Back2black - celebração de África no Brasil
No Rio de Janeiro uma estação de comboio/ trem desactivada, condenação óbvia pois no Brasil o carro domina, é o lugar certo para encarrilar relações nem sempre com o mesmo nível de atenção e dedicação. Quero dizer, se os africanos conhecem as estrelas de televisão e futebol brasileiro, e estão a par de qualquer novidade do país irmão, se muitos países africanos (como seguramente Angola, Cabo Verde, Moçambique e S.Tomé) consomem a toda a hora música, novelas, roupa, modas, modos de falar, produtos brasileiros, o mesmo não se pode dizer do Brasil. Este país continental sabe pouco sobre a actualidade do outro continente que lhe está no sangue, apesar das ligações históricas, da sua identidade e das tão debatidas, mas ainda escandalosas no segregacionismo, questões raciais.
Mas as coisas estão a mudar, a curiosidade e vontade de acertar compassos vêm aumentando. Nas editoras brasileiras os autores africanos começam a vender bem. Nos cursos de literatura africana, alguns professores do Rio, S.Paulo e Bahía são as maiores referências no meio. A lei 10639 instaura o ensino de história e cultura africanas no Brasil. A noite black multiplica-se nas formas de expressão e lugares que a dinamizam, na cidade do Rio desde o baile charme no viaduto da Madureira até aos bares da zona sul, podemos sempre dar com ela. O Movimento Negro é uma realidade e tenta fortalecer-se, apesar de afrouxar um pouco o lado reivindicativo capitulando aos poderes políticos e aderindo às ongs. As práticas religiosas apelam às origens africanas e reinventam África.
Em tudo isto, as pontes de afecto serão sempre as mais permanentes, e a música a melhor forma de as exprimir.
Nos dias 27, 28 e 29 de Agosto a segunda edição do Back2Black, festival da cultura africana e da diáspora negra, ajudou a afirmar esta presença. Um festival necessário no Brasil.
Balanço dos três dias de show: um sucesso naquilo que são as suas propostas… No entanto, é preciso levar a cabo um debate sobre as críticas levantadas por alguns sectores de intelectuais negros: a quem se destina afinal o festival uma vez que tem apoios públicos em relação à sua acessibilidade, preço do ingresso, etc e como problematiza a cultura negra.
Uma cultura black pop
A parte forte que traz o grande público ao Back2Black são os concertos, este ano em vários palcos, mas o evento, além da música, apresenta conferências, fotografia e uma zona de mostra e venda nos vagões da Estação. Entramos para o interior da Leopoldina decorado pelos artistas Vik Muniz e Gringo Cardia com fotografias de negros sorridentes, passeamos pelas antigas plataformas de embarque com locomotivas ferro-velho, bem iluminadas, que parecem museu. Dentro das carruagens, livros e mostras dos parceiros dos festivais ligados ao evento. Pelos trilhos várias gerações se cruzam e amigos se encontram, cineastas, escritores, músicos e jornalistas ali circulam. Muitos casais se beijam, no embalo e vibração das colunas sonoras. Gente bem vestida dá abraços alegres ao cumprimentar-se. Há exaltação no ar.
O Festival pretende celebrar o ritmo, as cores e os estilos de um mundo contemporâneo, pop, da nova África. “O que tentamos mostrar é que o africano é moderno e que está inserido no nosso tempo, produzindo grande cultura”, diz o curador das conferências e único angolano presente este ano, José Eduardo Agualusa.
A mesa de abertura dos debates abordou os direitos humanos e desenvolvimento. A intervenção de Zulu Araújo da Fundação Palmares foi a mais interessante, sobre a importância da educação como factor de igualdade racial. Literatura, Imagem e Som foi o tema de domingo com Mia Couto, Cacá Diegues (autor do projecto cinematográfico 5x Favela, Agora por nós mesmos) e o cineasta Ruy Guerra, com muita ligação a Moçambique.
Se se utiliza como elo do evento a temática da negritude e o conhecimento sobre África tem de se ir além do senso comum, e estas conversas são uma forma de ampliar as referências e problematizar questões. Mas neste aspecto, o festival precisava de mais tempo (e se calhar de um lugar mais apropriado) para debate, maximizando a presença dos intervenientes e a curiosidade do público.
A cada noite a sua estrela
Na 6ª-feira a percussão brasileira de Carlinhos Brown inaugurou a noite ritmada onde o Afrobeat reinou. Um Seun Kuti cheio de atitude e o ritmo forte e contagiante da banda “Egypt 80” (o conjunto dos anos 80 do seu pai, grande Fela) mostraram o que é animação. Seun herdou o jeito leopardo de se mover e a expressividade de Fela. E o Afrobeat continua aquela mistura bombástica: jazz com rock psicadélico, música yorubá com funk, percussão africana e vários estilos vocais, uma batida energética com movimentos repetitivos, letras num acentuado pidgin inglês. Tudo isso encheu o público carioca de boas vibrações!
