“Não dependo da aprovação de ninguém”. Mães solteiras em Angola

Artigo publicado na Revista Chocolate, em 2007

Introdução 

A uma mulher que vive com o seu filho sozinha, seja por opção ou por contingências da vida, para facilitar chama-se “mãe solteira”. Não quer dizer necessariamente que o seu estado civil seja “solteira”, pode ter namorado, ser viúva ou separada, mas cabe a essa mulher o monopólio da sobrevivência, a educação e dedicação de afecto ao seu filho. No direito de família atribui-se o termo de família monoparental a esta situação em que a mãe ou pai vive com o seu filho sem manter relacionamento afectivo com o outro membro da paternidade. 

Em tempos não assim tão recuados, via-se o casamento como peça fundamental na constituição da família, sendo um bom lar aquele que mantinha bem demarcados os papéis sociais femininos e masculinos, e a divisão laboral de género. Na herança cultural que dá tanta ênfase à necessidade de um marido e companheiro para que uma mulher se realize, a “mãe solteira” sofre grande pressão social e, muitas vezes, hostilizada como incapacitada para “prender um homem”, para organizar o lar, para educar os filhos, um sem número de juízos de valor negativos em relação a famílias onde não há homem por perto.

Os tempos mudaram e as famílias acompanharam estas mudanças. Hoje, tendencialmente, vai-se valorizando as relações afectivas em detrimento dos modelos de família do passado. Em vez de se alimentar mentalidades retrógradas da nossa sociedade que ainda hoje condenam mães solteiras, temos de compreender o fenómeno e tentar incluí-lo como um dado nas, cada vez mais variadas, formas de ser família, desde monoparental a famílias compostas, passando por pais ou mães do mesmo sexo. Por outro lado, as mães solteiras são consideradas guerreiras, lutadoras, elogiando-lhes o sacrifício e a abnegação, o que não deixa de ser manifesto de uma mentalidade machista, em que a mulher, cuidadora por excelência, “aguenta tudo” e pode perfeitamente abdicar de si. Uma coisa é ser mãe solteira por opção, outra é, como na maioria dos casos, sê-lo porque o homem não assume a paternidade ou é mais um pai ausente. A educação e o trabalho remunerado foram fundamentais para a emancipação da mulher, a partilha das responsabilidades em relação aos filhos também o são, assim como o direito a ser mãe solteira por opção mas com condições.


A concepção de família

Karina Barbosa adoptou uma menina de 3 anos, um acto não premeditado que a tornou mãe de um dia para o outro, e está de barriga do segundo filho. No meio da azáfama das suas produções de eventos e moda, afirma: “Obviamente que acho que a situação ideal é um casal que viva maritalmente para ter os seus filhos e criá-los juntos. Mas existem situações que acontecem e não é por isso que as pessoas vão deixar de ser pais ou mães.”

Monalisa Vieira Matos, gerente do banco Bic, também concorda que na parte económica seria “mais fácil educar e sustentar a dois, porque são duas fontes de rendimento, e na parte educacional porque são dois a remar para o mesmo lado. Sozinha é mais complicado, é sempre a mesma pessoa que educa, dá carinho, castiga, impõe respeito, torna-se muito difícil dosear.” 

Não foi por isso que deixaram de se dedicar aos filhos, a primeira sem viver com o namorado e a segunda separada. Nenhum resquício de preconceitos. Karina orgulha-se de ter sido sempre muito independente: “não dependo da aprovação de ninguém e nunca senti qualquer constrangimento. Talvez pelo facto de ter adoptado, as pessoas sempre apoiaram, mas não quero ser porta-bandeira de nada. Nunca senti nenhuma reacção ao facto de ser mãe solteira. Acredito que isso acontece em camadas mais baixas da sociedade onde existe menor abertura para esse tipo de opção. Para a maioria, ainda conta muito o casamento, o marido, e a estrutura oficial da família mas, devido ao meu trabalho, lido com pessoas mais abertas, do meio artístico, da moda e da publicidade, que viajam e estão a par das sociedades modernas.” 

Monalisa não se imagina feliz se não fosse mãe. “A nossa sociedade e outras tão ou mais atrasadas, sofrem desses complexos, a forma de lidar com ele depende de cada mulher. Eu penso que o casamento é opção e não obrigação, poderia viver feliz sem nunca me casar, mas não sem ser mãe, isso sim faz parte da natureza feminina, o resto não me diz nada, é reflexo da mentalidade de um núcleo, não de um todo.” 

