e na sua preservação no tempo e passagem de uns para outros, que é um ritual de transferência da personagem para outra pessoa. É de lembrar como os objetos jogaram tanto como símbolos do poder, por exemplo nos contactos com os estrangeiros, com os quais os nativos trocavam produtos minerais ou agrícolas por produtos industrializados, bugigangas utilizadas como símbolos de poder nas suas comunidades (caso dos espelhos, das missangas entre outros). O poder militar faz-se sentir nos uniformes militares e nas luvas brancas; o poder da Administração nos fatos, telefone, máquina de escrever, óculos, pasta; o poder do saber nas fitas dos estudantes. As máscaras, menores que o rosto, são feitas de rede de mosquiteiro e pintadas de branco onde estão desenhados os olhos e a boca, e colaboram para um certo mistério de toda a encenação. O guarda-roupa foi recuperado ao longo do tempo, apresentando um anacronismo interessante acrescentando-se sempre acessórios atuais.
O tchiloli é uma história de sangue e de justiça de que os santomenses se apropriaram transformando-a num espetáculo único. Aparentemente de grande ingenuidade popular, o tchiloli constitui uma forma de resistência cultural, porém, as sobrevivências culturais dependem das práticas e da relação com o lugar e, nesse sentido, com o público espetador atuante. Urge a defesa deste património cultural, em primeiro lugar pela sua prática.
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BIBLIOGRAFIA
GRÜND, Françoise (2006) Le Tchiloli de São Tomé e Prúncipe, Éditions Magellan et Conpagnie, Paris
LOUDE, Jean-Yves, “O contributo africano: valorizar o resultado optimista de uma história péssima” entrevista a Marta Lança, jornal Público 3/3/2012
PAIS, Ana (2015) Comoção: os ritmos afectivos do acontecimento teatral, tese de doutoramento em Estudos de Teatro, Faculdade de Letras- Universidade de Lisboa.
ROUGÉ, Jean Louis (1990), “Pourquoi Tchiloli” Internationale de l’Imaginaire Printemps, 57-60.
SCHECHNER, Richard (1973) Environmental Theatre. 1994th ed. Londres e Nova Iorque: Applause.
———–(1985) Between Theater and Anthropology. Filadelfia: University of Pennsylvania Press.
SCHECHNER, Richard (2002) Performance Studies – an Introduction. Londres e Nova Iorque: Routlege.
SEIBERT, Gerhard (2009) Carlos Magno no Equador A introdução do tchiloli em São Tomé Latitudes. Cahiers Lusophones. nº 36, Outubro, .16-20 disponível em http://www.buala.org/pt/palcos/carlos-magno-no-equador-a-introducao-do-t...
VALVERDE, Paulo (1998), “Carlos Magno e as artes da morte: Estudo sobre o Tchiloli da Ilha de São Tomé”, in: Etnográfica, vol. II (2), 221-250.