O Afrobeat é vibrante sim, e ainda que muitos brasileiros não estivessem familiarizados com este afrobeat, made in nigeria, que reflecte a vida louca e a resistência nas grandes cidades africanas, acabaram por render-se ao seu compasso.
No Sábado a estação estava a abarrotar, todos acorreram ao evento para ver de perto a diva do neo soul, a glamourosa Erykah Badu, envolvente na voz morna e altiva. Antes disso, a voz grave de Arnaldo Antunes, dos ex-Titãs, acompanhada pela kora do maliano Toumani Diabaté (junção realmente muito surpreendente), criou um ambiente espiritual e cúmplice ao cantar temas como “Silêncio”.
No último dia, Roberto Frejat orquestrou as duas horas de Celebração do Blues com as brasileiras Mart’nália e a grande Elza Soares, Tina Turner brasileira como alguém do público gritou, sempre empinocada, cantou Escândalo, Cry Me a River lembrando Ella Fitzgerald, entre outros. A americana Lizz Wright em dupla com o bluesman Taj Mahal arrancou um belo Lovesick blues. E do Mali chegou Vieux Farka Touré, filho do lendário Ali Farka Touré (1939 – 2006), para dar o melhor de blues ao estilo africano, num grande virtuosismo na guitarra. O blues, dos cantos espirituais e com uma História que passa pelas ligações África-América, foi o mais propício para esta comunhão de vozes e culturas.
Para encerrar a noite em alta o Back 2 Black proporcionou uma amostra da festa Black do Viaduto de Madureira, o baile charme mais carismático e antigo da cidade, trazendo-o da rua para o Palco Urbano, uma tenda onde os djs desfilaram durante o festival.
As coreografias divertidas e o ânimo dos participantes mostram como vale a pena esta festa e encontro cultural, que terá seguramente muitas pontes para explorar. É preciso incluir muita gente que no Brasil se interessa sobre tudo isto e aqueles que evitam pensar sobre estas questões.
Esperemos que outras actividades que reflictam e mostrem a diversidade da cultura africana se espalhem ao longo do ano, de forma consolidada e acessível. África no Brasil não pode ser só um evento mas uma presença constante.
O black 2 black de 2009
“Somos todos africanos, somos todos humanos” ou “Seja black por três dias” eram alguns dos slogans algo bizarros espalhados pela cidade, que anunciavam o Back2Black no Rio de Janeiro, uma celebração de África como berço da civilização, protagonista de discussão política e difusora de cultura.
O público carioca é fervoroso, receptivo e alegre e assim dá gosto arriscar novas abordagens. Se a cultura africana provoca alguma curiosidade no Brasil, país com tanta população negra e mestiça, orgulhosamente afro-descendente mas com preconceitos raciais bem vincados, há também um enorme desconhecimento, sobretudo quanto à África contemporânea. Foi com a intenção de estimular a discussão e a reflexão a partir da actual situação e do futuro de África, passando pelo desenvolvimento político-social a partir das artes, que o Back2Black se propôs como festival.
À entrada grandes mapas da África política, frases sobre as misérias e conflitos africanos, fotografias de personagens, cidades, etnias (sem qualquer contextualização), alusões ao sol africano decoravam a histórica Estação Leopoldina, no Rio de Janeiro.
Música bem ritmada
O baiano Gilberto Gil, todo vestido de branco, apresentou o espectáculo “pronto pra preto”, acompanhado dos filhos, em versão acústica. Avisou logo: “preparei algo especial pare esta noite, um repertório pigmentado, melaninado” e ali ficámos em comunhão com o ex-ministro da cultura, mas que é na condição de cantor que mais o admiramos, a cantar clássicos como “Refavela”, “Barracos”, “Mão da limpeza”, “Tenho sede” e “Expresso 2222”.
O senegalês Youssou N’Dour comoveu com a sua mistura de ritmos e aquela voz de marabu que parece vir de um fundo muito sábio, de dor e alegria. Com ele, Marisa Monte cantou “Seven seconds”, gravada com Neneh Cherry em 1993, o tema que o tornou conhecido mundialmente. A t-shirt de Marisa com a inscrição “Cadê a Ética?” ajustou-se bem aos trechos de “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão, em estilo dub. Gilberto Gil regressou ao palco com Marisa e N’Dour, para darem voz a “Blowin’ in the wind”, de Bob Dylan, uma canção de protesto dos anos 60 com perguntas retóricas sobre paz, amor e liberdade, em versão reggae.
