Roçar o local com o olhar do mundo - a Bienal Internacional de Arte e Cultura em S. Tomé e Príncipe
Como nasce e cresce uma bienal
João Carlos Silva, conhecido pelas experiências culinárias dos programas Na Roça com os Tachos e Sal da Língua, depois de andarilhar pelo mundo, regressa às ilhas de S.Tomé e Príncipe com novos olhares e referências. É a sua energia que oferece ao país pondo mãos à obra. Monta a Roça de S. João, um projecto turístico eco-cultural em Angolares, terra de descendentes de escravos angolanos e do rei Amador que dirigiu uma revolta de escravos em 1595.
Percebe-se que, entre o verde circundante e a concentração aliada aos sabores da culinária tropical, só podem ocorrer ideias grandiosas a este artista plástico, galerista da Teia d’Arte e amante da cozinha. Foi neste refúgio, restaurante, pousada ou residência artística - tudo pretextos para receber pessoas - que preparou os ingredientes da primeira Bienal em 1995, num formato ainda familiar e regional, mas já importantíssimo para dinamizar a arte santomense. E é ali também que, nestes dias de Julho de 2008, desafia José Eduardo Agualusa para conceber um novo encontro, o Roça Língua, que pretende levar escritores a um retiro na roça para pensar e debater as suas escritas.
O enérgico João quis que a Bienal desse o salto: partir para a internacionalização e expandir as áreas de intervenção. Adivinhe-se as dificuldades num país não abastado e numa altura em que se vivia mais uma crise política, com nova mudança de governo. Para comissariar este redimensionamento convidou Adelaide Ginga, que já fora subdirectora do Instituto das Artes e responsável pela participação portuguesa nas Bienais de Veneza e de S. Paulo entre 2001 e 2007. Formaram uma pequena equipa de cumplicidades profissionais: a Marta Mestre como curadora técnica, o trabalho gráfico de Henrique Cayatte, entre outros. E assim foram “ultrapassando as dificuldades porque acreditamos que é necessário utopiar outra vez em África e que somos capazes de fazê-lo”, diz João Carlos Silva que alia esta missão ao prazer de fazer coisas e vê-las crescer. Uma Bienal “em construção, com patamares de exigência que a colocam no mapa das bienais do mundo para transformar S.Tomé e Príncipe num entreposto cultural que consiga fazer o diálogo entre culturas e continentes.” Esse é o grande sonho mas tudo começa numa pequena escala, ao “preservar uma árvore milenar deste território e recordar histórias do mais-velho dos Angolares, depois roçar o local com o olhar do mundo e ao mesmo tempo trabalhar a auto-estima dos santomenses.”
O criador do Centro Internacional de Arte e Cultura, organização da Bienal, é categórico ao afirmar que “cultura é desenvolvimento, alavanca para outras áreas”. O que se pretende é um movimento cultural que não ande ao sabor dos momentos políticos nem de compadrios, que faça o país “receber um abanão, quase um choque eléctrico para despertar”.
Adelaide Ginga escolheu para esta edição o tema “Partilhar territórios”, entenda-se em termos geográficos e de identidades culturais, indicado “na lógica de uma ilha, de uma Bienal em África, das diásporas, e no intuito de descentralizar a cultura”, perante o evidente desequilíbrio entre norte-sul no acesso à cultura.
Averiguou-se a potencialidade de crescimento de uma Bienal no terreno: calibrar a sensibilidade artística e as razões de existir aqui. Adelaide Ginga quis pôr os artistas de S.Tomé em paridade com os outros, em diálogo, sem enfatizar diferenças nas nacionalidades ou grau de consagração dos artistas, sendo uma exposição num certo sentido desterritorializada. “Queríamos que vissem as imagens pelas imagens.”
Procuraram um espaço com maiores dimensões e as Antigas Oficinas, uma espécie de museu pré-industrial dos anos 40 no centro da cidade de S.Tomé, depois de tirada a maquinaria e criado o projecto arquitectónico de Tiago Mestre, que fez alterações no edifício mantendo a traça original, foi o lugar para a exposição internacional.
Trabalho dos artistas
Os artistas foram escolhidos em função do contexto geográfico, percurso artístico e tema central. Vieram trabalhos de Espanha, Inglaterra, Guiné-Bissau (com os panos de Manuela Jardim), Moçambique (Jorge Dias), África do Sul (um vídeo sobre a questão centro-periferia de Zwelethu Mthethwa), Brasil (Lygia Pape, Nelson Leiner e Rosana Ricalde). O camaronês Barthélèmy Toguo (e residente em França) montou a peça Terra Prometida sobre a ilusão da melhoria de vida futura, base de toda a emigração. O mesmo artista agitou a inauguração dando corpo a Requiem for África, performance em que, dentro de um bidôn de gasolina, engole a totalidade de uma garrafa de litro e meio de água, o bem escasso ofuscado pela febre do petróleo.
