Na guerra, a vida sem filtro - entrevista a Cândida Pinto

As guerras têm vindo a somar-se na sua carteira profissional. Já adquiriu defesas e truques para conseguir trabalhar em cenários bélicos mas continua a surpreender-se com a força das pessoas e a fome de liberdade nas situações mais extremadas e delicadas. Cândida Pinto traz-nos notícias de mundos em viragem, onde destroços, vinganças e luta pela sobrevivência convivem num filme muito antigo mas sempre diferente. As guerras mudaram de configuração desde o Iraque, e nós temos de aprender a digeri-las, críticos e atentos, a partir dos relatos de jornalistas que podiam ser repórteres de guerra.

 

 

Adelino Gomes disse numa entrevista que em Portugal não há verdadeiros repórteres de guerra, existem jornalistas contratados para se deslocarem a zonas de conflito. Concorda com esta afirmação?

Concordo.

 

Como se inscreve nesta categoria?

Sou uma jornalista que, de vez em quando, vai cobrir um conflito. Nós não temos nervo na comunicação social para manter pessoas num conflito. Eu vejo colegas de outros orgãos internacionais que têm uma dimensão diferente da nossa e são especialistas em lidar com conflitos, ficam longos períodos a acompanhá-los, nós vamos apenas duas semanas. 

 

E partem só quando a situação já está no limite…

Quando já rebentou. Vamos ganhando experiência, vamos ficando com alguns elementos que nos permitem ter algumas leituras no terreno. Conheci um correspondente de guerra a sério, o Dexter Filkins do New York Times, que passou três anos e meio em Bagdad. Da Primavera de 2003 ao Outono de 2006, passou dois anos no Afeganistão. São os verdadeiros correspondentes de guerra.

 

Essa falta de nervo tem a ver com uma falta de estrutura?  Se a convidassem para ir três anos para Bagdad aceitava?

Não sei. Esse nervo também é muito económico. Não nos podemos comparar com o New York Times ou a BBC, esses órgãos têm importância à escala mundial de uma forma efectiva. Um escritório do New York Times em Kabul tem carros blindados, segurança e uma panóplia de gente que custa muito dinheiro. O Dexter Filkins escreveu um dos mais interessantes livros sobre um correspondente de guerra, onde diz que houve uma fase em que a pessoa mais bem paga do escritório do New York Times em Bagdad era o segurança. É impossível comparar-nos com esse tipo de estrutura. Nós fazemos o nosso trabalho como jornalistas, vamos lá, experimentamos a coisa, e depois voltamos.

 

Não há zonas de especialização?

Não. Porque também nós não temos em Portugal um músculo de informação internacional muito grande, há uns meios onde tem mais protagonismo do que outros, mas normalmente é uma coisa reduzida. Faz capa quando a coisa explode, mas acompanha-se pouco. O que é que nós sabemos do Afeganistão? Não acompanhamos. Não haver acompanhamento das situações, o acontecimento morrer passado uns tempos, também é culpa dos média.

 

Já regressou a algum lugar onde tenha estado num cenário de guerra, agora apaziguado, para dar continuidade a estórias perdidas?

Em Março estávamos em Tripoli e dissemos: “Havemos de tomar uma cerveja ou um chá de menta em Tripoli”. Mas voltámos lá porque a realidade assim o impôs, porque Tripoli caiu. Já estive no Afeganistão três vezes: em 2001 quando houve a ofensiva americana, em 2005 e depois em 2010, mas muito pela óptica da presença dos militares portugueses. Depois procuro saber como é a vida das pessoas por lá, a vida dos afegãos.

 

O rasto dos portugueses é uma linha sua? Já no trabalho sobre o Mandela e em outros procurou esse ângulo.