O rapper MVBill deu um concerto poderoso, com um discurso consciencializador da realidade dos negros nas favelas, assassinados e hostilizados, além da sua boa presença e rimas com muito flow. Dos acordes electrizantes de funk e soul do show de Black Rio salientou-se a prestação de Ed Motta, sobrinho do falecido cantor e compositor carioca Tim Maia a quem a Banda prestava tributo. A participação do grupo paulista de hip hop Racionais MC’s, com Mano Brown e Ice Blue, conhecidos por divulgar a desigualdade social brasileira, não inspirou muito, as letras que costumavam falar da realidade das periferias, versando crime, pobreza e preconceito, desta vez estavam mais brandas.
Antes de uma demonstração de break dance de Los Angeles, o kuduro de Angola foi apresentado pelo dj Znobia e por bailarinos que surpreenderam o público ainda que alguns comentários o comparassem ao funk carioca, que aquece os inferninhos das noites do Rio.
No último dia do Festival a celebração do samba foi conduzida por Mart´nália, filha de Martinho da Vila, e participaram D. Ivone Lara, Marina Lima, Luiz Melodia, Maria Gadu, Margareth Menezes e Rodrigo Maranhão. Os africanos Angelique Kidjo do Benin, o nosso Paulo Flores, a voz doce da caboverdiana Mayra Andrade e a força da cubana Omara Portuondo juntaram-se à grande festa da família das raízes negras na cultura musical. Dava para pensar a evidência das incríveis trocas culturais e pontos de contacto que o atlântico tem suscitado, muitas vezes devido a episódios duros da História, mas que comunicam na sua diversidade.
Pelo fim das utopias
A conferência ‘Construindo utopias’, mediada pelo escritor José Eduardo Agualusa que comissariou as participações dos palestrantes no evento, contou com a presença de Bob Geldof e do sul-africano Breyten Breytenbach, figura importante na luta contra o “Apartheid” nos anos 60.
“A utopia de um homem é a distopia de outro. Esqueçam as Utopias que levam a assassinatos em massa”, afirmou com grande à-vontade perante um vasto público o cantor irlandês e organizador dos mega concertos “Live Aid” e “Live 8” que confessa estar cansado de falar sobre conflitos em África, assegurando que “neste momento há mais conflitos na Ásia”. Salientou o esforço de países com independências recentes e a imposição de uma ideia de Estado-Nação manterem-se de pé. Esta noção de ‘estado-nação’, que “não corresponde às necessidades e expectativas de seus povos”, foi também criticada por Breytenbach que lembrou a desigualdade subjacente à relação norte-sul, baseada em mal-entendidos nas expectativas e interesses e apelou ainda para a importância de dar visibilidade às línguas africanas.
Faltou uma análise mais a fundo dos problemas em África, de um mundo neo-liberal onde África é refém de interesses de outras potências e todas as dependências daí geradas. O activista Bob Geldof contou ainda como a modernidade do rock’n’roll influiu na construção da sua consciência política e social, como verdadeira “cultura global e língua franca e universal”. “Quando eu era pequeno, rock e política eram a mesma coisa. John Lennon, Bob Dylan, Pete Townshend, Mick Jagger… Essas pessoas criaram a retórica de mudança”, assim, a música pop pode ser uma maneira de contribuir para a emancipação do continente africano.
Outras conversas se seguiram no painel “Cultura e desenvolvimento”, com o cineasta sul-africano vencedor do Oscar Gavin Hood (pelo filme Tsotsi), os músicos participantes no festival e no painel “África na construção do mundo. O futuro” onde a economista zambiana Dambisa Moyo, autora do recente livro Dead Aid, defendeu a sua polémica e lúcida tese de que a ajuda internacional é nociva para a vida dos africanos.
Também houve conferências em Brasília, tendo participado nomeadamente o antropólogo angolano António Tomás e o escritor luso-escandinavo residente em Angola, Miguel Gullander.
Se a intenção era tentar chegar a uma nova ideia de África, resgatar o seu papel como produtora de cultura, não ficou claro esse avanço pois faltam outras iniciativas que dêem continuidade e maior visibilidade a África no Brasil. Foi um interessante ponto de encontro e de discussão, em tom festivo e, esperemos, potenciador de outros futuros.
Houve quem criticasse a ausência de alguns intelectuais afro-brasileiros e o preço do ingresso, ao qual apenas a classe média pode aceder. Uma vez que se fala de negros no Brasil, e a maioria infelizmente não tem poder de compra, talvez tenha que se rever essa medida.
Faz sentido na realidade brasileira que África seja de facto pensada, comemorada, problematizada, e que eventos destes ajudem à aproximação de duas culturas irmãs que muito têm a ver actualmente, como países em transformação e ascensão, sem ser através da tão batida ligação da escravatura.
fotografias de Otávio Raposo