Narrativa não linear, pensamento tentacular - Metabolic Rifts II

Boaventura Sousa Santos apela ao combate à exclusão e a um pensamento pós-abissal, a investigadora espanhola Maria Iñigo Clavo problematiza processos curatoriais no Brasil e Vivian Ziherl discute a genealogia da articulação entre as categorias do “natural” e a produção de mais-valia. O encontro decorreu no Porto e a intervenção militar no pós-carnaval do Rio deu azo a conspirações geopolíticas. Donna Haraway, com a convivência inter-espécie ao fundo, conseguiu ainda espantar-nos pelo seu talento narrativo.

Metabolic Rifts II, foto de José Caldeira Metabolic Rifts II, foto de José Caldeira Implicado, aberto e dialógico

 Reconhecendo na cidade do Porto a oportunidade de fazer uma programação regular e entusiasmante entre pensamento crítico e arte - áreas de recíproca contaminação -, as curadoras Alexandra Balona e Sofia Lemos criaram a estrutura PROSPECTIONS for Art, Education and Knowledge Production [PROSPECÇÕES para Arte, Educação e Produção de Conhecimento]. Foi através desta que ganharam apoio do programa Criatório com o projeto METABOLIC RIFTS, uma série interdisciplinar onde investigadores e criadores mobilizam teoria e prática para uma discussão coletiva.

Num encontro que se deseja “implicado, aberto e dialógico”, os postulados são ambiciosos. Elenquemos alguns. O de “refletir sobre os efeitos da ação humana no ambiente global” e sobre o rastilho do Antropoceno. Ou o de “examinar narrativas e contendas sobre as origens e ficções do sujeito” (lê-se no site do programa). O título Metabolic Rifts é inspirado na noção de ruptura metabólica, usada sobretudo na crítica ambiental, exponenciando a leitura marxista de uma desequilibrada interação metabólica entre a humanidade e a restante natureza. Essa fractura seria consequente de um capitalismo voraz e “irreparável no processo interdependente do metabolismo social”. As organizadoras recuperaram o termo para o trazer à complexidade de questões históricas e práticas, ambientais e não só, dos nossos dias. Assim, cada assembleia problematiza “vestígios de narrativas modernas”: as bases fundadoras de topologias de conhecimentos e “emergências latentes”, incentivando à partilha de práticas e discursos transversais à curadoria, criação e discursos críticos.

Conforme o programa, a primeira assembleia, com Ana Vujanović, Ana Teixeira Pinto, Nikita Dhawan e Brenna Bhandar, deu-se em outubro, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, e prescrutou “assimetrias basilares ligadas ao direito de propriedade, direitos humanos, economia ambiental, bem como sobre processos de singularidade e do comum”. No segundo encontro, decorrido a 18 de fevereiro no Teatro Rivoli, os convidados Boaventura Sousa Santos, Maria Iñigo Clavo e Vivian Ziherl foram desafiados a interrogar “morfologias do conhecimento, sistemas de colonização epistémica e de governança capitalista, bem como as presentes condições de delimitação política e corporativa que condicionam práticas curatoriais contemporâneas.”

No seu conjunto, o programa (que se pode acompanhar no site do evento) está muito bem desenhado e completo, sendo plural nas vozes e complementar nas temáticas. Com a capacidade de não ser previsível na escolha dos oradores, possibilita ao público comum, e até ao especializado, a descoberta de novas propostas para pensar.

 

Curadoria da teoria

Alexandra Balona, foto de José Caldeira Alexandra Balona, foto de José Caldeira Sofia Lemos, foto de José Caldeira Sofia Lemos, foto de José Caldeira A reflexão teórica tem sido crescentemente convocada para programas públicos de instituições artísticas, e em grande medida no âmbito da curadoria. Se a ação polissémica da curadoria, por um lado, pode vir a reboque de agendas políticas, modismos ou de flutuações de mercado (manifestando por vezes uma certa superficialidade ao pretender discutir tudo e nada), por outro, potencia discursos e visualidades que agarram sentidos e urgências que escaparão à produção académica. Não deixando de ser refém de interesses e de instituições, inscreve-se, a pretexto da arte e exponenciando o seu alcance, numa forma de observar e de atuar no mundo. Assim, a esta assembleia foram caros projetos que “investigam uma noção de curadoria produtora e implicada na descolonização do conhecimento”, num determinado tempo e espaço. É sabido que, em quantidade e grau de influência, é inquestionável a hegemonia europeia e/ou ocidental na produção de discurso analítico e na História de Arte canónica, à qual se pode contrapor a produção de conhecimento contextual e posicional, no intuito de descentrar a reflexão crítica e suas apropriações.  