Isso é um facilitador, um ponto de partida e de ligação ao país. Eu trabalho numa televisão generalista. Tento normalmente dar a conhecer aos portugueses - porque são o meu público-alvo, e é mais fácil encontrar um ângulo com o qual o público português se identifique -, como é a vida nesses sítios. Há cidadãos normais, com um quotidiano, as pessoas vão trabalhar, vão à escola, têm os seus dilemazinhos quotidianos. Porque muitas vezes colocamos rótulos: no mundo árabe se não são terroristas são primos. No Iraque tinha a preocupação de dar a conhecer que os primeiros atingidos pelos atentados são os iraquianos, eles é que morrem mais. Porque nós damos notícias de soldados americanos que morreram, ingleses e italianos, portugueses, poucos felizmente, mas esquecemo-nos que quem morre mais é quem lá vive.

 

E que aspectos positivos encontra nesses cenários catastróficos?

Imensos, sempre. A realidade surpreende-nos muito mais do que imaginamos, mais do que a ficção. Por exemplo agora na Líbia, com a queda de Tripoli,e desculpem o lugar-comum, é um privilégio assistir a uma mudança de regime com esta força. Arrepia. As pessoas andam na rua em festa. Uma professora universitária líbia dizia: “Nós estamos a viver como se fosse uma festa de aniversário de todos”. Portanto é uma sensação de partilha, de descoberta entre eles. Agradeciam-nos na rua por estarmos a documentar aquilo.

Esta galvanização acaba por menorizar os danos normais numa situação de transição?

Não havia água, não havia luz, não havia comida e eles diziam: “Nós vamos arranjar água e comida amanhã, agora temos liberdade e isso é o mais importante.” Só quem tenha experimentado a ausência de liberdade é que consegue dar-lhe valor. Felizmente já não damos muito valor a isso. Quando se pisam territórios onde falta a liberdade, é muito emocionante, quando ela chega, ver como as pessoas vivem esses momentos, com uma certa ingenuidade, querem ser todas boas.

 

Como é possível salvaguardar a imparcialidade ao relatar esses testemunhos?

Nós nunca somos imparciais. A imparcialidade não existe. Podemos e devemos aproximar-nos o mais possível da verdade. E devemos ser os mais honestos que conseguirmos com as situações que encontramos. Mas somos condicionados por aquilo que somos, pela formação, a educação e a leitura que fazemos. É importante, quando chego a uma situação muito diferente da minha, perceber os comportamentos, tentar interpretá-los. Não quer dizer que sejam valores aos quais vou aderir, mas tentar percebê-los dá-me instrumentos para eu desmontar, transmitir e explicar a complexidade da coisa.

 

E para isso recorre a que tipo de fontes?

Às mais diversas. Tento ter a versão oficial e outras. Procuro várias versões sobre a mesma estória, o mesmo facto. Em Março (2011), em Tripoli, não podíamos falar com um líbio sozinhos. Tudo o que fazíamos era condicionado, eu tinha que dizer isso às pessoas que estava a transmitir apenas aquela versão. As pessoas tinham medo de falar, desapareciam quando falavam.

 

Como se faz essa divisão esclarecedora, muito difícil, entre os vários lados num conflito?

Isso é sempre relativo. As pessoas são as circunstâncias e os momentos. Vejam o que está a acontecer agora, os negros em Tripoli têm uma vida difícil, são acusados de ser mercenários e trabalhar para o Khadafi, têm todos o mesmo rótulo, vão ser julgados. Como? Em que circunstâncias? Isto é muito relativo. Falou-se de alguns feridos, aliados de Khadafi que foram para os hospitais e ali executados. Isso é uma investigaçao que está a ser feita.

 

Mas muitas vezes essas complexidades não saem cá para fora.

É mais fácil. É mais fácil ser linear. Essa complexidade implica investigar, provar, entre os rumores e a prova… É nossa obrigação investigar mais.

 

Dizia numa entrevista que as guerras mais esquisitas e difíceis de lidar eram as mais amadoras, pela imprevisibilidade que trazem. Qual foi a guerra mais difícil onde esteve?

