Zezé Gamboa, um percurso no cinema
O realizador fala do seu percurso no cinema, dos projectos, dos financiamentos e falta deles, de uma vida a contar histórias.
A conversa decorreu no 67º Festival de Cinema de Locarno, um ritual antigo para os amantes de cinema, realizadores, produtores e jornalistas. Zezé Gamboa, no meio desse ambiente, fala calorosamente das coisas que gosta, episódios de outros festivais, rodagens e problemas que o métier do cinema envolve. É carismático a conversar, com a sua entoação de voz particular. As pessoas riem-se pelo empolgamento e exagero. Encontra-se naquela fase de maturidade, já tendo alguns filmes a provar o seu estilo e enfoque mas com vontade de ter mais condições para que não seja sempre tudo uma luta.
Nesta conversa, passámos pelo seu projecto recente “Aleluia” que o levou ali, a Locarno, em busca de financiamento. Contou o seu início no cinema, quando começou a realizar telejornais na TPA, depois a fazer som até se dedicar à realização.
Próximo filme – Aleluia
O que achou do festival de Locarno?
Locarno continua a manter o espírito de um certo cinema independente. Vi o filme do Luc Besson que é um blockbuster. Muitos outros são de autores menos conhecidos, mas de grande qualidade. Continua a ser um festival bom para descobrir alguns talentos.
Correu bem o programa de apoio a projectos, Open Doors?
O Open Doors foi cansativo, trabalhámos muitas horas em pouco tempo, compensou nos prepararem para os pitchings. Já tinha feito duas vezes em Roma e Roterdão, mas cada um tem o seu sistema. Aprende-se sobretudo técnicas de comunicação, como vender melhor o projecto, retirar o que há de melhor para dar aos potenciais co-produtores e júris.
Quanto ao seu projecto de filme – “Aleluia”, que avanço aconteceu com este encontro?
Ainda é muito embrionário. Quem avaliou disse que a matéria era boa. Num ambiente fechado, quatro homens à deriva no mar, é já suficientemente forte e tem potencial cinematográfico. Se sairmos com três bons contactos do Open Doors já é um ganho absoluto. Muitos poucos produtores interessam-se por cinema africano. Para os que vieram há contactos interessantes e que estão a espera do guião. Um produtor francês que acabou de fazer um filme em estúdio, aconselhou-me a realizar no mar de forma mais realista. Mas uma coisa é ser mais realista outra é haver dinheiro, porque aquilo que poupo em filmar no mar gasto em rodagem. Uma pessoa não pode estar contra o mar mas com o mar, isso é uma filosofia. Continuo aberto para ver como se passa, depende de como o guião estiver, depois trabalho com um Script Doctor para melhorar a estrutura.
Este seu próximo filme parte então de uma história real?
O guião é baseado na vida dos pescadores, mas é ficcional. Vou intervir mais no lado da ficção. É bom ser confrontado pelo olhar de fora, inventar ou trazer coisas novas.
O “Aleluia” é uma necessidade sua de reflexão sobre a humanidade, numa situação-limite de uma pequena comunidade?
Em 1986, estava em Cabo Verde a fazer som no filme do Francisco Manso, O Testamento do Senhor Napumoceno, e contaram-me aquela história. Pensei “tenho aqui um bom filme”. Quis fazer outros filmes primeiro, agora é altura de regressar a ela, é forte do ponto de vista humano. Entra-se na situação de vida e no extremo. A motivação são pessoas pobres que vivem da pesca e de repente estão numa situação descontrolada com o destino nas mãos de Deus e, com todas as consequências a que são expostas, há muito confronto. Nas entrevistas que lhes fiz ainda não me falaram do conflito entre eles. Não é possível ficarem 60 dias perdidos no mar sem conflitos. Estou à espera de voltar lá, e penso que os pescadores se vão abrir muito mais porque fico muito tempo.
Como vai trabalhar esse paralelo entre o que se passa no mar e na terra: os homens no mar e o desespero das famílias na terra?
Na cronologia do filme quero fazer a parte da terra e depois entro no mar, toda a relação do mar com a terra está na cabeça de um dos pescadores que fica louco, é aí que temos a relação com a terra. O mar é a força física de toda a acção do filme (80% no mar e o restante em terra).
Em que lugar de Cabo Verde?
Santiago, Pedra Badejo, não tem muito ar de aldeia de pescadores, estou a pensar construir uma.
Parece querer pensar a fragilidade da vida. Este filme terá um enfoque existencial menos ligado a questões históricas?
O que me interessa são as pessoas, o comportamento e os sentimentos, independente da situação ou do local onde estão. Senti logo que esta história era forte. Se perguntasses se o filme é para todos os públicos digo que é para gente com outra reflexão de vida. Mas isso não muda nada nos filmes que eu faço.
