Entrevista a Kiluanji Kia Henda sobre Plantação, projeto para o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas
“O fator económico é o principal impulsionador dessa tragédia. Espelha-se até aos dias de hoje nas sociedades ocidentais, porque a acumulação de riqueza, que permite o nascimento do mundo moderno, foi feita nos ombros de mulheres e homens escravizados.” Plantação, do artista angolano Kiluanji Kia Henda, foi a proposta eleita em 2020 no processo de votação ao Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. 400 canas-de-açúcar de alumínio (alusão aos 4 séculos de escravatura) e um banco circular como lugar de encontro no meio de uma plantação queimada, de luto, será este o Memorial a inaugurar no Campo das Cebolas em Lisboa. Um dos artistas africanos mais internacionais refere o sentido evocativo e meditativo do memorial, questiona a relação de Portugal com o seu passado e explica as motivações e ideias que na conceção da sua proposta em torno do regime de plantação, e suas implicações. Um memorial que convoca a dialética entre o pesadelo, a desumanização de africanos e indígenas para a prosperidade da Europa.
Que lugares escolheria memorializar com relação à colonialidade ou à presença africana na cidade de Lisboa?
Algures entre a Ponte Vasco da Gama e a Ponte 25 de Abril. É importante o simbolismo que existe na criação das pontes, a conexão entre as duas margens. Na Ponte 25 de Abril, seria pelas vidas de homens e mulheres africanas que se perderam durante a guerra contra o jugo colonial, o que também foi extremamente importante para a queda da ditadura em Portugal. Já na Ponte Vasco da Gama, existe o registo de vários emigrantes de origem africana que perderam a vida durante a sua construção nos anos 90. A má condição de vida de muitos africanos que emigraram para Portugal, depois do conturbado processo de independência nos seus países, esteve na origem das motivações para aceitarem os trabalhos mais arriscados, quase nunca justamente recompensados. Talvez assim se conecte mais do que as margens de um rio e a ponte passe a ser um meio para unir pensamentos e histórias que estão à margem da nossa memória coletiva.
Concebeu o projeto a partir da história da cana-de-açúcar, que remete para o início do processo de escravatura e o lado económico. Porquê?
É muito complicado encontrar uma imagem que represente um período tão trágico e violento da nossa história. Para mim seria muito limitativo se o Memorial tivesse uma dimensão figurativa, a representação do corpo, embora estejamos a falar de pessoas, claro. Tendo em conta o espaço destinado ao Memorial, era importante conceber uma peça que fosse possível de estender por todo o perímetro cedido pela CML na Praça das Cebolas.
Na ideia de plantação está implícito um regime de opressão. Como surge a ideia de instalar uma “plantação” na cidade?
A plantação está no centro do tráfico de escravizados. Foram necessários braços para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar, principalmente, claro que havia outras atividades, como extração de minérios. Mas no início, a escravatura está relacionada com a produção de cana-de-açúcar. Vivia-se o ciclo do açúcar – era considerado o ouro branco –, negócio no qual não estavam envolvidos apenas portugueses, os holandeses são até muito conhecidos pela produção de açúcar. Uma vez que os indígenas na América do Sul eram “mão-de-obra” que não servia para esse propósito, em parte pela resistência e pela oposição dos Jesuítas quanto à utilização de mão-de-obra de índios, o trabalho recaiu muito sobre os africanos. Esta é uma das razões de intensificação do tráfico transatlântico para as Américas. É certo que há um denominador comum que é a viagem, o navio, cruzar esses mares, nesse processo de escravização. Mas se tivermos de fazer uma leitura sobre a escravatura, desde a ‘Casa Grande e Senzala’, em todos os mecanismos encontramos a plantação como fator principal da perpetuação deste sofrimento.
É curioso ter ido buscar o açúcar, um capricho europeu, à custa de mão-de-obra escrava. Consumir açúcar como requinte, por exemplo nos salões de Inglaterra, não era um bem de primeira necessidade.
O fator económico é o principal impulsionador dessa tragédia. Espelha-se até aos dias de hoje nas sociedades ocidentais, porque a acumulação de riqueza, que permite o nascimento do mundo moderno, foi feita nos ombros de mulheres e homens escravizados. Assim, eu quis que o Memorial refletisse isso, não só sobre o sofrimento, dor e o luto mas também como a presença das pessoas que contribuíram para um bem-estar do qual as sociedades ocidentais usufruem, até aos dias hoje. É um modo de legitimar essas minorias, a diáspora africana nos diversos locais onde vivem pelo mundo, como parte essencial da riqueza desses lugares.
Existe ainda a leitura de plantação em luto, não é?
É importante que uma obra pública (sobretudo um memorial) não mostre apenas uma face, mas que se abra a distintas leituras. Trata-se de uma plantação em luto, queimada, que traduz o lado lúgubre e funerário da plantação. E ainda faz homenagem à resistência dos escravizados pelo gesto de queimar a plantação e boicotar o regime de opressão. A plantação é o lugar onde o processo de desumanização ocorre.
Essa abertura e ambivalência surgia logo no título inicial Plantação, Prosperidade e Pesadelo…
Sim, prosperidade e pesadelo podem habitar dentro do mesmo espaço. Quis passar o sofrimento, humilhação, a violência com que as pessoas foram tratadas, todo o processo de desumanização. Por muitos séculos, e gerações, houve pessoas que nasceram em cativeiro, sem liberdade alguma. Não é apenas a questão do tráfico, da deslocação desses corpos do seu lugar de origem para a Europa ou para as Américas, mas fazer referência aos lugares onde muitas pessoas nasceram. Evoca a cultura de violência e de abuso perpetrada ao longo dos séculos, que está muito enraizada no regime da Plantação. É importante referir o pilar económico no qual as sociedades ocidentais assentam, ou seja, em cima desta história animalesca e desumanizante.
