Incipiente, amadorístico e negligenciado mas com muito potencial, entrevista a Mena Abrantes

José Mena Abrantes dirige o Elinga Teatro e já faz teatro há trinta anos, depois de ter passado por uma formação em Portugal, onde viu Adolfo Gutkin na década de 70, e ter estudado em Leuven, na Bélgica. Multi-facetado, regressou a Angola depois da Independência, vindo da Alemanha, onde experimentou o teatro de rua. Trabalhou na Cinemateca de Luanda (1985), escreveu críticas de cinema para o Jornal de Angola sobre filmes angolanos, jugoslavos e da Alemanha de Leste. Foi co-fundador do projecto de jornalismo Angop onde ficaria 9 anos. Apesar do seu cargo institucional bem próximo do poder - é assessor de imprensa e comunicação do Presidente da República José Eduardo dos Santos desde 1993 – nunca deixou de fazer teatro com um certo espírito crítico mas, sobretudo, um teatro que acaba por colmatar um pouco a falta de formação em termos dramatúrgicos e de interpretação que o país atravessa. Escreveu peças de teatro e de ficção, além de estudos sobre o teatro e cinema angolano. Esteve na fundação dos grupos Tchinganje e Xilenga mas o seu grande projecto é o Elinga-Teatro que, desde 1988, mantém uma actividade regular e acesa a profundidade do teatro.

Conversámos sobre o grupo, fazendo o ponto da situação do teatro em Angola.

Mena Abrantes, foto retirada da revista Vida, jornal O PaísMena Abrantes, foto retirada da revista Vida, jornal O PaísExiste um teatro angolano?
Essa é uma discussão que não conduz a lado nenhum. Percebo que pretende saber se existe uma especificidade que distinga o teatro feito em Angola do teatro dos outros países. Mas, se somos angolanos, escrevemos peças sobre temas angolanos, levamo-las à cena com actores angolanos para um público angolano, essas peças não constituem teatro angolano? Americano ou chinês é que ele não é!

Como o definiria, então?
É delicado enveredar por esses caminhos. Uma definição do teatro em Angola teria que incidir sobre o seu carácter incipiente e amadorístico, mesmo que alguns grupos reclamem já ser profissionais; sobre o tratamento imediatista e relativamente superficial dos seus temas; sobre a ausência de uma dramaturgia elaborada e de dimensão universal; sobre a sua frágil capacidade técnica e os seus insuficientes recursos expressivos; sobre a sua excessiva propensão para provocar o riso fácil; sobre a falta de humildade que impede de reconhecer os próprios erros e defeitos; sobre a susceptibilidade que provoca qualquer crítica, mesmo construtivaAcho que a única coisa que realmente existe é a vontade de o fazer, visível na grande adesão da juventude a essa prática artística.

Que grupos angolanos destacaria e porquê?
É justo destacar em primeiro lugar o grupo Horizonte Nzinga Mbande, pela constância, pela prioridade que dá à formação dos seus integrantes, pelos temas abordados e por uma preocupação crescente com a qualidade dos seus trabalhos. O Oásis foi durante um certo tempo um grupo que também cuidou de forma muito séria e elaborada de obras de cariz tradicional, mas que tem andado agora um tanto arredado dos palcos. Dos da geração seguinte, o Etu Lene serviu de inspiração para muitos dos grupos que hoje proliferam na capital, mas parece-me não ter evoluído muito nas suas propostas. Dos mais recentes, têm vindo a destacar-se o Miragens Teatro e o Henrique Artes, com propostas cénicas já mais elaboradas e com um aceitável nível de representação. Aprecio no Henrique Artes, além disso, a humildade, que contrasta com uma certa arrogância e complexo de superioridade na postura pública do responsável do Miragens.

NA NZUÁ E AMIRÁ OU DE COMO O PRODIGIOSO FILHO DE NA KIMANAUEZE SE CASOU COM A FILHA DO SOL E DA LUA, de José Mena Abrantes (Angola)NA NZUÁ E AMIRÁ OU DE COMO O PRODIGIOSO FILHO DE NA KIMANAUEZE SE CASOU COM A FILHA DO SOL E DA LUA, de José Mena Abrantes (Angola)

