Ciclo Vozes do Sul no Festival Silêncio I LISBOA
Vozes do Sul é um pequeno ciclo que programei para o Festival Silêncio, no qual se pode assistir ao filme “Independência”, um olhar angolano sobre a guerra de libertação, e a duas conversas: a 30 de setembro Achille Mbembe discute as ideias de “Políticas da Inimizade” sob moderação de Mamadou Ba; a 1 de outubro Jota Mombaça questiona o Problema de Escuta, Rita Natálio mostra a face oculta do Antropoceno: Misantropoceno e misantropia, juntamente com a investigadora Maria Paula Meneses, co-autora de “Epistemologias do Sul”, que aqui faz convergir uma Ecologia de Sabores e Saberes.
projeção do documentário Independência
dia 29 setembro (sexta-feira) 17.30 - 19.30 I O Bom, o Mau e o Vilão, rua do alecrim 21
Mário Bastos (realizador), Jorge Cohen (coprodutor) e Conceição Neto (consultora histórica). Paulo Lara (Director do Projecto e coprodutor)
produção Geração 80 / Associação Tchiweka 2015
Finalmente um filme que contrapõe as visões unilaterais da guerra, colonial para uns, de libertação para outros. Independência foi pensado e realizado por angolanos, num longo processo de recolha de depoimentos de intervenientes directos ou indirectos na guerra, dentro e fora de Angola. É um filme que mostra as estratégias, as alianças e os sacrifícios na resposta ao domínio colonial português, num grande trabalho de transmissão da memória para as gerações não conheceram o regime colonial nem têm muito acesso ao passado recente.
Este filme marca uma viragem na produção de discurso da História e da cultura visual sobre a guerra. Imprescindível trazê-lo à discussão em Portugal onde a violência colonial é escamoteada e a realidade da guerra silenciada, sobretudo no que toca às consequências para as sociedades africanas.
Vozes do Sul Políticas da Inimizade - Achille Mbembe e Mamadou Ba
dia 30 de setembro 18h às 19h I palco da Praça de S. Paulo
O filósofo camaronês Achille Mbembe vem ao Festival Silêncio para uma conferência pública a partir do livro “Políticas da Inimizade”, que será conduzida pelo ativista anti-racista Mamadou Ba.
Sob o pretexto de defender os “nossos”, um certo estilo de vida, as democracias resvalam em ditaduras. Mbembe confronta-nos com as consequências deste paradigma, de todos contra todos, a naturalização da guerra, a relação entre violência e lei, norma e exceção. Mas também o funcionamento da hostilidade e do medo, dos “medos racistas” ao medo “visceral”, profundamente ancorado na história da Europa e do colonialismo e as formas que estes assumem nas sociedades contemporâneas. Tudo isto numa linha de continuidade histórica do horror, dos colonialismos aos fascismos.
“A ideia de que a vida em democracia é pacífica, policiada e desprovida de violência (nomeadamente sob a forma da guerra e da devastação) não nos convence. É verdade que a emergência e a consolidação da democracia vêm a par de inúmeras tentativas de controlar a violência individual, de a regulamentar e reduzir, suprimindo nomeadamente as manifestações mais espectaculares e mais abjectas por reprovação moral ou com sanções jurídicas. Mas a brutalidade das democracias nunca foi senão abafada. Desde as suas origens, as democracias modernas foram tolerantes com uma certa violência política, inclusivamente ilegal. Integraram na sua cultura formas de brutalidade levadas a cabo por uma série de instituições privadas que agem como mais-valia do Estado, sejam elas corpos francos, milícias ou outras formações paramilitares ou corporativistas.” do livro Políticas da Inimizade, Antígona 2017
Vozes do Sul Lugar de Fala - Jota Mombaça, Rita Natálio e Maria Paula Meneses
dia 1 de outubro 18h às 19h I palco da Praça de S. Paulo
Podem as vozes violentadas e “historicamente interrompidas” desautorizar a própria fala? A partir dos actuais trânsitos de capital económico, cultural e ecológico, pensemos nas vozes que subvertem a dominação encontrando pontos de contacto.
Ecologia de sabores e saberes - Maria Paula Meneses
Como nos comunicamos, reconhecendo a nossa existência, por saberes transmitidos que não a fala? É que o sabor, as texturas e as sequências de pratos são fundamentais para recuperar a história, a geografia e outros saberes partilhados dentro e entre culturas. Até que ponto os saberes e as experiências que a tradição oral partilhada nas preparações culinárias pode ser resgatada e contribuir para uma alteração das condições de representação históricas dos contactos no Índico? Até que ponto as receitas de cozinha, essencialmente orais, nos permitem denunciar a permanência de situações de opressão sexista e colonial-capitalista? Poderá a leitura de como preparamos a comida, do saber aí contido, contribuir para ampliar a tradução intercultural, para uma ecologia de sabores e saberes?
Problema de Escuta - Jota Mombaça
Dobrando uma certa leitura do problema da fala subalterna em Spivak, buscarei evidenciar que, antes de um silêncio subalterno, o que há é o encontro de vozes, enunciados e gestos inscritos pela subalternidade com uma tendência estruturante à não-escuta como política ética e cognitiva dominante da branquitude, assim como de outras posições politicamente passáveis (cidadania, cisgeneridade, heterossexualidade, etc.) no marco normativo do mundo como nos foi dado conhecer. Além disso, defenderei alguns dos efeitos do uso estratégico da categoria Lugar de Fala nos ativismos contemporâneos, especialmente no que toca a problematização das políticas de autorização discursiva que tem até aqui ordenado a produção, circulação, difusão e legitimação de vozes e sentidos no mundo.
Antropoceno e a sua face oculta: Misantropoceno e misantropia - Rita Natálio
Nos últimos anos, convencionou-se chamar de “Antropoceno” à aliança entre crise climática e capitalismo planetario, retomando-se uma chave de “excepcionalismo humano” que, por um lado, pressupõe a responsabilidade universal da humanidade enquanto espécie no desconcerto ecológico e, por outro, reivindica uma ação coletiva da espécie face à urgência climática. No entanto, a assunção de uma força geológica e ecológica da “humanidade como um todo” que poderá fazer sucumbir o planeta e que deve ser travada por “todos”, é constituída historicamente em cima de fortes ações de “misantropia” e desigualdade entre corpos humanos (colonialismo, racismo, extrativismo, capitalismo, sexismo, …) que aparecem muitas vezes ocultas neste modelo de ecologia política, ao mesmo tempo apocalíptico e salvacionista. Proponho então pensar o Antropoceno como Misantropoceno ou como umamise-en-anthropo-scène que nos levaria a questionar o universalismo desta proposta, ao mesmo tempo que nos encaminharia para uma posta em cena de outros lugares de fala nesta discussão, nomeadamente o ativismo ecológico e cosmológico dos povos indígenas da América do Sul com suas práticas intrínsecas de proteção da natureza.
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