O quadro mudou completamente com o Iraque. Antes do Iraque os territórios eram delimitados. No Kosovo, em 99, tínhamos uma credencial e sabíamos que havia zonas onde não tínhamos problemas e havia zonas onde tínhamos de esconder a credencial pois eram dominadas pelos sérvios. Havia códigos claros: sabíamos o que podíamos fazer num sítio, o que podíamos fazer noutro. Em Angola, durante os anos 90, havia zonas MPLA e zonas UNITA, também conhecíamos os códigos. Em 2003, com o Iraque houve, na minha interpretação, dois momentos altamente significativos para alterar tudo isto: Foi o ataque à sede da Cruz Vermelha Internacional e à sede das Nações Unidas onde morreu o Sérgio Vieira de Mello. A partir dali, acabou. Os territórios deixaram de estar identificados: civil, militar, ONG, jornalista, cada um está por si, cada um tem que perceber o terreno onde se move, cada um deve tomar as suas precauções, o grau de risco é mais elevado, não há zonas com códigos de risco. As coisas alteraram-se completamente a partir dali. Eu acho que isso foi uma mudança total. Houve um conflito para mim muito marcante e muito esquisito, foi Bissau em 1998. Era a capital de um país, muito pequena, rodeada por mar e a junta militar a bombardear para dentro às cegas. E com os senegaleses a controlar. E erros de pontaria, a mandar para o mercado, a mandar para zonas civis, casas… enfim.

 

O que faz a força diplomática para proteger pessoas nessas situações?

Depende da força dos países. A Guiné Bissau não entra no campeonato, não interessa a ninguém, é uma guerra abandonada, coberta por Portugal, França e pouco mais. Passava ao lado.

 

Como é no seu caso a velha questão de ser uma mulher numa guerra de homens?

Tem muito a ver com a interpretação dos sinais e dos comportamentos. Por exemplo nos países árabes em algumas circunstâncias. Aconteceu-me em Bagdad e em Tripoli. Os imãs de mesquitas não falam com uma mulher, não olham directamente para uma mulher, não vale a pena, só falam com o tradutor. Uma vez fui entrevistar o imã de uma mesquita em Bagdad e a minha camisa não tinha a manga completamente até ao pulso, tinha só uma pequena parte do pulso e braço à vista, apesar do lenço e calças. Eu cheguei lá para fazer a entrevista e ele disse ao tradutor: “A senhora que se vá compor e voltem amanhã”. Eu andava no carro com uma abaia e quando era preciso punha aquilo por cima da roupa e depois tirava. Há estes códigos que devemos saber entender. Mas eu nunca olhei para isto como uma barreira que me impedisse de fazer as coisas, não é? Nós vemos imensas mulheres a fazerem este tipo de trabalho, em Portugal talvez menos mas há imensas.

 

Não pode ser até um facilitador?

Pode ser. Depende dos sítios, varia muito. Mas agora em Tripoli eu tive que usar o lenço uma vez numa Mesquita, de resto nunca usei, não era necessário. Em Kabul e no Irão tem de se usar sempre, na rua. Tens que saber para onde vais e como actuar, para não haver tempo perdido. A probabilidade de fazeres alguma coisa é zero. Porque te expulsam. É preciso adequar. Nunca deixo de ser quem sou por causa disso. Ponho aquilo, tiro e acabou.

 

Voltando à questão dos média e da responsabilidade do testemunho. Como é que se sente com essa responsabilidade de passar a palavra?

