Kota Bonga, "democracia e harmonia nessa nossa família"
Há 40 anos que faz música de Angola, tem quase 500 temas gravados e muitos quilómetros de estrada. Sente-se hoje compensado por todo esse esforço e colaboração. O novo disco de Bonga, Hora Kota, apela à mais profunda identidade africana, valorizando ensinamentos e princípios ancestrais, na escuta das estórias dos mais-velhos, que podem contribuir com alguma clarividência num mundo confuso e conflituoso como aquele em que vivemos. Este cantor, tantas vezes confundido com a própria voz de Angola, sempre esteve atento à realidade do seu país, preservando e divulgando sem contemplações a tradição musical do semba: “Tal como o Brasil tem samba e a América rock, em Angola temos o semba. É a música na qual fui embalado.” O seu caminho musical pautou-se por esse respeito à “origem, tradição e pulsação do semba”, levando-o ao mundo.
Uma conversa num hotel em Lisboa com o compositor e cantor angolano, no seu jeito provocador e expansivo, sobre um longo percurso de profissional.
Uma Angola colonial
Bonga diz ter sido um privilegiado por nascer num berço com conteúdo: “não era uma criança que corre à toa e insulta os mais velhos.” A educação em casa, na escola e na rua, entre os vizinhos, ensinou-o a ser angolano, o que “não é só comer muamba e vestir uma túnica africana, é principalmente falar a língua Kimbundo, conhecer os provérbios e determinados rituais de grande potencialidade filosófica. Foi aí que bebi as minhas fontes. Sou artista por causa disso.” A vida no musseque onde cresceu sedimentou essa identidade. “Faltava o fiambre, os pãezinhos de leite, a farinha de trigo, mas havia a mandioca, o óleo de palma, o peixe, a carne seca e todas as frutas que canto nas músicas: as mangas, os cajus, os tambarinos. Isso tudo era muito importante, porque nos dava uma certa pujança física. Quando venho a Portugal (pulverizei os recordes todos de Angola em atletismo), na primeira entrevista, logo no aeroporto, perguntaram se a pujança vinha dos ovomaltines… Não, não, não: vinha da mandioca.”
E esta será a primeira de muitas estórias que Bonga conta, parecendo que não vai para de rir.
Na infância de Bonga, a música era já um veículo de resistência e de manutenção dessa identidade, num meio onde a repressão e as discriminações do regime colonial se agudizavam com o rebentar da guerra colonial. Era obvio que a reivindicação e mal-estar das pessoas transparecia na música produzida na altura. “Criámos grupos folclóricos que serviam para conservar a identidade, mas também para um chamamento de responsabilidade e mobilização. Era preciso auto-estima: na escola aprendíamos os rios de Portugal, na emissora angolana não passava música de Angola: era preciso fazer qualquer coisa. Era preciso lutar contra o colono português que impunha regras europeias e contra o negro assimilado que imitava o patrão.” A sua luta era sobretudo dirigida a este tipo de mentalidades colonizadas. “O português quando chegou a Angola entrou com a Santa Sé e a cruz, dominou quem dominou, encontraram a pólvora para eliminar alguns, houve a escravatura para vender outros, depois assimilaram uns quantos que permaneceram na imitação sistemática do branco. Nós fomos contra isso.”
Dezassete anos de vida na Europa
Veio para Portugal em 1966 com essas fontes e ensinamentos e já depois de se ter envolvido nos tais grupos de folclore. Inicia-se então no atletismo e, em contacto com os artistas angolanos residentes em Portugal, como por exemplo o Duo Ouro Negro, Rui Mingas ou Vum Vum, vai dando os primeiros passos para cantar.
Sai de Portugal quando André Mingas, “um grande homem que acabámos de perder”, chega de Angola com uma mensagem política: “o teu nome já está na lista dos próximos presos.” Não havia tempo a perder. “Em 24 horas bazei.” Isto porque, e sabemos como a diáspora foi fundamental para a consciencialização política, nas suas viagens sob o pretexto do desporto, aproveitava para informar lá fora o que se andava a passar com os movimentos clandestinos.
Na Holanda grava o primeiro disco, Angola 1972, que manifesta este seu lado mais engajado. Bonga diz continuar preocupado com a dignidade humana, mas a sua música é sobretudo festiva, vivida e cheia de calor. “Isso é África, simplesmente não foi compreendida. São rituais, formas de viver que a gente tem: a gargalhar podemos estar a dizer uma coisa muito profunda.”
Um grande atleta surgia, tendo ficado imediatamente atrás do campeão holandês na sua primeira prova. Mas no dia seguinte veio no jornal holandês que afinal o desconhecido Bonga era o Barceló de Carvalho, campeão dos 400 metros de Portugal. A ter de ir embora, em França havia mais organização e era onde tudo acontecia, e para lá rumou depois de uma temporada na Alemanha e da Bélgica.
Sentiu um grande choque cultural numa Europa fechada e preconceituosa dos anos 70. Não esquece os espectáculos onde o anunciaram com a habitual ignorância e nivelação por baixo: “- Agora vai haver uma animação com um africano! nem sequer diziam o meu nome, e eu ia para o palco, sempre fui uma pessoa ousada, e soltava o vozeirão cá para fora e as pessoas gostavam.” Tem consciência de ter aberto portas, que gostaria que hoje “tivessem sido melhor usadas.”