Como vê o Memorial a ser vivenciado e o processo de memorializar? Que relação o mesmo pode criar com o público?
Este projeto foi uma encomenda, ou seja, fui convidado a pensar nesse trabalho. Embora seja uma criação minha, não o encaro como uma obra autoral. É uma obra para a cidade, pensada sobre um coletivo, para um grupo de pessoas. Por isso há coisas que me ultrapassam. Tenho o poder de conceber uma peça que esteticamente enfoque certos sentimentos e também um lado de meditação, que é o que se espera de um memorial. Não pretende reforçar apenas a ideia de violência e indignação, importa a reflexão sobre a história. Não há uma ideia de perpetuar e incitar o ódio, mas um espaço onde possa haver uma redenção quanto a esse período histórico e crime para a humanidade. É o que espero que as pessoas possam sentir estando num espaço como este. Um lugar de contemplação, meditação e que possibilite o debate e outras expressões culturais.
Qual a pertinência do Memorial estar em Lisboa relacionando-o com o papel de Portugal na história da escravatura?
Lisboa é uma cidade fundamental para se refletir sobre estes temas. A história olha para os portugueses como mestres do comércio transatlântico de escravos — os primeiros a começar e os últimos a acabar. Sem qualquer ironia. Mais do que qualquer outro país europeu, Portugal é um lugar central, no que foi a escravatura. Sem esquecer a particularidade de que, no século XVII, 10 por cento da população em Lisboa era negra, o que é algo bem singular no contexto europeu, a presença tão forte de uma comunidade vinda de África. Por isso, julgo que foi bastante pertinente a Djass – Associação dos Afrodescendentes, terem tido esta iniciativa.
Como acha que Portugal tem lidado com a sua memória da escravatura e colonialismo até agora? Parece-lhe que existe uma amnésia premeditada ou vem surgindo vontade de reflectir sobre o passado?
Se, desde a visão portuguesa, falamos das “gloriosas descobertas” como um período crucial da formação da identidade, pretende-se manter essa identidade como imaculada. É preciso coragem para enfrentar, dentro desse processo identitário, de simbolismos e de heróis, aspectos que são extremamente questionáveis e repugnáveis. Se Portugal hoje persiste em olhar para o passado como os grandes dias de glória, como enfrentar o lado mais desumano nessa herança e pensar que também o inverso, trágico e nefasto, fazem parte da formação do país? Esta dificuldade em confrontar os capítulos mais trágicos da história é uma questão universal, também a sinto na história de Angola. Com a nossa falta de coragem e de disponibilidade para pensar os períodos de extrema violência, agarramo-nos àquilo que nos orgulha. Rejeitar o passado menos feliz, monstruoso parece que é mutilar o “ser português”, apagar parte da formação do próprio país. No entanto, a História, sem essa parte dos factos, é uma versão impregnada de omissões e de mentiras. E, assim, será impossível enterrarmos os preconceitos e ódios, que nada ajuda para alcançar a paz e a harmonia que se pretende na relação entre os diferentes povos.
Um modo de documentar e transmitir a memória é o conhecimento académico que se pode produzir sobre este período, os manuais escolares e a cultura mediática, ou mesmo a indústria do cinema, a arte…
Por mais que a minha obra tenha o ímpeto de intervenção social e política, tenho muitas dúvidas de que a arte possa salvar o mundo, sou consciente de que é preciso tomar medidas e decisões que podem ser muito mais efetivas. Os manuais, sim, são de extrema importância. Assim como a inclusão, ainda muito difícil, de minorias em espaços institucionais e de trabalho. Mas claro que acredito na arte, como um meio de diálogo, com poder de suscitar debates, no intuito de nos salvar da amnésia coletiva. Há muitas ações em concreto, nomeadamente leis de comércio mais justas entre Europa – África, que podem ser revistas.
Como uma espécie de reparação histórica?
Sim, quando falamos em indemnização, penso que nem tudo passa por pagar-se somas astronómicas de dinheiro. Por exemplo, só ter uma relação e leis mais justa de comércio entre os dois continentes, podia ser um grande passo para se dê início a essa reparação.
Em relação às políticas de memória nas cidades qual será o papel da arte pública enquanto intervenção?
A arte pública, o espaço onde vivemos, a estatuária que celebramos e que a cidade nos oferece, no fundo, acaba por influenciar os seus habitantes ao longo de gerações. Temos de pensar quem deve ser celebrado, porque razão deve ser celebrado e o que queremos deixar como legado, como valor que acreditamos para os vindouros. O espaço público torna-se um lugar de discurso, que fala por si próprio. É um lugar ao qual todos têm acesso, o que tem tanto de bom, como perigoso. É preciso repensar o que queremos nesse espaço, sem esquecer que estamos numa cidade multicultural, e que se quer socialmente inclusiva. O memorial também está muito ligado à representatividade.
Como vê a importância da existência deste Memorial?
É importante termos uma intervenção que reflita sobre a história da escravatura, que direta ou indiretamente está ligada a uma grande minoria que habita Lisboa, que certamente se sentirá parte da sua história representada naquele lugar. Uma história que não pode estar apenas guardada em livros ou em ações singelas, celebrações em datas especificas. É de extrema relevância esta representatividade no espaço público. O lugar onde vai ser implantado o memorial, numa zona nobre da cidade, espero que seja o início de uma vontade de mudança e de abertura das mentes, para criação de políticas urbanas mais inclusivas.
Artigo publicado originalmente no site ReMapping Memories, Lugares de Memória Pós-Coloniais, 2020