Temos o dever de interpretar e transmitir. Interpretar o que se está a passar e dar dados às pessoas para avaliarem as coisas, para fazerem as suas ilações e tirarem as suas ideias. Isso é fundamental, é o que nos move. Estas situações são visceralmente emocionais, para o bem e para o mal. Das coisas que mais me fascina nestas circunstâncias é encontrar o ser humano sem filtro, não há tempo para filtro, está ali, o bom, o mau, o imediato. As coisas estão a acontecer, está-se a lidar com a sobrevivência ou não, com a vida e a morte, isso é muito forte. Nós temos que transmitir esses dados, e não ser porta-voz de A,B,C ou D, eu não me identifico com essa linha, acho que isso é outra coisa. Nesse caso mudaria de profissão e ia fazer outra coisa, uma ONG, escrever romances. Mas a minha profissão permite-me transmitir essa força que está a acontecer no momento, com distanciamento. Um jornalista que se torna porta-voz perde um bocado a razão de ser de estar ali, passou para outro campeonato.

 

Haverá imagens que ainda a devem aterrorizar. Por exemplo, o Haiti. Como foi viver com essas imagens depois?

Foi complicado, sobretudo ao nível do nariz. Porque há coisas que nos acompanham durante algum tempo, como o cheiro. É muito pesado. O Haiti foi dos cenários mais devastadores onde estive, sem ser por interferência humana, e lembro-me de alguns sítios que lembravam Kabul, umas ruínas mas que se percebe que foram bombardeadas. No Haiti o que era esquisito era os prédios serem peças de LEGO às quais foram retiradas as paredes e viam-se pés de fora e coisas assim. E isso é complicado de digerir, demora o seu tempo. Os desgraçados devem estar lá a viver no meio dos escombros ainda…

 

E não a assusta em termos psicológicos ter ganho, não diria indiferença, mas uma certa frieza? Seguramente, deve lidar com essas situações de forma diferente do início…

Sim, ganhamos defesas. Nós temos sempre um escudo como defesa que é o nosso trabalho, ou seja, estamos sempre a correr para a frente, temos que trabalhar sobre aquilo, não estamos ali para olhar, ver, carpir mágoas e ficar quietinhos. Não, nós temos que continuar e ir para a frente e trabalhar as situações. E no dia seguinte trabalhar outra situação. Estamos sempre em movimento. E estamos sempre à procura de novas situações. Isso é uma defesa. Claro que, quando voltamos, há uma certa ressaca. Há uns dias que estamos a marinar, há umas coisas que ficam maiores, outras que desaparecem…

 

Como é que se trabalha esses dados, como é um dia de um jornalista de guerra. Chega ao território e o que acontece depois?

Chegamos sempre com a ansiedade de “o que é que eu vou fazer hoje?” Sempre. Porque há uma situação imensa e tens que pegar por algum lado. Tens que fazer reportagem, directos, arranjar informação, ir aos sítios, voltar… O primeiro impacto é sempre difícil, de organizar, arranjar tradutor, carro, mas é muito curioso porque vamos sempre com esta ansiedade: “Vou chegar a um sítio onde não conheço ninguém, onde não tenho ninguém à minha espera”, às vezes marca-se coisas com alguém mas a pessoa não pode, porque mora do outro lado da cidade e há bombardeamentos pelo meio. Parte-se para outra situação, não se pode ficar à espera. Não podemos ficar manietados “ai que não vou conseguir”. Mas depois as coisas acontecem, e as soluções aparecem. Começamos a fazer perguntas nos hotéis e depois há um jornalista que já se adiantou e há sinergias. A classe jornalística pode ser muito e nada solidária, tem de tudo, todos os dias. Há sempre pessoas que nos ajudam, e há pessoas que não ajudam e boicotam. Faz parte. Há estórias que se partilham sobretudo com jornalistas de outros países.

 

Voltando ao seu percurso, o que é que lhe deu para esta vida? Não havia nada premeditado?

De todo.

 

O que é que queria ser quando era pequenina?

