Elinga, um património afetivo
A vida agitada do edifício
O edifício do largo Matadi (ex-Tristão da Cunha) é, como sabem aqueles que o frequentam, o maior ponto cultural da cidade. Aquela informalidade e disponibilidade para o outro, sem que seja o dinheiro a comandar a natureza das relações, representando uma certa baixa de Luanda, de mistura socio-cultural, de experimentação e de modernidade, entre o local e o global, com angolanos e estrangeiros, é praticamente só ali que acontece. A convivência de dois tipos de arquitectura é um marco da história da cidade, os vestígios de outros tempos lado a lado com o ritmo acelerado de uma cidade frenética, também ali estão bem representados. Não nos faltam justificativas para a preservação e valorização do Elinga.
Construído por portugueses no século XIX, foi Colégio das Beiras nos anos 40, catalogado por despacho como “testemunho histórico do passado colonial” e monumento histórico, em 1981, vindo depois a ser desclassificado pelo Ministério da Cultura em Abril de 2012. O último período – desde que nasceu formalmente o Elinga Teatro, a quem foi cedida a gestão do espaço, até este desfecho enquanto projecto imobiliário Elipark, entre parque de estacionamento, escritórios e hotel – dá continuidade à vida agitada do edifício. Pelo meio, antes da especulação imobiliária vencer, decorreram quase dez anos de negociações e discussões sobre a requalificação desse conjunto arquitectónico. “Uma morte anunciada mas mal gerida”, como conta o actor Orlando Sérgio.
De vários lados vieram alertas e lamentos a esta perda, inclusive da imprensa internacional. “Este centro da cultura angolana, berço de artistas contestatários, vai desaparecer em breve, com as suas paredes cor-de-rosa reduzidas a entulho, esmagadas pelos bulldozers e conhecer, assim, o mesmo destino de tantas casas antigas do centro da capital angolana, entregue aos promotores imobiliários atraídos pelas fragrâncias do ouro negro do segundo produtor de petróleo da África subsariana. E, no entanto, o teatro tinha todas as condições para escapar a este destino funesto.” Escreve Christophe Châtelot no jornal Le Monde a 30 de Agosto do ano passado.
O caso da Casa das Beiras
Não é de hoje que o velho edifício colonial representa um lugar de debate aberto, frequentado por personalidades da vida cultural e política angolana. Antes de ser a base de figuras como António Ole, Mwamby Wassaki, e de tantos artistas que por lá começaram a desenvolver os seus projectos, albergou associações como a Brigada Jovem de Literatura à qual pertenciam alunos do Colégio das Beiras. Com uma estrutura de escola secundária (3º ao 5º ano) em formação profissional (sobretudo na área comercial, contabilidade, etc.), o Colégio fazia parte do modelo que viria a ser criado nos anos 60 com as Escolas Comerciais que se espalharam pelas principais cidades e vilas, algumas associando a componente industrial. Passaram por lá importantes figuras como Garcia Biris (embaixador em Moçambique), Hoji-ya-Henda (herói nacional e símbolo da juventude), Manuel das Neves (cónego e professor), Manuel Pedro Pacavira (nacionalista e político), Mário Pinto de Andrade (nacionalista e escritor), Nito Alves (nacionalista). A directora, Olívia de Oliveira Martins Conde, ficou na lembrança deste último pela persistência para não abandonar os estudos (pode ler-se em Nito Alves, Memória da Longa Resistência Popular). Depois da Independência, foi nacionalizado, transformando-se no Centro Cultural Universitário da Universidade Agostinho Neto (CCU).
Ex-alunos indignados
Em Fevereiro de 2009 uns quantos ex-alunos do CCU, alguns a residir no estrangeiro, ouvindo falar da possível demolição, decidiram devolver um pouco da história do edifício através de uma exposição que juntasse recordações de momentos e acontecimentos que marcavam o lugar. Iniciaram uma troca de correspondência cujo tom era de entusiasmo, pelo reencontro entre vidas dispersas, e de uma certa nostalgia. “Passam-se os anos e despistámo-nos, nós que convergimos, por uma razão ou outra para certos lugares e certos momentos, como é este caso da “Casa das Beiras”, escreveu Buca Boavida. Irene Guerra, Buca Boavida, Orlando Sérgio e Victor Fontes eram alguns dos mais dinâmicos escribas, num ping-pong de emails, aos quais tivemos acesso através do actor Orlando Sérgio, que atravessaram várias discussões sobre o processo da Casa das Beiras/Elinga.
Ao apelarem a recordações, foi surgindo a questão: “Acham que ainda se pode fazer alguma coisa?” A expectativa era a de ser criar um movimento. Acabara de acontecer a demolição do mercado do Kinaxixe e de repente o Elinga passava a ser um símbolo de resistência à voracidade com que se dissipava a antiga Luanda. Queriam fazer algo pela defesa da lei e do património. Desejavam pôr de pé um conjunto de acções no sentido de se viabilizar a manutenção do património classificado, mesmo que implicasse algumas cedências.