O papel das mulheres nas famílias alargadas

Angola é um país de jovens e de agregados familiares extensos que têm no mínimo uma criança com menos de 5 anos de idade. As mulheres são responsáveis pela estruturação familiar, um pilar insubstituível, e contribuem fortemente para as receitas da família, tendo peso a nível económico e social. Para além dos filhos próprios, há casas que abarcam sobrinhos e «mais velhos», no conceito de família alargada africana, tornando-se um quebra-cabeças para essas mulheres a manutenção do lar. Mães solteiras, separadas ou viúvas cujos filhos permanecem em casa mesmo já criados, mulheres que representam simultaneamente o papel de pai e mãe, crianças que são educadas por tias, irmãs ou avós, a liderança feminina é fortemente representada nas famílias onde não há marido.

Jovens mães 

Ter filhos é um desejo que atravessa quase todas as mulheres, mas nenhuma mulher se deveria sentir inferiorizada por não ter filhos. E a gravidez indesejada cria muitos transtornos e complicações desnecessárias. Como tal, é preciso precaver esta situação. Apesar de existirem em Luanda gabinetes de planeamento familiar e ser bastante recomendado o uso de contraceptivos, talvez por questões culturais, a fecundidade continua elevada: uma média de 7 nascimentos de crianças vivas por mulher, aos 18 anos um terço das mulheres angolanas já deu à luz e aos 20 anos 68% já são mães. A maternidade precoce gera mães adolescentes que, muitas vezes, não têm condições, sociais, psicológicas e até físicas, para constituir família ou assumir a educação dos filhos. Isto é também consequência de uma paternidade irresponsável da parte dos rapazes que engravidam e abandonam as suas companheiras de ocasião pondo em risco a felicidade dos filhos.

Uma das causas apontadas é a deficiente educação sexual, uma vez que damos conta de um certo tabu dentro das famílias e na escola na abordagem ao tema sexualidade. Mas é também a própria conjuntura sócio-económica do país.

Sem educação não há emancipação 

A baixa escolaridade está relacionada com o elevado índice de gravidez na adolescência (21% para as mulheres até aos 16 anos e 61% entre os 16 e os 19). As mulheres têm sido também vítimas preferenciais do analfabetismo. No interior as raparigas, direccionadas para a maternidade e actividades domésticas, são preteridas aos rapazes para frequentar a escola. Nas zonas rurais que a mulher é mais vítima da sua própria ignorância, pela desinformação, pelas crenças e mitos que impelem ao preconceito.

É claro que para uma mãe iletrada torna-se difícil dar uma educação de qualidade ao seu filho. A mulher tem de ser estimulada a estudar, só assim encontrará um emprego mais estável e, para isso, precisa de dar prioridade, enquanto realização pessoal, à sua formação e não ser a apenas maternidade o centro da sua vida.  

Margarida Teixeira, assistente administrativa, indaga as razões de tal fenómeno: “Acredito que o envolvimento prematuro em relacionamentos sérios possa estar na origem do problema. Por outro lado, temos também a perda de determinados valores morais, o que é em muitos casos uma consequência directa do ritmo de vida acelerado que a sociedade enfrenta, o que não permite aos pais o acompanhamento devido dos seus filhos nas fases mais críticas da infância e adolescência. Um outro aspecto, na minha opinião, está associado à carência afectiva que, em alguns casos, se atribui ao factor guerra.” 

A guerra do quotidiano 

A mulher angolana foi, durante o período da guerra civil, uma verdadeira heroína.
A guerra incorporou-se na rotina angolana e, do que rezou para a história depois do alcance da paz – as conquistas e os fracassos militares -, há que fazer justiça à guerra do quotidiano e ao sofrimento de cidadãos comuns, recaída sobre a mulher, mães, esposas e filhas dos soldados. Com os homens fora, muitas passaram a ser a única fonte de rendimento das famílias, entrando no jogo da sobrevivência, com tácticas que articulavam as mínimas oportunidades, numa cansativa dupla jornada, em casa e no comércio informal, pequenas actividades geradoras de receitas no combate à miséria para providenciar as necessidades vitais dos filhos, alimentação, higiene, saúde, estímulo educacional. 

Muitas das mulheres que passaram pela situação de refugiadas de guerra nos países vizinhos, como por exemplo na República Democrática do Congo, eram mães que levavam os seus filhos em desespero sem ajuda de nenhum companheiro. 

Viveram todo esse sofrimento de forma invisível e silenciosa, tendo-lhes provocado graves atribulações afectivas e sexuais.

 

Acompanhamento dos filhos e das carreiras

Nos dias de hoje, o empenho pelo trabalho e as exigências que implica são condicionantes para as mães solteiras que apostaram nas suas carreiras quanto ao tempo dedicado aos filhos. Há que fazer uma ginástica para não negligenciar nenhuma das coisas.  