Então a direcção de actores vai contar muito.
Desta vez penso trabalhar de outra maneira. Até agora trabalhei sempre do ponto de vista clássico. Neste filme estou a pensar ao contrário. Cada um dos pescadores lê a sua personagem e depois sozinhos trabalham o mais profundo na personagem que irão representar. Duas semanas antes do filme, trabalho com cada um para ver até onde chegaram. Intervenho para sentir se está longe ou não do que quero. Na questão do desespero espero que vão até ao fim, até à resistência máxima. Se dirigimos muito os actores, serão sempre sanguessugas, estão à espera de lhes darmos tudo. Para mim o importante é irem ao máximo dessa personagem e puxar o mais possível, isso é que vai dar consistência ao filme. Não estarem à espera da figura de autoridade que lhes conduza todos os gestos.
Produção de cinema em África
O Open Doors apoia regiões onde há vulnerabilidade no cinema de autor. Este ano escolheram a África de língua inglesa e portuguesa, quais as disparidades nestas regiões?
Temos muitas fragilidades no cinema de ficção de África que fala português. É feito só de tempos a tempos, em termos de material financeiro não tem nenhuma solidez que permita uma continuidade segura, continuamos muito dependentes da antiga metrópole e das coisas que vêm de fora. Os anglófonos, com a relação já são muito mais autónomos, têm uma garantia segura do report text que é 60 % do budget. Dá-lhes uma consistência diferente da nossa. Em termos de meios técnicos têm tudo.
Angola com as novelas e as séries, já começa a ter mais recursos e técnicos. O fundo recentemente criado pode ajudar o cinema a ficar mais estável. A base do fazer cinema é o primeiro dinheiro, se tivermos ganha-se credibilidade que ajuda à montagem financeira do projecto em geral. O fundo de cinema angolano – Amoangola (anda a volta de USD 200 milhões) – é privado. Nessa primeira fase penso que se destina a qualquer género, mas dará um input para começar. Em Moçambique também querem criar um fundo. Em Cabo Verde consegue-se ter apoio de meios.
É muito difícil filmar em Angola?
Agora está melhor. Os miúdos já fazem filmes com USD 20 mil, se agora tiveram 250 mil espera-se que pelo menos a qualidade melhore.
Tem sido pioneiro em fazer cinema num universo tão escasso.
Ainda há muita dependência da Europa. Financeira, de ideias, liberdade.
Parece-lhe que há vontade política de haver cinema nacional?
Mostra-se alguma abertura. Pelo menos querem que haja mexidas no audiovisual: com este concurso parece haver uma vontade. No entanto, quem gere é a Semba, o IACAM também devia ter um apoio sólido ao cinema, institucional. No cinema, habitualmente os meios são estatais.
O que falta para se desenvolver a formação e a cultura cinematográfica?
Tudo. A formação é vital, não se pode ter uma classe de cineastas senão tivermos uma escola, se não virmos cinema. É preciso formação para todos, por exemplo técnicos. Se precisamos de um director de fotografia quase só há um engenheiro de som que é o Gita Cerveira, mas mora fora. Por outro lado, é preciso reabilitar salas, ou fazer novas, para as pessoas verem cinema. As únicas são as do Belas Shopping e mesmo assim têm debilidades. No meu caso, ficou prometido que o filme passava em DCP, (digital compact packetge), e passou em DVD, nem sequer foi em blueray, uma aldrabice. Fiz o contrato normal de 50/50 por cento e depois fica a subir para eles. Concluindo é preciso dar os meios para as pessoas trabalharem. O que é importante é fazer.
Como melhorar a formação?
Numa primeira fase pode-se enviar estudantes para Cuba, Brasil ou Portugal. Temos de fazer já alguma coisa, enquanto não houver escola. O modelo dos workshops não funciona, já passámos essa fase. Senão houver formação, teremos sempre um cinema muito fraco, de gente que gosta mas não sabe. Temos de largar esta maneira arcaica e caótica.
Um cinema para contar a História de Angola
Sendo Angola um país com tantos episódios para contar, digerir e reflectir, o cinema tem, tal como a literatura, um lado documental. Há muita coisa que pode desaparecer. Sente necessidade de fazer cinema de época?
A ficção traz outros elementos inerentes ao próprio exercício de fazer ficção. Há elementos que vêm da realidade mas extravasamos isso por estar a ficcionar. Até do ponto de vista da escrita e argumento dá algum jeito para ligar algumas cenas. Enquanto no documentário está-se directamente em confronto com pessoas que viveram a situação ou sobre uma pessoa que já não está entre nós cuja vivência é real. Não há truques, nem atmosferas.