Dominique Zinkpè, do Benim, criou a sua obra a partir daquele espaço, numa plataforma de caminhos de ferro que, entre pegadas e arame farpado, evoca as repressivas fronteiras e dificuldades de desloação. O angolano Yonamine Miguel, além do quadro “PhreeStyle”, reinstalou a sua obra “Microlife”, que já estivera na Galeria 3+1 em Lisboa, um conjunto de jornais, neste caso o santomense Correio da Semana, pelo chão, numa cacofonia da actualidade e sua rasura. Aliás, Angola, cuja ligação ao país tanto cultural como economicamente é cada vez mais forte, esteve bem representada por obras dos artistas António Ole, com três quadros da série “Cadernos de Bordo”,colagens que misturam o imaginário asiático com o angolano e a peça “Daydreaming” do trabalho de bricoleur de Tiago Borges.
De Portugal, obras de João Tabarra, Miguel Palma, Ângela Ferreira e Rodrigo Oliveira que passou um mês em residência artística, juntamente com a brasileira Rosana Ricalde, na linha pretendida pela Bienal de um laboratório que estimulasse a criação. Também a dupla Inês Gonçalves e Kiluange Liberdade estiveram um mês a fazer um trabalho fotográfico e um vídeo sobre as personagens do grupo Formiguinha do bairro da Boa Morte que representam o Tchiloli. Para quem não conhece esta tradição performática, o ministro da Cultura e Educação de S.Tomé, Jorge Bom Jesus, explica: “a representação da Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carloto Magno, denominado “Tchiloli”, veio com os colonos da Madeira e foi aclimatado e recriado em S. Tomé, fazendo parte do património cultural do país, numa simbiose entre a cultura africana e a europeia.”
Para os artistas santomenses a Bienal reveste-se de grande importância, e é notória a margem de progressão nas suas abordagens. É o caso de Eduardo Malé, René Tavares e Kwame Sousa, que iniciaram a sua vida artística com João Carlos Silva na dinâmica à volta da Bienal, depois quiseram sair da periferia e foram estudar (alguns para Portugal), regressam agora a esta edição com propostas muito interessantes. Malé, cuja obra é uma escultura à escala humana feita com folha de bananeira, utensílio da pesca artesanal, com o nome de “(Re)tensão”. O artista preocupa-se com a situação actual, política e social, “em que o impulso principal é ficarmos tensos” por oposição à despreocupação dos privilegiados. Kwame Sousa apresenta uma instalação para a qual aceita o rótulo de intervenção social “mas nada de política”. A peça, com placas de gelo, diariamente renovadas, com as cores das bandeiras dos EUA, China e Índia, e holofotes em cima, chama a atenção para o problema do aquecimento global.
Modelos de Bienais
Durante a semana da inauguração, muitos foram os ilustres portugueses que passaram pela ilha, além de Mário Soares, que visitava o país 40 anos depois da sua deportação para as ilhas, estavam pessoas do mundo da arte, como o crítico de arte e director da revista Dardo Paulo Reis, ou Pedro Lapa, director do Museu Chiado. Ao pequeno-almoço do hotel, os agentes culturais trocam contactos, comentam passeios, comidas e a farra da véspera. Fala-se da criação de fenómenos artísticos, o investimento em artistas por razões económicas ou zonas de influências, o próprio entusiasmo do centro cultural, ainda ocidental, pela arte africana. Por vezes, a sensação de que se discute mais o mercado e os bastidores do que as obras propriamente ditas. Ali e no Fórum “Cultura é desenvolvimento” discutiu-se muito a existência de um olhar africano na literatura e na imagem, ou se haverá armadilhas nesta condição, tendo a arte o seu próprio território sem ser refém de uma história ou origem.
Mas é ao contar estórias, e lá estavam bons contadores como o Henrique Cayatte, que se nota as ligações a África. Por motivos familiares, guerra, cooperação, ou trabalhos, todos têm a sua África.