O objetivo de fundo desta sessão era o de “criar campos de tensão, deslocando estruturas e construções de poder que fundaram narrativas civilizacionais”, como se pode ler no texto de apresentação. Alguns pontos do trabalho foram: processos como despossessão nas economias pós-coloniais, a privatização do comum, a desregulação ambiental e corporativa, dissonante das respostas urgentes às alterações climáticas e problemas de sobrevivência que temos em mãos, assim como o agudizar de todo o tipo de desigualdades. Tenta-se clarear a linha que separa a “vida da não vida, enraizada em histórias de escravatura, colonialismo e opressão de género”, pois as relações de domínio e de exploração do mundo de hoje estabelecem linhas de continuidade com formas de segregação capitalista de outros tempos, nomeadamente as relacionadas com a política colonial. Partindo-se, assim, de uma constatação de que grande parte de uma humanidade excluída viveu e vive subordinada a determinadas lógicas de opressão cultural e económica, discute-se uma cidadania que se pretende global. Isto é, em direção a uma humanidade verdadeiramente universal.

Com referências e interesses particulares, conseguimos encontrar pontos de interseção entre as apresentações, tendo em conta o consenso de que o fim do colonialismo político não significou o fim do colonialismo de mentalidades e que incluir a complexidade e heterogeneidade do mundo e modos de o conhecer, excluídos pelas diversas configurações coloniais, faz parte de uma postura “descolonial”. Isso implicaria o exercício de “desaprender”, e o de desconstruir valores modernos e estéticos, agregados a certos discursos e produções ditos ocidentais, reposicionando histórias locais e modos de pensar.

 

11ª tese de Marx: entender o mundo, transformar o mundo

Boaventura Sousa Santos (BSS), Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e da Universidade de Wisconsin-Madison, começou por manifestar o seu entusiasmo com o trabalho de jovens curadores empenhados em mudar o cânone de arte, na sequência de experiências em Barcelona, Paris e, agora, no Porto. Lembrou a consolidação das ciências socias, simultânea ao agravar de problemas sociais e desafios com o capitalismo do século XX. BSS assinalou como os artistas, no início desse mesmo século, viviam mergulhados na atmosfera do seu tempo, no qual eram ensaiados modelos de transformação social e se projectavam sociedades futuras. Hoje, à falta desses modelos e de paradigmas de transformação social, e numa sociedade neoliberal “de individualistas e de empreendedores”, onde as próprias mudanças políticas (seja na África do Sul ou no Brasil) afetam mais as mercadorias do que os cidadãos, precisamos, segundo o Professor, de nova compreensão do mundo antes de o transformar. Neste tempo de monstros (“o velho mundo está morrendo, e o novo mundo luta para nascer: agora é o tempo dos monstros”, Gramsci dixit) - de exaustão política do oeste/norte global, da guerra, fascismo, racismo, patriarcado e heterosexismo -, interessa valorizar as alternativas e resistências do Sul Global.

Numa incursão às epistemologias do sul, conceito que defende desde 19951, explicou que estas se referem a processos que validam precisamente o conhecimento produzido pela resistência dos excluídos à discriminação sofrida em várias frentes (sendo que a dominação funciona em conjunto aliando capitalismo a colonialismo e machismo). As epistemologias em causa provêm assim de um sul símbolo de opressão e de resistência ao aniquilamento cultural, económico e político promovido pelo norte.

Boaventura Sousa Santos, foto de José Caldeira Boaventura Sousa Santos, foto de José Caldeira

Para BSS não existe “um mundo”, mas sim duas sociedades que mutuamente se ignoram: a metropolitana, dos direitos humanos, com uma “sociedade civil” e alguns princípios; e uma outra colonial, dos sub-humanos, muito marcada pelo povo negro (a expressão black lives matters resumiria toda esta posição subhumana e uma recusa à mesma). O pensamento moderno ocidental seria um pensamento abissal, atuando enquanto sistema de distinções visíveis e invisíveis, estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o “deste lado da linha”, correspondente a essa sociedade metropolitana, e o “do outro lado da linha”, colonial. A divisão é tal que quem está “no outro lado da linha” torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente, ou excluído, porque exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o “outro”. “A característica fundamental do pensamento abissal é esta impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha.”

A sociedade abissal não é determinada pelo lugar mas pelas exclusões implícitas, e BSS nomeia alguns exemplos: o casa de Guantânamo, ou a situação de um magrebino na Europa que, imaginemos, tenha um trabalho idêntico a um inglês, será sempre mais vulnerável a ser preso. Ou ainda os números obscenos de jovens negros assassinados na periferia do Rio de Janeiro. Ou ainda o facto das fronteiras estarem em mudança (por exemplo, a recente porta de entrada para os EUA que é a Costa Rica). Ou o movimento de encolher do mundo ocidental versus a expansão do mundo não-ocidental.