Fazer mais documentários?
Por experiência própria, pois comecei como realizador de documentário, acho que é uma escola boa porque ficamos a dominar os mecanismos básicos do cinema. Do ponto de vista técnico é menos complicado e cria-se uma relação menos difícil com o cinema do que pela ficção. Por isso acho que devia haver um fundo especificamente para documentário.
E porque não voltou a fazer documentários?
Propuseram-me fazer um documentário sobre os presos políticos angolanos no Tarrafal, e esse quero fazer.
É melhor despachar-se para apanhar testemunhos….
Ainda há o Luandino Vieira, o Amadeu Amorim, o Justino Pinto de Andrade. Tenho de fazer uma ruptura de geração, porque há uns que entram mais tarde e a vida também deve ter mudado na prisão, para melhor ou para pior. Ver como a coisa evoluiu. É uma história importante. Houve gente presa durante 14 anos.
As nuances dentro das prisões para presos políticos; os mais pobres iam para S. Nicolau. Está muito por explicar sobre o que aconteceu com os presos africanos?
Sim, interessa-me descodificar tudo aquilo e saber como eram feitas as escolhas, as hierarquias.
Os seus documentários – o Mopiopio, Desassossego e Desobediência – foram muito marcantes. Tem receio de algumas temáticas não terem financiamento?
O financiador ou é livre e não se intromete ou então não dá, não se pode controlar tudo. A partir do momento em que se garante alguma qualidade, a questão é livre. No mínimo, tem de saber gerir o seu projecto.
Sendo o Grande Kilapy um filme de época angolano, porque filmou no Brasil e não em Angola?
Primeiro tinha a haver co-produção do Brasil, porque era um filme caro e tinha actores brasileiros e fazia todo sentido ter fundos do Ibero-americano, da Ancine e da co-produção luso-brasileira. Depois não filmei em Angola por problemas na produção. Estava previsto filmar três semanas em Portugal, quatro no Brasil e uma em Angola. E acabámos por fazer seis semanas em Portugal, uma no Brasil e nem sequer fomos a Angola. Tive dinheiro do BESA e do BAI. O problema está na perversidade de todo o processo de produção do filme, que foi muito bem financiado para um filme africano – tem à volta de 2 milhões e 200 mil euros. Mas falharam os esquemas de produção.
Um percurso que começa na televisão
Iniciou a sua carreira a realizar telejornais e nos serviços informativos na televisão até 1980. Porque escolheu esse ofício?
Não escolhi, fui escolhido. Num domingo de Maio de 1974 estava a voltar da praia, encontro o meu primo João Van Dunem na sala: “veste-te e vamos trabalhar!” E eu “trabalhar ao Domingo? Sou católico.” Mas lá me convenceu a ir. Já havia a TVA do padre Costa Pereira e do jornalista Paulo Cardoso. A nova televisão RPA era no prédio ao lado da Sonangol, a primeira televisão depois do 25 de Abril.
E como era fazer televisão nessa altura?
Estava no estúdio, na redacção, pegava nas notícias, ia para a sala de montagem ver as reportagens, depois havia os view news que vinham da Inglaterra (aqueles pequenos filmes que ilustravam o que se passava no mundo). O suporte visual eram cartões, vídeos 2 polegadas, e os view news. Trabalhava na redacção e punha o telejornal no ar. Não era fácil trabalhar num país numa altura de guerra, com comunicados muitos e variados. Com essa guerra feroz é óbvio que o MPLA fazia propaganda do seu lado e a Unita do dele, na rádio do Galo.
Depois da independência como era a estrutura televisiva?
Não tivemos nada da televisão dos portugueses. Criou-se uma nova rapidamente. Numa primeira fase, o administrador era o engenheiro João Urbano. O Luandino Vieira sai da cadeia, veio para a administração da, na altura, Radiotelevisão Popular de Angola (RPA). Curiosamente dá-se a independência e a República também é RPA, como não podia haver duas siglas coincidentes, passou para TPA (Televisão Popular de Angola) e só depois do multipartidarismo é que passa a ser Televisão Pública de Angola. Portanto, a TPA acompanha a história política do país, vai mudando conforme os ventos.
E nessa altura era estreita a relação entre televisão e cinema: filmava-se em película, havia figuras como António Ole, Luandino, Ruy Duarte de Carvalho a fazer documentários para a televisão. Não foi tendo um pezinho no cinema?