Chegados ao consenso da necessidade de dinamização cultural em África, as bienais africanas são uma boa plataforma de criar discurso e visibilidade. É preciso reflectir no modelo. “A Bienal de Dakar é um modelo mais fechado, só com artistas nascidos em África e na lógica da francofonia. Há uma proposta de um olhar africano, mas não de diálogo internacional” conta-nos Adelaide Ginga. Agualusa releva a importância, no caso da de São Tomé, da não-guetização que mostra a arte universal. É no diálogo norte-sul, na tal partilha que se pode crescer, nunca pelo isolamento, ao implicar a comunidade santomense sem deixar de aspirar ao mundo, e fora da lógica fechada da língua portuguesa ou apenas da arte africana. O escritor acrescenta ainda que “o mais importante é fazer bem, e não se quem a faz é nacional ou não”.
O galerista José Mário Brandão dá uma opinião positiva quanto à organização e qualidade dos artistas. “A Bienal de S.Tomé podia servir de exemplo a algumas que se fazem em Portugal, que estagnaram; esta tem uma perspectiva de futuro.” O consultor da Gulbenkian e fundador do Artafrica, Fernandes Dias, muito optimista em relação a esta Bienal, afirma que o conjunto de obras presente poderia ser exposto em qualquer parte do mundo. O designer Henrique Cayatte elogiou na Bienal a sua forma democrática e sem hierarquias, tanto na escolha dos artistas como na própria arrumação da exposição, em que cada visitante escolhe o seu percurso.
Turismo cultural
A impressão de que por um momento a terra pára de girar, o apelo do Equador (agora também o do sucesso do livro de Sousa Tavares ao colo na piscina ou na esplanada), o clima agradável (mesmo na altura da estação seca, a Gravana), a segurança, as praias, o verde e sossegado Ilhéu das Rolas, a memória das roças de cacau, tudo isso chama turistas, sobretudo portugueses, mas também da costa de África, a este país de 33 anos de independência. O tipo de turismo pode ser o de lua-de-mel, família, negócios (em crescente com a descoberta de petróleo). Mas há também o “turista rebuçado”, quer dizer, os turistas que, perante a insistência das crianças que chamam “branco branco, doce doce”, distribuem chupa-chupas, acentuando as relações de poder. Nesse sentido, o pacato São Tomé e Príncipe onde Somos Todos Primos, como por lá se diz, deve desenvolver o turismo cultural, para além da garantida natureza e das crianças que correm pelas ruas.
Acontecimentos como a Bienal trazem outro tipo de actividade e de reflexão. Ainda que seja “uma linguagem estranha à maior parte das pessoas” como crê a comissária, “é uma ruptura de choque bem acolhida.” Para isso, na linha da escala local para o mundo, há todo um acompanhamento pedagógico que vai estabelecendo relações, por exemplo, conta Adelaide Ginga, “o grupo de vigilantes a quem demos formação que apresentam as obras. As pessoas gostam de sentir que participam e notou-se um esforço para tentarem acompanhar o desafio que lhes está a ser proposto.”
A Bienal pretende que se valorize a noção de património, com exposições históricas que avivam a memória, que está muito dispersa e pouco documentada, como a exposição de fotografias do Instituto Marquês de Valle Flor que foca a realidade do país no início do século XX. Também a actual realidade das Roças, memória física do antigo-império colonial, cujos edifícios em vertiginosa deterioração têm como guardiães as crianças e alguns persistentes agricultores, foram fotografadas por Adriana Freire e expostas na roça S. João.
Uma vez que todos os políticos presentes concordaram que a sociedade precisa da cultura em termos de desenvolvimento, e para que isso não sejam só “palavras bonitas” pode-se aliar as iniciativas da Bienal (exposições, debates, artes performativas e cinema), a uma persistência na aposta cultural.
Na combinação de artistas, pensadores e produtores de arte, esta edição da Bienal inicia um novo percurso de abertura e debate cultural que trazem às ilhas do “leve-leve” a possibilidade de encontro de arte e ideias, além de destino turístico. A História de São Tomé e Príncipe - a dos contratados para as roça, a ligação à América e à Europa, as influências culturais de Angola, Cabo Verde (hoje em dia dança-se muito as modas angolanas da tarrachinha e zouk, e até os brancos deixam de ser pés-de-chumbo), do Brasil, Benim e Portugal - descobre agora o reverso positivo enquanto “entreposto cultural” que traz o mundo à roça e vice-versa, num ambiente propício para se pensar e contemplar. Com aquele poder das ilhas onde andamos às voltas até chegar sempre aos sítios certos, como fez João Carlos Silva.
Fotografias de Marta Lança
Texto publicado no Público em Julho 2008.