Mobilizava-os a existência de um Despacho do Secretário de Estado da Cultura de 1981, Boaventura Cardoso, tornado lei pelo Conselho de Ministros e publicado no Diário da República. O documento incluia o edifício número 6/12 e 8/14, sito no Largo Matadi numa lista de 42 imóveis considerados “verdadeiros testemunhos históricos do passado colonial e parte integrante do património cultural do Povo Angolano”, razão pela qual “se impõe a tomada de medidas com vista à conservação e preservação de tais monumentos históricos”. Três anos antes da desclassificação do próprio Ministério, o pequeno fórum de ideias, que começara enquanto levantamento recordações, ganhou outros contornos ao tomar conhecimento dos edifícios classificados envolvidos. E teve início, em certa medida, um movimento pela cidadania.
Havia um sem número de propostas. Falar com a Governadora Provincial de Luanda, na altura Francisca Espírito Santo, para preservar o conjunto de imóveis que constavam no decreto, que desejavam publicar no Jornal de Angola. Pensaram em colocar um cartaz publicitário gigante na esquina do Largo. Discutia-se a via legalista, recorrendo a instrumentos jurídicos no sentido de accionar uma Providência Cautelar para embargar a obra. Circulou um abaixo-assinado intitulado “Em defesa do que resta de Luanda” que defendia a preservação do património histórico e cultural e condenava a intenção de se demolir o Elinga. A carta foi endereçada ao Presidente da República, com conhecimento da governadora provincial, ministra da Cultura, Comissão da Cultura da Assembleia Nacional e representação da Unesco em Luanda. Nesse documento podia ler-se: “o que torna uma cidade singular é o seu património histórico e cultural, traduzido pelos hábitos das suas gentes, mas igualmente pelas pedras, construções, espaços e edifícios que foram sendo introduzidos ao longo dos séculos da sua génese”. O Artigo de Vladimir Prata no jornal O País fazia o ponto da situação.
As negociações duraram bastante tempo, tendo a Imogestin como promotora do investimento imobiliário – propriedade de um consórcio liderado pelo Banco BAI – iniciado contactos em 2004 com Mena Abrantes, o director do Elinga Teatro.
Na altura garantiam que, apesar de todas as mudanças futuras, aquele continuaria a ser um espaço dedicado a actividades culturais. Resta saber se isso se mantém, na dúvida comum sobre o que vai acontecer. Nestas negociações, ganhava igualmente peso o argumento do nível de degradação de algumas das estruturas existentes e os benefícios que um prédio moderno poderia trazer para aquela zona da cidade, com uma pequena área de comércio e escritórios, dois pisos para actividades culturais, e mais um piso para cinemas, restaurante no terraço do edifício, e fundamentalmente a sua utilização para parqueamento com 900 lugares. Mas a preservação da memória da cidade, através dos seus espaços mais característicos e edifícios mais representativos ficou esquecida. Nos emails trocados entre este grupo, Victor Fontes chamava a atenção: “Não podemos deixar de referir o facto de Luanda ser dos espaços urbanos mais antigos na África subsahariana, o que lhe dá uma importância particular, e das acções que têm vindo a ser desenvolvidas um pouco por todo o lado, e que têm destruído alguns edifícios insubstituíveis, e descaracterizado completamente certas áreas.”
A Associação Kalu, nomeadamente a Cristina, companheira de Paulo Lara, e o Victor Fontes, teve grande protagonismo na altura.
O grupo da Universidade Lusíada, sob coordenação da arquitecta Ângela Mingas, também fez campanha de sensibilização para valorizar o património, na urgente e necessária promulgação de leis e o estabelecimento de iniciativas que permitam preservar os edifícios antigos. E o concerto memorável de Paulo Flores em 2010 lembrou como aquele é um espaço de todos.
Porém, Orlando Sérgio lamenta “que algumas iniciativas não tiveram efeito” e lembra que muitas ficaram por explicar: “Porque não houve consulta pública? Porque desclassificaram o monumento?” Critica também a própria direcção do Elinga,cujo contrato que tinha com a Universidade “não lhe dava poderes para negociar o espaço, assim como nunca foi cumprida a contrapartida que comprometia o Elinga a entregar um quadro de pintura à reitoria por cada exposição.”
A indignação quanto à demolição é partilhada por todos mas vive-se agora a impotência de esperar o desenlace, deixar “este monstro bonito ir abaixo”, nas palavras de Maria João Ganga.
Um outro Elinga demorará muito tempo a reconstruir-se, não só material como afectivamente. E há símbolos que são mesmo insubstituíveis.
Publicado originalmente no Rede Angola 29/3/2014.