bell hooks: haverá um nós «mulheres»?

No movimento feminista e por direitos civis, desde a luta sufragista (entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX), passando pelos anos 1970, as mulheres negras sempre se encontraram numa difícil encruzilhada: não podiam falar sobre questões de género para não desviarem do importante combate à opressão racial; tampouco era oportuno trazer à baila as questões raciais para não secundarizarem a denúncia ao machismo. Assim, apesar das apregoadas alianças e da almejada sororidade, as “famílias” que foram compondo o feminismo, brancas, negras, pobres, ricas, africanas, europeias, norte, sul, campo, cidade, sempre se entreolharam sem se verem. Raramente quiseram entender as diferenças e as urgências de cada qual. E mesmo hoje é ainda uma ambição pensar os feminismos em termos internacionais nos seus contextos específicos. 

O certo é que a visibilidade e a liderança do movimento penderam mais para as feministas brancas de classe média que, tendencialmente, dissociam e hierarquizam as preocupações raciais em relação às de género.

Não encontrando lugar numa emancipação feminina que não incluísse dois elementos condicionantes e determinantes na sua vida — ”ter nascido negra e ter nascido mulher” (p.33) —, a norte-americana bell hooks (1952 - 2021) escreveu, em modo interrogativo, à procura dessa identidade interseccionada: de classe, género e raça. A sua experiência pessoal seria o ponto de partida para a experiência social: ”antes de exigir aos outros que me ouvissem, tinha de me ouvir a mim” (p.10).

Assim, a ”jovem negra destemida do Kentucky rural” (p.11) que, durante os tempos universitários de politização e de conhecimento se ambicionou mulher livre e independente, escreve em 1981 este livro-manifesto que só viria a ser publicado quando se aproximava dos trinta anos. O livro Não serei eu mulher tornou-se um clássico sobre a exigente disputa das mulheres negras para encontrarem e inscreverem o seu modo de viver o feminismo. 

Num estilo coloquial e algo circular em termos argumentativos, o livro revisita — na história, na literatura e nos desafios da sociedade americana — estes temas interligados: o sexismo durante a escravatura, a desvalorização da feminilidade negra, o machismo de homens negros e brancos, as ligações entre imperialismo e sexismo, o racismo camuflado no feminismo e a resistência da mulher negra. A autora defende que o racismo e o sexismo, institucionalizados enquanto patriarcado, estão na base da estrutura social, neste caso norte-americana, mas são extrapoláveis para tantas outras, como as nossas sociedades.

Criticando os vários feminismos que deixaram de lado as experiências e lugares sociais das mulheres negras, evidencia como estas tiveram de desbravar o seu próprio caminho de resistência. A identidade mulher já tinha sido antes contestada por hooks, que identificou a exclusão sistemática de um imenso grupo de mulheres, racial e sexualmente oprimidas ao longo da História, ”sempre percepcionadas como o Outro, [como] seres desumanizados” (p.222), e a universalidade do termo “mulher” é um atentado grosseiro às mulheres negras.

hooks aponta ainda aos movimentos feministas os constrangimentos de classe, sendo que as mulheres brancas sempre estiveram em vantagem indubitavelmente com mais acesso à informação, instrução e capacidade de liderança. Refere ainda que o movimento feminista dificilmente soube denunciar o capitalismo, fazendo corresponder uma ideia de emancipação à aquisição de estatuto económico e poder financeiro. Um aspecto interessante da sua argumentação é, por exemplo, quando recorda que a reivindicação do acesso ao trabalho feita pelas feministas francesas, significava para as mulheres negras precisamente o oposto da libertação, elas sempre trabalharam e foram exploradas. “A tónica no trabalho era mais um sinal de como a percepção da realidade pelas brancas que lutam pela emancipação feminina era totalmente narcisista, classista e racista” (p.231). Lamentando as dificuldades das mulheres negras em organizarem-se e os momentos em que, por hierarquização das lutas ou por interiorização de preconceitos, foram refreando desejos emancipatórios, hooks revisita algumas vozes progressistas do século XIX. Como a de Sojourner Truth (1797–1883) e o seu discurso “Aint I a Woman?”, na Convenção de Mulheres em Ohio, em 1852, em que apela à humanidade perdida das pessoas escravizadas (segundo hooks, chegou até a mostrar os peitos para provar que era mulher).

Mergulhamos também nas experiências traumáticas da escrava negra, depois ”explorada como trabalhadora agrícola, trabalhadora doméstica, reprodutora e objecto de abuso sexual do homem branco” (p.49) e, muito, negro. Para a autora, a violação das escravas seria um método aceite de terrorismo com o propósito de desmoralizar e desumanizar as mulheres negras, com impactos nos nossos dias. Se se vivia num universo genericamente misógino, o desvio da doutrina cristã no século XIX alterou a percepção sobre as mulheres: a passagem «da imagem da branca pecadora e sexual para a de uma donzela virtuosa» (p.63), ocorria simultaneamente à exploração sexual das negras cativas, reforçada por mitos da sua promiscuidade e imoralidade. A feminidade negra foi constantemente desvalorizada, nomeadamente através da falsa ideia da matriarca — mulher forte que tudo aguenta —, estereótipos que ainda hoje afectam as negras, discriminadas no trabalho, na sociedade e, não pouco, atacadas pela moralidade. 

bell hooks refere ainda que os movimentos anti-racistas e nacionalismos negros também se revelaram misóginos e pouco interessados em sair da redoma patriarcal. Se apelavam ao fim das divisões raciais, fortaleciam as sexistas. Ou seja, no seio das suas comunidades, as negras sempre viveram um dominante machismo. 

Este livro, traduzido para português em 2019 pela Orfeu Negro (existindo uma tradução livre da Plataforma Guetto), é uma importante aquisição para Estudos de Género, Estudos da Negritude e filosofia. Leitura fundamental num contexto onde o processo de combate à discriminação étnico-racial e de género tem ainda longo caminho pela frente. A associação FEMAFRO, conduzida por mulheres e jovens negras, africanas e afrodescendentes, e a INMUNE, entidade «feminista interseccional e anti-racista», vêm contrapor o silenciamento histórico e actual das mulheres negras na sociedade portuguesa. 

Enquadrado no debate sobre a urgência de pôr termo à negação enviesada do racismo, bell hooks é assertiva na defesa da necessidade das lutas contra o patriarcado e contra o racismo virem a par, sendo aliás, esse o fundamento político que dá amplitude e sinceridade ao movimento feminista enquanto um todo. Este alerta de 1981 para não instrumentalizar o feminismo segundo interesses de certas mulheres, continua muito actual. O movimento ganharia muito mais significado ao representar as experiências da maior diversidade de mulheres, com a sua vulnerabilidade e força, construindo a sororidade sem vestígios de competição ou negligência. 

por Marta Lança
Corpo | 7 Julho 2019 | Bell Hooks, feminismo negro, intersectionalidade, racismo