Queria ser jornalista ou então descobrir percursos turísticos. Basicamente não queria estar quieta. Descobrir novos sítios, conhecer. Depois isto acontece um bocado por acaso, eu ainda estava na RTP, foi antes da SIC, e fui enviada a Kinshasa, antigo Zaire, agora Congo. Houve uma rebelião militar, estava em estado de sítio, fui lá em trabalho, não correu mal. Depois comecei, ainda na RTP, a acompanhar o processo de Bicesse, as negociações de paz para Angola, fui lá quando foram assinados os acordos de Bicesse, estava em Luanda a ver como as pessoas estavam a reagir. Fui ganhando algum conhecimento na questão angolana, não tenho nada a ver com Angola, não tenho família de lá. E depois as primeiras eleições em Angola acontecem antes da SIC abrir mas entendeu-se que devíamos ir para lá fazer aquilo, porque era uma grande história, recolher material para o que vinha a seguir, aí já estava na SIC. E depois os acontecimentos desenrolam-se a uma velocidade grande. Sou apanhada pelas circunstâncias e vou ficando.

 

Sentiu um registo diferente nas directivas na SIC ao nível da abordagem da cobertura?

Nesse momento houve um factor engraçado. A SIC era a primeira cadeia privada a surgir, com uma vontade descomunal de afirmação, e a RTP tinha mandado vinte e tal pessoas e nós eramos dois. Era eu e o repórter de imagem. Nós tínhamos asas, queríamos fazer tudo. E estávamos com aquela energia “a nossa estação está a começar e nós vamos fazer tudo, nada a perder” e, portanto, trabalhávamos que nem uns loucos e tínhamos esse drive de tentar fazer mais coisas diferentes, tentar agilizar. E a direcção da SIC dava-nos o gás todo. Os meios eram muito reduzidos na altura e nós tivemos uma situação que, vista hoje, é de doidos. A RTP fez um acordo com a TPA (Televisão Pública de Angola) em Outubro, quando a SIC estava a nascer, em que havia imensos jornalistas a cobrir as eleições e havia um acordo para que todas as televisões tivessem acesso para enviar imagens para Lisboa, via satélite, através da TPA. E nós chegámos lá para enviar e aquilo não funcionava. Funcionava com os outros e não connosco. E então nós, que eramos suficientemente loucos, começámos a fazer uma prática diária de altíssimo risco: montávamos os nossos trabalhos na TPA e, como sabíamos que íamos ser boicotados, fazíamos isso todos os dias, ao fim do dia, entre o dia e a noite. Íamos à Funda, a 40 quilómetros fora de Luanda, e voltávamos em alta velocidade. Rebentámos com alguns carros, para enviar as coisas. Porque ali na estação satélite era impossível boicotar.

 

Porque é que refere o Paquistão como o país mais perigoso do mundo?

Porque acho que muito daquilo que se passa no Afeganistão nasce lá. O Paquistão é o santuário do Afeganistão. A zona de fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão não é controlada por ninguém. É onde ninguém se atreve a ir. É uma zona talibã, desde os moderados aos radicais está tudo por ali acima. O Paquistão tem 180 milhões e tem armas nucleares. E tem um complexo que não está resolvido, com os Estados Unidos, com a Índia. A Índia é o aluno bom, o Paquistão é o aluno mau. E é um país perigosíssmo. Eu estive lá a fazer as eleições em 2008, numa Madrassa. E é muito complicado. Eu trouxe essa ideia quando lá estive nesse período. Antes tinha atravessado a fronteira no Paquistão para o Afeganistão por terra, nós não conseguimos que a polícia paquistanesa fosse connosco até à fronteira com medo. Nós sabemos muito pouco do que se passa no Paquistão. Os militares, os serviços secretos, as ligações entre os militares, os serviços secretos e os talibãs. O Afeganistão, a papoila, os negócios, há muito circuito ali que não se conhece.

 

E estando na origem de alguns desses conflitos um fundamentalismo religioso a sua relação com a fé ficou afectada?

