Mostrar e pensar o que se anda a fazer - festivais de teatro de língua portuguesa

A diversidade desta comunidade em construção, que roça a língua de Luís de Camões, é feita de abusivas disparidades. Por exemplo, se compararmos uma cidade como S. Paulo com 10 milhões de habitantes a um país como S. Tomé e Príncipe de 117 mil: entre a formiga e o elefante escolhemos o São de ambos e o surpreendente facto de se falar português em mundos e estilos de vida tão diferentes. Se as diferenças são de verdade os elementos mais interessantes, a substância que nos dá a tal curiosidade pelo outro, então devem ser mostradas e valorizadas sem unificar nem reduzir. A troca faz-se desse cuidado. Os Festivais reúnem as diferenças para engrossar o caldo na panela da língua que nos liga, e festejá-la na sua grandeza e miudezas.

Durante metade do ano tem festival de teatro em alguma cidade de um país de língua portuguesa, quase todos os dias, é só procurar, na outra metade há pelo menos um por mês. Foi o que a revista Cena Aberta apurou ao tentar calendarizar os festivais internacionais de língua portuguesa. Nisto percebe-se que o interesse mútuo e intercâmbio não são apenas conversa de políticos, a sua manifestação é evidente, mas há ainda muito para fazer e dar a conhecer noutros sectores, e muitos discursos para desempoeirar.

A Descoberta das Américas (Circo Pequenos Emprendimentos), foto de João Barbosa, Ass. MindelactA Descoberta das Américas (Circo Pequenos Emprendimentos), foto de João Barbosa, Ass. Mindelact

No Brasil, o Circuito de Teatro em Língua Portuguesa em S. Paulo, o FESTILUSO do Piauí, o FESTLIP do Rio. O Festival Mindelact, em Cabo Verde, já na 16ª edição. O Festival de Agosto de Maputo, que pretendem retomar, o Festival de Teatro e Artes de Luanda, a pensar a sua 2ª edição. Em Portugal, o FITEI, o MITO - Mostra Internacional de Teatro de Oeiras, e a importante iniciativa rotativa que foi a Estação da Cena Lusófona, fora do espaço lusófono o Festival del Sur - festival dos três Continentes, das Canárias, envolvendo companhias da Europa, África e América. Isto só para referir alguns.

Trata-se de iniciativas que aprofundam o conhecimento e a troca, artística e cultural, entre a comunidade teatral dentro da comunidade de língua portuguesa. Os estereótipos sobre os vários países, já só os queremos se for para subvertê-los, e o teatro, que vive tanto da palavra, permite-nos ouvi-la e pensá-la nas várias gírias e sotaques, léxicos e humores, como uma descoberta constante. É um privilégio.

Companhias e artistas viajam para apresentarem os seus trabalhos uns aos outros e a um público que refresca o olhar do seu habitual nicho de mercado, nos territórios nacionais. O trabalho ganha em visibilidade e reflexão, pois o debate entre pessoas da áreaajuda a desenvolver critérios de exigência e de comunicação sobre aquilo que se apresenta. Um Festival tem uma dimensão festiva, não menos importante que tudo o resto, e contribui para esse intercâmbio no espaço lusófono, entre agentes culturais e representações das realidades de cada um. Deve-se investir em Festivais, mas não como um fim em si ou como a grande meta de um grupo de teatro, pois, sem produção teatral de qualidade e formação, o festival será apenas um instrumento decorativo de currículos.

Circuito de Teatro em Português

O Circuito, produzido pela Dragão 7 em S. Paulo, trouxe a esta 5ª edição de 2009 três companhias portuguesas, uma brasileira e uma angolana. A Escola da Noite (de Coimbra) levou um Gil Vicente, a companhia brasileira apresentou a peça Inês de Castro, curiosa perspectiva brasileira da História portuguesa, de Matosinhos veio um musical com texto de Carlos T. Coincidência, apenas, de algumas temáticas e textos oriundos da cultura portuguesa. Já o Teatro Artimagem levou a peça O Escurial de Michel de Ghelderode.

A actriz portuguesa e mestre em dramaturgia caboverdiana Micaela Barbosa, foi lá colaborar na equipa de produção. Conta-nos que, em geral, afigurou-se “muito interessante a troca de ideias entre as diferentes realidade teatrais”.

O Circuito não acontece somente na cidade de S. Paulo. Os grupos encontram-se no primeiro dia, conversam sobre a suas experiências de criação e produção, depois circulam por 10 dias com as suas peças, cada um faz um caminho diferente pelas várias cidades do interior, “as peças acontecem ao mesmo tempo e voltamos a nos encontrar todos no último dia para fazer um balanço. É bem intensivo!”