Sim, na escola de documentário. Ia fazendo som com o Antoine Bonfanti, workshops com o Bruno Muel que era director de fotografia, que formou aquela gente toda que fazia som e imagem. Por exemplo o Orlando Martins, Gita, etc. Passou pela televisão muita gente do cinema a dar-nos formação. De Portugal iam pessoas afectas ao partido Comunista, da França a mesma coisa, da UNICITÉ, tipos que trabalhavam na Nouvelle Vague, vinha gente de Cuba, era o forte dos nossos formadores. Depois tínhamos uma grande vantagem: era uma televisão muito jovem, com média etária de 22 anos, pessoas ávidas de fazer coisas e acreditando muito na revolução, portanto havia ali uma energia muito boa.
Também viveu nessa altura os conflitos do “fraccionismo” e outros conflitos, não foi?
Vivi isso tudo.
A TPA produziu um filme sobre o 27 de Maio, O Golpe.
Quem acompanhou esse processo foi o António Ole. Eu punha todos os dias no ar notícias sobre essa tentativa de golpe.
Filmaram o Agostinho Neto a dizer a célebre frase de que não havia perdão para os fraccionistas?
Não, isso foi feito no Futungo. Não foi na televisão.
Mas foi transmitido várias vezes na TPA.
Era importante para o MPLA-Neto que a mensagem passasse forte. A violência brutal que se seguiu que hoje não se percebe, sendo todos do mesmo partido. As prisões servem para isso, não era preciso o que aconteceu, foi longe demais.
E em 1980 decide ir embora porquê?
A direcção da televisão mudou: o Luandino foi para o Laboratório Nacional de Cinema, o Orlando Rodrigues, que era director de programas, foi fazer advocacia. E veio outro director mandado pelo partido, Eugénio Rómulo, com quem entrei em conflito. Tinha uma relação boa com o Luandino e o Orlando, eles achavam que era miúdo e irreverente mas davam-me espaço para ser quem eu era e para, dentro dos condicionalismos do sistema, fazer o que quisesse.
Na Europa
Foi para Portugal com alguma segurança?
Caí de pára-quedas, mas tinha alguma família. Depois ainda fui a Itália, onde tinha estado em 1977, adorei Roma e queria lá viver. Mas chego nos anos 80 e, com as Brigadas Vermelhas, Luta Contínua, muita anarquia, era complicado. Não podendo ficar em Roma, voltei para Portugal, depois encontro o Antoine Bofanti que tinha vindo dar umas aulas ao Conservatório em Lisboa e é ele que me desafia a ir para França estudar cinema. Tinha 23 anos e fiquei lá 9 anos. Estudei na Neciphone que era uma casa de formação profissional onde trabalhavam os grandes profissionais do som. Ali aprendi a fazer som de base, repicagem, sons ópticos. Estava com o Gita, de quem já era amigo desde os tempos de vizinhança na Vila Alice, em Luanda. Depois morei na Bélgica até regressar a Portugal.
E como passa do som para a realização?
Ao fim de 10 anos a fazer som, pensei que já estava cansado de trabalhar no filme dos outros: “também tenho ideias por isso vou contar a minha história”. O meu primeiro filme foi Mopiopio, saiu em 1991 mas foi feito em 1987.
Então vai filmar a Luanda em 1987?
O Mopiopio foi uma montagem financeira alucinante, falei com um produtor belga que nunca tinha ouvido falar de Angola, trabalhei num guião com o Guy Lefèvre, e em 6 meses tinha o dinheiro para fazer o filme. O que é hoje a Arte, naquele tempo chamava-se La Sept, RTBF, Comissao do Filme Francofone em Bruxelas, CNC em França, vários apoios bons para um primeiro documentário.
Todas as suas histórias têm a ver com Angola.
Sempre. A primeira que estou a fazer fora de Angola é este próximo filme, Aleluia, e até por razões humanas. Passa-se em Cabo Verde e no mar mas pode ser em qualquer lado. Essa situação de terem de ir para mais longe porque há barcos que vêm pescar perto (de arrastão e sucção) também acontece na Europa, mas aqui estão mais protegidos.
Como vê a situação da democracia no país?
Depois de 2002, com o fim da guerra civil e a morte de Jonas Savimbi, foram criados os mecanismos para o desenvolvimento do pluralismo partidário. Com efeito, em Angola existe uma Assembleia da República, onde estão todos os deputados eleitos, os partidos na oposição, um tribunal de contas, um tribunal constitucional, instrumentos fundamentais para o funcionamento da democracia. Do meu ponto de vista, sendo a democracia o mas frágil dos sistemas políticos, é sem dúvida o melhor, quer em monarquia, quer na república. Se porventura a democracia em Angola não funciona é culpa dos partidos.
Artigo originalmente publicado em Rede Angola a 01/09/2014