Como se justifica a falta de profissionalismo e de investimento no teatro em Angola?
A falta de profissionalismo começa por ser consequência imediata e directa da falta de investimento no teatro. Houve nos primeiros anos depois da Independência, quando se achava que as estruturas oficiais da Cultura se deviam ocupar directamente da promoção de espectáculos de teatro e dança, algum investimento na formação de actores e de bailarinos, com recurso à contratação de monitores estrangeiros, em especial do Brasil e de Cuba.
A Secretaria de Estado de Educação e Cultura criou, ainda nos anos 70, uma Escola Nacional de Teatro e Dança, mais pomposa que eficaz, e que se extinguiu em poucos anos. Manteve durante anos a fio um Grupo Experimental de Teatro, que passava anos sem se apresentar a público, apesar dos seus membros serem regularmente remunerados como funcionários dessa mesma Secretaria. Esse grupo seria o embrião de uma futura Companhia Nacional de Teatro, que nunca chegou a ver a luz do dia.
A etapa seguinte, a nível oficial, foi enviar alguns elementos para se formarem como monitores de teatro no exterior, nomeadamente no IFICT (Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral) em Lisboa, na perspectiva de mais tarde virem a transmitir localmente os conhecimentos adquiridos. O problema é que a maior parte dos elementos seleccionados não tinha a formação académica de base, indispensável a um melhor aproveitamento da oportunidade que lhes foi dada, e alguns decidiram mesmo instalar-se em Portugal. Dos que regressaram, com uma ou duas excepções, nenhum deles se continuou a dedicar à actividade teatral. Todos esses foram, pois, investimentos sem qualquer retorno digno de relevo.

Há projectos para formação ou investimentos em escolas com artes performativas em curso?
Sei que o Ministério da Cultura tem na forja a criação a breve prazo de escolas de formação, a nível médio e superior, com recurso ao apoio de instituições estrangeiras com quem mantém bom relacionamento, mas não tenho quaisquer detalhes sobre o assunto. Nestes últimos anos, e no quadro do Instituto Nacional de Formação Artística, mantém-se em actividade uma escola de teatro a nível médio, cujos alunos se dispersam pelos vários grupos existentes na cidade, sem grande visibilidade.

A REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS, de Pepetela (Angola)A REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS, de Pepetela (Angola)

A par dessas acções de carácter oficial, existe a formação informal no seio dos grupos em actividade regular há mais de vinte anos, como o Oásis, o Horizonte Nzinga Mbande e o Elinga-Teatro, valorizada de tempos em tempos pelo recurso a estágios e workshops pontuais, aproveitando-se quer a passagem pelo país de algum especialista estrangeiro, quer as cada vez mais frequentes participações em festivais internacionais.
Essa formação intermitente, de iniciativa dos próprios grupos ou resultado de convites vindos do exterior, tem beneficiado também alguns grupos mais recentes, como o Etu Lene, o Henrique Artes, o Pitabel e o Miragens Teatro. Resumindo, são os próprios grupos, alguns já em vias de profissionalização, com os seus escassos meios, a cuidar de formar os seus actores e técnicos.

Como explica, no teatro dos bairros populares, uma forte vertente de representação muito colada ao quotidiano e sempre com uma obrigação pedagógica de “passar uma mensagem”?
Pelas próprias circunstâncias em que esses grupos surgem, quase sempre ligados a igrejas ou instituições de ensino, a sua vocação primeira é mesmo fazer pedagogia, alertando os outros jovens (seu público prioritário) para os vícios e práticas anti-sociais e promovendo valores religiosos ou espirituais. Pessoalmente prefiro essa tendência colada ao quotidiano dos seus praticantes à que existia antes, que se ocupava sistematicamente de situações ligadas a um idealizado mundo rural, sem qualquer ligação com a realidade imediata. De resto, só a prática vai permitir a esses grupos erigir essas situações vividas no dia-a-dia a uma temática de maior alcance e profundidade. A grande popularidade e aceitação actual do teatro comunitário provam que esses grupos acabam por cumprir uma importante tarefa de consciencialização e educação cívica. Não é um teatro que a mim pessoalmente me interesse muito, mas reconheço a sua necessidade. Aliás, foi também com acções desse género que comecei a fazer teatro em Luanda, em meados de 1975.

EQUUS, de Peter Shaffer (Grã-Bretanha).EQUUS, de Peter Shaffer (Grã-Bretanha).

Acha que o grupo Elinga, que tem dirigido, direcciona-se mais para um teatro de autor ou de actores?
O Elinga continua a ser, desde a sua criação em 1988, um grupo amador. Não pode, por essa razão, e apesar de escritor Manuel Rui ter tido a amabilidade de o caracterizar como um “grupo militante do teatro”, dar-se ao luxo de se dedicar seja a um teatro de autor, seja a um de actores. Para fazer o segundo, teria de cuidar de forma rigorosa da formação dos seus integrantes, o que é impensável para quem dispõe apenas de duas horas diárias para fazer teatro. Para além de que os actores estão sempre a entrar e a sair. Poderia admitir-se que faz mais um teatro de autor porque, por razões óbvias, é mais à montagem das minhas próprias peças que recorre. Em 36 produções que apresentou ao público nestes últimos 22 anos, doze eram da minha autoria. Outras sete eram adaptações minhas de obras de autores angolanos (Pepetela e Ondjaki, para além de versões teatrais de contos tradicionais e poemas) e estrangeiros (Jean Anouilh, Amin Maalouf e José Saramago).
E acrescente-se, em abono da verdade, que o Elinga tem sido praticamente o único grupo angolano a levar à cena autores estrangeiros de relevo. Para além dos citados, os brasileiros Plínio Marcos, João Cabral de Melo Neto e Alcione Araújo; os espanhóis Garcia Lorca e Alfonso Castelao; o inglês Peter Shaffer; o norueguês Henrik Ibsen e o sul-africano Percy Mtwa.