As variantes do português comunicam perfeitamente, talvez “porque nas cidades, de alguma forma já vêm recebendo espectáculos portugueses, já não acontece o estranhamento ao ‘português de Portugal’ como acontecia há uns anos atrás. Recordo a primeira vez que me apresentei no Brasil, em 2004, como actriz, senti alguma resistência ou mesmo dificuldades em entender o texto da parte do público, mais no Rio do que em S. Paulo.”

 Os Amantes (GTCCP - IC), foto de João Barbosa, Ass. Mindelact Os Amantes (GTCCP - IC), foto de João Barbosa, Ass. Mindelact

Realidades díspares  

Às vezes as abordagens dos grupos ficam vulneráveis às políticas culturais (ou ausência das mesmas) e dependentes do nível de formação oficial dos países de onde vêm, embora possam ser questionadas as clássicas conotações do que é ou não amadorismo.

É certo que Brasil e Portugal podem demarcar-se em termos técnicos, devido à sua realidade teatral profissionalizante e condições de produção mais asseguradas. A nível de produção, o Brasil tem uma política de mecenato cultural mais consolidada do que em Portugal, cujos apoios privados são quase inexistentes. E, pela própria dimensão do país, os espectáculos conseguem uma boa receita só na bilheteria.

Em África quase não há escolas de artes performativas, então, para as companhias africanas é muito importante poder levar o seu trabalho além fronteiras, mostrar a sua arte fora da terra e das condicionantes quase redutoras, vítimas da falta de referências. Os festivais são um estímulo para profissionalizar as companhias, as repercussões no trabalho não aparecem no imediato mas com a experiência da circulação vai-se apurando uma série de insuficiências e carências. Essa internacionalização credibiliza, desenvolve uma competição saudável, faz com que as companhias se disciplinem para ensaios regulares, pois figurar num elenco que se desloca a um festival é igualmente uma oportunidade para viajar e conhecer mundo.

Companhias rumo a festivais

Elinga e grupo do Centro Cultural Português do Mindelo

Como em todos os sectores, os Festivais não fogem à regra do ciclo vicioso e dos monopólios dos territórios artísticos. As companhias que viajam mais são as que têm mais acesso às oportunidades, ou se dinamizam mais, por sua vez, se são os mais vistos, naturalmente têm mais convites, e o ciclo repete-se.

De Cabo Verde, um grupo com grande historial de festivais é o Grupo do Centro Cultural Português do Mindelo, dirigido pela persistência de João Branco, que organiza o Mindelact, festival de teatro do Mindelo, com uma forte componente de formação.. Esteve várias vezes no FESTILIP, foi ao festival de Angola e outros.

 A Ilha Fantástica (Grupo Nova Casa), foto de João Barbosa, Ass. Mindelact A Ilha Fantástica (Grupo Nova Casa), foto de João Barbosa, Ass. Mindelact

De Angola, o Elinga Teatro é frequentemente convidado. Apresentou no Circuito “um teatro mais engajado socialmente”, explica Micaela, que acompanhou o Elinga durante o evento. “Apesar de ambos africanos, é uma realidade completamente diferente da caboverdiana. Apesar do Elinga se considerar um grupo amador ao nível de condições de produção, têm um engajamento diferente.”

No contexto da maioria dos grupos angolanos, que são da periferia e auto-empreendedores, encenam-se a si próprios sem meios técnicos nem formação, com um imenso voluntarismo, o Elinga Teatro de Luanda é de facto uma excepção de persistência num determinado tipo de teatro. Apesar das carências regulares em Luanda, como a falta de energia, transporte, um elenco flutuante, já apresentou 36 produções (em 22 anos), a maioria peças da autoria de Mena Abrantes, encenador do grupo, mas também de outros angolanos como Pepetela, Ondjaki e Manuel Rui, e outros como Jean Anouilh, Amin Maalouf,  José Saramago, os brasileiros Plínio Marcos, João Cabral de Melo Neto e Alcione Araújo; os espanhóis Garcia Lorca e Alfonso Castelao; o inglês Peter Shaffer; o norueguês Henrik Ibsen e o sul-africano Percy Mtwa.