Não, de todo. Aí está uma questão que é muito importante tentar perceber. Porque é que por vezes a religião tem a importância que tem em determinadas zonas, em determinadas sociedades. É, muitas vezes, porque o resto falha. Obviamente que isto depois tem um submundo de dinheiro e por aí fora, mas em muitas circunstâncias é a mesquita que é o amparo. Não há comida, a mesquita fornece, não há água, a mesquita fornece. E fornece alimento para o espírito. E depois a força da tradição. Para nós é difícil perceber como a força da tradição nalgumas sociedades é tão forte. Vivemos numa sociedade do indivíduo, a religião não tem qualquer tipo de importância, não perguntamos se tu és católica, protestante ou muçulmana. Uma vez vi isso e fiquei assustada, uma senhora que me dizia: “Aquele senhor é um bom católico, aquele é um bom muçulmano”. Não é normal na Europa. Mas em muitos países é factor determinante e se tu não pertences estás excluido. Tens que pertencer, tu nasceste daquilo. É como aqui não ir à escola, não vais à escola estás excluído da sociedade. Ali sofres se não fazes parte. Ali é assim, pode ser mais moderado, menos moderado. Às vezes é preciso perceber isso, dá-nos dados para perceber outras coisas. Eu não mudo a minha cultura por causa disso. Eu tento perceber porque é que reagem assim. Há questões essenciais. Nós somos todos iguais. E nós precisamos de coisas básicas: água, alimentos, sítio para dormir, e portanto quando faltam as coisas básicas nós tornamo-nos no que for necessário e quando estamos a falar de sociedades altamente carenciadas onde a água ou os alimentos ou o dinheiro vêm da mesquita… E depois há a fé. E a importância da fé e o valor que as pessoas lhe dão. A questão da religião é complexa por isto. Porque se nós formos ver os fundamentos da religião são todos bons. “Somos todos irmãos, o amor, a paz, sermos bons uns para os outros”. O problema é depois com as interpretações. Nós também temos cristãos menos moderados. Essa questão é complexa. É preciso tentar percebê-la antes de etiquetar. Agora na Líbia, que é cem por cento muçulmana, eu estive na Igreja do Cristo Rei em Tripoli. É uma igreja anglicana. Fui ver com um rebelde líbio muçulmano e ele foi mostrar-me a igreja, foi falar com o pastor, parece inconcebível. E ele disse: “Porque nós aqui somos moderados e não andamos a rebentar com os templos alheios”. E o pastor dizia: “Esperamos que continue assim, são moderados na relação inter-religiões”. Eu na Líbia entrei em Mesquitas de homens, com eles todos a rezar, onde eu era a única mulher. Há países onde isso é impensável. Eu própria estava espantada.

 

E agora, na Líbia, o que vai acontecer?

Vai ser difícil, eles não sabem o que é um partido político, não têm partidos políticos. E todos vão querer ser o eleito. Até tomar um caminho vai demorar, não vai ser fácil, agora é uma primaverazinha. Eu vi isto em Bagdad nos primeiros dias, e depois? Isto vai tornar-se numa Bagdad? Eles diziam: “Nem pensar”. O mosaico da sociedade líbia é diferente do iraquiano. Eles são todos sunitas, na Líbia. E eventualmente vai ser mais fácil porque são poucos e estão todos a querer o mesmo. E há um sinalzinho social que é completamente diferente do que eu vi em Bagdad: as casas do Khadafi, família e dois ou três elementos de topo do regime, foram saqueadas, mas não assaltaram os bancos, por exemplo. É uma sociedade mais ingénua, mais subdesenvolvida, com menos vícios. Esteve muito mais fechada, o vizinho e o bairro são muito importantes. E depois há outro factor muito importante: não há dinheiro internacional para alimentar guerra nenhuma neste momento. Nem na Europa nem nos Estados Unidos. É um elemento que pode ser bom para os líbios.

 

2011

 

por Marta Lança
Cara a cara | 15 Maio 2012 | angola, Cândida Pinto, jornalismo, líbia, moçambique, repórter de guerra