MORTE E VIDA SEVERINA de João Cabral de Melo Neto (Brasil)MORTE E VIDA SEVERINA de João Cabral de Melo Neto (Brasil)

Como tem sido trabalhar com o Elinga Teatro estes anos todos, num contexto de teatro amador que apresenta bastantes dificuldades?
O Elinga, no momento da sua criação, tinha trinta e três elementos. Desses restam, além de mim, apenas duas actrizes, as juristas Anacleta Pereira e Pulquéria Van-Dúnem. Uma das maiores dificuldades do nosso trabalho tem sido essa permanente mobilidade dos actores, porque quando passamos a contar com alguém com mais experiência, ele/ela desaparece, e temos de recomeçar tudo quase do zero. As circunstâncias são sempre inatacáveis: ou porque morreu, como infelizmente já aconteceu quatro vezes; ou porque casou; ou porque foi morar mais longe; ou porque arranjou um emprego incompatível; ou porque teve filhos, ou porque não está nem aí. As outras dificuldades são as comuns a quase toda a sociedade angolana: ensaios no escuro por falta de energia, carência de transporte, logística doméstica escassa, etc. O milagre é ainda aparecer alguém empenhado em fazer teatro sem esperar quase nada em troca, para além do prazer de o fazer.

QUANTAS MADRUGADAS TEM A NOITE de Ondjaki (Angola)QUANTAS MADRUGADAS TEM A NOITE de Ondjaki (Angola)Numa vida dedicada ao teatro, qual foi a sua maior conquista e frustração?
A maior conquista é, sem dúvida, poder dedicar-me a uma actividade que me satisfaz em todos os sentidos, desde a escrita até à montagem do espectáculo, e que me permite conviver diariamente com pessoas de vários estratos sociais e idades e com elas empenhar-me num projecto comum de criação. Para além de que é um contraponto indispensável às minhas responsabilidades laborais, pois permite uma grande distensão e equilíbrio psico-físico. Como nunca colocamos as nossas expectativas acima das nossas possibilidades, não me recordo de alguma vez termos tido a experiência do que se chama um fracasso. As nossas peças costumam ter boa aceitação do público e mesmo no exterior do país o Elinga já granjeia de um prestígio que se calhar até é desproporcionado, tendo em conta as nossas precárias condições de trabalho.
A maior frustração é talvez não poder dedicar-me ainda a tempo inteiro a essa actividade, como já era minha intenção quando regressei a Angola em Dezembro de 1974, depois de doze anos em Portugal, Bélgica e Alemanha.

O teatro necessita de espaços específicos, e os que existem não são profissionais, já destruíram o Teatro Avenida, o Elinga-Teatro será o próximo… o que está a acontecer com as salas de teatro em Luanda?
De acordo com o discurso oficial, estão a criar-se, a prazo, melhores condições para a prática teatral. Assim se explicaria a destruição do Teatro Avenida (já cumprida) ou do espaço do Elinga-Teatro (ainda em fase de ameaça), uma vez que no mesmo local se irão construir, integrados nos projectos futuros (num caso, um prédio de apartamentos e escritórios; e noutro, um parque de estacionamento), verdadeiros teatros plenamente equipados. Essa justificação parece, no entanto, não levar em conta que não é só desses espaços emblemáticos do centro da cidade que convinha cuidar. Numa cidade com uma população calculada em mais de cinco milhões de pessoas, não existe um único teatro digno desse nome (o Nacional é um cine-teatro sem bastidores, o Elinga funciona no antigo pátio de recreio de uma escola, a Liga Africana tem um palco vocacionado para actos de variedades, etc.) e nem sequer se criam espaços multi-funcionais nos bairros, capazes de albergar os mais de cem grupos que neste momento existem na capital. É certo que o teatro não se faz apenas em cima de um palco, e pode acontecer em qualquer local, dentro ou fora de quatro paredes, mas é também indispensável que uma grande cidade atenda também às necessidades e exigências de comodidade do público que o frequenta.

 

parceria BUALA / OBSCENA

por Marta Lança
Cara a cara | 2 Julho 2010 | Elinga Teatro, Mena Abrantes, Teatro em Angola