“Como mãe solteira, a trabalhar para o sector privado que é bastante exigente relativamente à produtividade e pontualidade, tive bastantes dificuldades no acompanhamento da educação dos meus filhos. Este não pode ser feito apenas aos fins-de-semana pois, para além da sua curta duração, o tempo torna-se ainda mais escasso por ser o restante para resolver todos os pendentes da semana, tais como a limpeza da casa, realização de compras, descanso e lazer, com a agravante de ainda ter de levar trabalhos para casa devido ao volume de trabalho.”, confessa Margarida Teixeira.

As três mães entrevistadas queixam-se que a vida agitada de trabalho rouba tempo para estar com os filhos, tentando compensar de outras maneiras. Monalisa Matos refere “Em determinadas alturas fica difícil optar pela responsabilidade que temos para com os filhos, ou com o trabalho, como fazer entre cuidar de um filho que está doente ou cuidar da responsabilidade do trabalho.” 

É quase consensual que, culturalmente, a mãe é figura tutelar na educação dos filhos, e no caso destas vivências de exclusividade entre mãe e filho, ainda mais exigente se torna esta relação. É necessário proteger as crianças de relações complicadas e com elevado grau de instabilidade, mas é recomendável que a mãe permita e regule, sempre que possível, a presença do pai na vida do filho para que não haja cobranças posteriores e frustrações de afecto.

Na opinião de Karina Barbosa, “a mãe é a figura pilar da educação dos filho. De acordo com a experiência, a educação e as regras são tarefas da mãe, o pai é muito mais relaxado. Os homens vão participando cada vez mais, felizmente, mas o punho forte continua a ser das mulheres, principalmente na questão dos filhos, no trabalho de casa, nas visitas à escola.” 

 

Apoio às mães

Em alguns países existem políticas de bem-estar social que apoiam fortemente mães nesta situação, tendo até desencadeado indignações conservadoras perante o dinheiro gasto pelo Estado na atribuição de subsídios a mães solteiras, tornando o acto de ter filhos um negócio rentável como se não houvesse já necessidade de trabalhar. Por exemplo em Inglaterra, atribuem-se por ano subsídios a 70 mil crianças sem pai. 

Não se espere respostas simples para problemas complexos, são realidades que demoram a acontecer, no seguimento de muitas lutas de emancipação, porém, há já alguns caminhos percorridos. 

Em Angola existem algumas estruturas institucionais de apoio à mulher. O SEPMD, criado em 1991 para tratar de assuntos relacionados com a promoção da mulher e na defesa dos seus direitos, transformou-se no Ministério da Família e Promoção da Mulher em 1997. Esta pasta tem concedido atenção ao programa de micro-crédito (desde 2002), voltado sobretudo para a área rural, a Ministra Sra Cândida Celeste da Silva referiu, na Cimeira Mundial Sobre a Família decorrida em Dezembro de 2006 na Jordânia, que este programa ajudou 33.700 famílias a resolver problemas do dia-a-dia, coisas pequenas que pesam muito no orçamento familiar tais como o uniforme e cadernos escolares, o reforço da dieta alimentar, a melhoria e requalificação do meio habitacional. 

O Centro Integrado de Formação e Educação Profissional (CIFEP), no município do Rangel – também propriedade do Ministério da Família e Promoção da Mulher - presta serviços de educação e formação técnica de jovens mães solteiras e a sua inserção no mercado de trabalho. 

Depois têm lugar as acções desenvolvidas pela sociedade civil: ONGs como Mulheres Paz e Desenvolvimento - MPD, a Agência Sueca de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento – Asdi), ajudas no âmbito das ONG’s religiosas como a Aedmf (Acção Evangélica de Desenvolvimento Mundo do Futuro), que trabalha com famílias de baixa renda, viúvas e mães solteiras.

A Federação de Mulheres Empresárias de Angola – FMEA apoia o empreedorismo as acções de formação da OMA (Organização da Mulher Angolana) e LIMA tentam despertar a consciência pública para a inclusão justa da mulher no mercado de trabalho. 

Todas as acções nesta direcção são importantes e o Estado tem de se responsabilizar pelo acesso igualitário ao mercado de trabalho, que facilitará muitas mães solteiras a darem um passo na sua autodeterminação e sustentabilidade. 

Apesar do papel fulcral que desempenham na sociedade angolana, as mulheres continuam a ser marginalizadas em algumas áreas. Por todas estas razões, as políticas de família não podem alienar um apoio sério às mães solteiras e às mulheres em geral.

Karina Barbosa, Manequim/Directora geral do grupo Step, 34 anos, uma filha e grávida do 2º filho

Margarida Teixeira, Assistente Administrativa/Financeira, 59 anos, dois filhos

Monalisa Vieira de Matos, Gerente bancária do banco Bic, 31 anos, 2 filhos

 

por Marta Lança
Corpo | 24 Janeiro 2023 | angola, feminismo, mãe solteira, maternidade