Em Cabo Verde, o Mindelact é um exemplo de festival que dinamiza a produção teatral nas ilhas, o turismo cultural pois já é o espelho da cidade do Mindelo. Tem uma rede internacional de reincidentes, como Miguel Seabra, do Teatro Meridional, Marionetas do Porto, Mutumbela Gogo de Moçambique, Nelson Xavier de Brasil, Bernard Massuir da Bélgica, Elinga Teatro de Angola, Dos-a-Deux de Brasil-França, Marcelo Ndong da Guiné Equatorial, “que ajudam a construir e a prestigiar essa utopia chamada Mindelact” (ver artigo de César Shofield Cardoso).  É também uma “boa força motriz para a criação porque é um espaço de privilégio para novos autores e encenadores que, a partir dali, podem ter visibilidade”, lembra Micaela Barbosa. O caboverdiano Mário Lúcio Sousa é um dramaturgo ligado ao Mindelact, como outros da terra, Espírito Santo Silva e Buchico, cujas peças estrearam no âmbito do Mindelact.

Mas é, sobretudo, o prazer de fazer teatro que está por detrás de tudo isto. Esse bichinho que dá toda a coragem para mostrar publicamente emoções, histórias, gestos, universos que se enredam uns nos outros e nesta língua roçadora.

Entrevista a Pedro Rodrigues da Cena Lusófona

De que maneira os festivais estimulam a profissionalização das companhias?

Por um lado, porque propiciam o encontro com outras companhias, vindas de outros países, que transportam consigo outras culturas e outras formas de fazer teatro. Dessa troca resulta um enriquecimento imediato nos seus próprios processos de criação artística.

Por outro lado, os festivais são normalmente aproveitados para organizar acções de formação, dirigidas pelos artistas ou companhias que neles estão representados. Estas iniciativas são particularmente interessantes em países onde as necessidades de formação (artística, técnica, de produção) são ainda sentidas com maior intensidade, nomeadamente nos países africanos de língua portuguesa. O sucesso alcançado pelas sucessivas edições do Mindelact, em Cabo Verde, o lançamento do Festival de Teatro e Artes de Luanda em 2008 (que esperamos que possa ter continuidade) e a nossa própria experiência com as edições da “Estação” que realizámos comprovam isso mesmo.

É verdade que dinamizam a língua e as trocas culturais?

Os Festivais são sobretudo locais de encontro. Com os públicos, claro, mas também entre artistas. Embora a política de intercâmbio não possa esgotar-se aí (e por vezes a tentação é grande), são um valioso instrumento para a criação de uma comunidade artística no espaço da CPLP. Os Festivais estimulam o conhecimento inter-pessoal entre os agentes dos vários países, o conhecimento in loco das condições em que trabalham os grupos anfitriões e o conhecimento directo dos espectáculos apresentados por cada uma das outras companhias. Todas estas condições são essenciais para a concepção e concretização de políticas de intercâmbio consistentes.

O que acham mais interessante no circuito dos festivais?

Essa dimensão de encontro e do que ele potencia. Os festivais não podem ser encarados como um fim em si mesmo, apesar do mediatismo reforçado que conseguem obter, mas sim como um dos instrumentos para a consolidação de uma comunidade em contacto permanente, no seio da qual possam surgir outras colaborações, trocas, intercâmbios, etc.

Que iniciativa vocês fazem neste âmbito?

No âmbito específico dos festivais, criámos a “Estação”, um festival rotativo pelos vários países de língua portuguesa, em que procurámos sempre ter representantes de todos os países da CPLP. Até ao momento, foram concretizadas seis edições: Moçambique (Maputo, 1995), Brasil (Rio de Janeiro, Recife e São Paulo, 1996), Cabo Verde (Mindelo, 1997), Portugal (Braga, Coimbra e Évora em 1999 e Coimbra, em 2003) e São Tomé e Príncipe (2002). Procuramos actualmente reunir as condições necessárias para retomar esta iniciativa, mantendo a rotatividade pelos diversos países. Estamos em permanente contacto com os principais festivais de teatro nos países da CPLP, apoiando-os a diversos níveis: divulgação, circulação de informação e de contactos e ao nível da própria programação, viabilizando a apresentação de alguns espectáculos. Promovemos igualmente iniciativas de encontro e debate que envolvem as organizações destes festivais, na procura de soluções e estratégias comuns para a superação de problemas e para o aprofundamento das relações de parceria. O Encontro Internacional sobre Políticas de Intercâmbio, cuja II edição está agendada para Novembro, em Teresina (Piauí), contará com a presença de mais de uma dezena de festivais dos vários países de língua portuguesa.

 

Publicado na revista PESSOA nº 1

por Marta Lança
Palcos | 24 Dezembro 2010 | festivais de teatro, língua portuguesa, lusofonia, Mindelact