Começa a internacionalização da sua carreira, e sucedem-se os convites e as viagens. “Era muito solicitado. Não pelas bocas que mandava, nem pelo engajamento político, mas principalmente por essa minha voz. Nem queria acreditar, porque em Angola até tinha sido impedido de cantar por um tio que era mestre na igreja e fui escorraçado pela minha voz rouca.” Na verdade Bonga tocava percussão com instrumentos típicos mas nunca cantara em Angola antes de 1966. Agora interroga-se: “quem diria que eu ia ser cantor, com essa voz rouca, sem ajuda, nem reconhecimentos oficiais, com as chantagens e boicotes de que fui vítima, mesmo em Portugal, censurado e tudo o mais?”
Música de Angola
Foi-se então tornando uma espécie de diplomata, um nome mítico que leva Angola para muitos lados, contribuindo para que o país esteja no mundo. E é a mensagem de uma “Angola pela positiva” que o anima, e lhe dá força para continuar a divulgá-la. Tem colaborado com os mais diversos músicos, que cantam o “semba do Bonga de Angola”: Martinho da Vila, Alcione, Carlinhos Brown, Marisa Monte, do Brasil, Bernard Lavilliers, Mimi Lorca e outros. Os jovens angolanos, quando fazem Kuduro ou Kizomba, contactam-no à procura da “têmpera original”, expressão de que tanto gosta, sempre aconselhando à não imitação e à honestidade: “temos de fazer aquilo que é nosso, tendo em conta que as pessoas não se dão pela cor, nem por trazerem fato e gravata bonita, mas pelo carácter.”
Bonga lamenta que ainda faltem tantas condições em Angola para fazer-se música de forma mais profissional, o que significa poder viver da música, ter as condições e meios para exercer a profissão, não só gravar, mas também fazer espectáculos regularmente. Das novas tendências da música angolana, desconfia um pouco do negócio que está por detrás de algumas manifestações. Kuduro? “Os nossos povos, estridentes e cheios de vida, são capazes de muita coisa. Há muita imaginação criativa, sobretudo nos musseques de Luanda, ali as pessoas dançam, criam, acontecem. Mas são os mesmos miúdos que sofrem as consequências do meio: nem todos tomam o pequeno almoço, nem dormem num colchão, nem têm escolarização. A música que fazem é uns contra ou outros. E há um aproveitamento disso. Eu não sou contra a dança e a música em si, desde que haja mais preocupações do que apenas o conflito.”
As dificuldades do país
Bonga, apesar de agitado na sua infinita energia, responde evasivo à situação do país. “Tem de se resolver pela tolerância, liberdade, democracia e harmonia nessa nossa família.” Teme que os angolanos não estejam a lidar bem com a questão dos estrangeiros: “regra geral um estrangeiro que vai para Angola é por interesse.” Mas acha que, em tudo, apenas o diálogo ajudará a pensar e agir. “Como já aconteceu num passado recente, os angolanos têm de se sentar com os outros, sem partidos e sem famílias para resolver os problemas.”
Apesar de muitas dificuldades serem resultado de anos de guerra, conflitos, crise de valores, sociedade em mudanças rápidas, entre angolanos “sempre soubemos falar, resistir. Há muita coisa que fizemos de errado e não reconhecemos as falhas, e isso é fundamental para corrigir. Quando havia um conflito, era a avó que ia pôr ordem naquilo e todos eram ouvidos.” É sobre estas pessoas exemplares, ouvidas com atenção e respeito, enciclopédia vivas, que o seu disco novo versa: “malogrados os atropelos, ainda podemos ouvir os kotas, os mais velhos.”
E as novas gerações não terão força para contornar os problemas? Bonga critica o excesso de cultura materialista que vigora, em detrimento de valores que já foram muito mais fundamentais em Angola. “O grande problema é essa mentalidade em que cada um só se acha respeitado em função dos bens que tem, que para tudo é preciso muito dinheiro no bolso. Nós temos os instrumentos para dizer que não é nada disso e pôr as coisas nos carris, mas parece que não se quer. Assim é uma geração sem futuro. Esses miúdos não têm chão e com arrogância não se vai a lado nenhum.”
Coisas que não prescinde
“Ainda não consegui um espaço onde se possa ir beber a tradição.” Bonga refere que tem muita vontade de concretizar um projecto “que resgate os nossos instrumentos, com a sua sonoridade muito própria. Passamos o tempo com instrumentos de fora, já não há batuque… É preciso fazer levantamentos da música tradicional. Os jovens põem os violinos e sintetizadores para ver se impressionam os europeus, mas os europeus já não se impressionam nada com isso.” Também acha perigoso que já quase ninguém saiba falar Kimbundo. “Na televisão é apenas aquele português vernacular, enfim, paciência!”
Além de cantar, outra das suas paixões é a cozinha e receber gente calorosamente. Mesmo fora de Angola, mantém os laços de sociabilização e almoçaradas que propicia ao seus amigos em sua casa, nas quais se fala muito de uma Angola de outros tempos. “Sou muito sociável e adoro recordar os tempos de antigamente, isso é mais importante do que falar da política actual. Recordar não é saudosismo, é mostrar às nossas crianças as tradições”, diz o kota Bonga, que já pisou muito palco e muito mundo.
originalmente publicado na revista Austral nº 89, Luanda.