BSS aflorou ainda algumas das suas premissas, como a sociologia das ausências e o negacionismo desta realidade, a sociologia das emergências e a ecologia dos saberes. A inovação residirá em grande parte na “sociedade colonial”. Exemplo das lições sobre o futuro que os indígenas nos têm dado, como a defesa dos direitos da natureza e da Patcha Mama no Tribunal de Quito. Referindo a elevada taxa de agrotóxicos no Brasil e os interesses da empresa Monsanto, lembrou a relevância e atualidade das epistemologias e práticas indígenas, que sempre souberam que a terra tem de descansar para ser fértil, contrariamente ao extrativismo capitalista que, para seu proveito, usa a terra até à exaustão. Lembrou como esses saberes dos outros têm sido desprezados (“na nossa cultura, o que está mais perto da natureza é considerado inferior”, disse o Professor). Comentou as diferentes prioridades, concepções e perspetivas culturais (entre indivíduo e comunidade, nomeadamente culturas que priorizam os direitos, outras os deveres), como os atuais problemas de tradução cultural (mártires para uns - dever de matar -, terroristas para outros).

 

Debates que se cruzam

Muito do pensamento de Boaventura Sousa Santos comunica com debates contemporâneos tais como a fuga e o confim (Mezzadra), a biopolítica (Foucault) e a necropolítica e o devir-negro (Mbembe), a crítica à modernidade ocidental e o antropoceno (Latour, Descola), as teorias descoloniais (Mignolo). Todos assinam a preocupante desvalorização do princípio de igualdade e a fragmentação da cidadania, ou seja, uma cada vez mais evidente “elitização” da humanidade e do “direito à vida” pois, como afirmou BSS no Porto, “o universal é muito exclusivo”. Para Mbembe, autor com tantas aproximações, no recente Políticas da Inimizade (Antígona, 2017), as características do nosso tempo seriam o estreitamento do mundo e repovoamento da Terra pela mudança demográfica que opera sobretudo a Sul, o desenraizamento geográfico e cultural, forçado ou voluntário, desde o colonialismo e escravatura às migrações; a redefinição do humano no quadro de uma ecologia geral e de uma geografia mais alargada, esférica, irreversivelmente planetária; a introdução generalizada de ferramentas e de máquinas em todas as vertentes da vida social; a articulação entre a capacidade de alterar voluntariamente a espécie humana e o poder do capital. 

É um pouco neste quadro que as epistemologias do sul podem configurar uma operativa mudança de paradigma. Porém, não basta valorizar esses saberes. É preciso atuar a uma escala maior, a nível económico, social e ambiental, defendendo aquilo que nos é comum – a Terra – num mundo sem fronteiras e de pensamento nómada. Ainda, de acordo com Mbembe, “o pensamento que vem será, necessariamente, um pensamento de passagem, de travessia e de circulação. Será um pensamento da vida que flui; da vida que passa e que tentamos traduzir em acontecimento. (…) Para articular tal pensamento, é preciso reconhecer que a Europa, que tanto deu ao mundo e que tanto ganhou em contrapartida, e muitas vezes pela força e pela astúcia, já não é o seu centro de gravidade”. Se a Europa confundiu a sua história com a do resto do mundo, precisamos agora de reconhecer uma verdadeira epistemodiversidade, a língua terrestre “enraizada nos paradoxos do corpo, da carne, da pele e dos nervos”, um corpo novo de uma comunidade nova.

Metabolic Rifts II, foto de José Caldeira Metabolic Rifts II, foto de José Caldeira

 

O que pode a arte? 

A estas ideias gerais na defesa das epistemologias do sul, seguiu-se uma formulação interrogativa um tanto romântica: “pode a arte salvar?” BSS vê no artista uma figura capacitada para vislumbrar ambos os lados da sociedade abissal e, entre eles, os aspetos “de fronteira”. O Professor não coloca, contudo, muita expetativas na arte das instituições concebidas pela sociedade metropolitana (e os seus museus que selecionam por relevância e cujos acervos, não raro, constituem-se por espoliação), embora acredite que a arte poderá “exceder” ou superar as instituições. 

A arte tem sido abissal mas consegue ser pós-abissal, atuando nas lutas contra as exclusões. E para tal menciona o papel interessante dos museus da favela como o Museu da Maré ou a street art, pois, nestes exemplos, não se trata apenas de consumo, representam o o seu próprio mundo, não são certificados pela sociedade metropolitana mas pelas suas próprias comunidades. Lembrou também o papel do filme de Montecorvo, Batalha de Argel (1966), quando ninguém olhava para o Islão. Ou a força antagonista do grupo de Carnaval Tuiuti que este ano desfilou no Rio aludindo à escravatura de ontem e ao racismo de hoje, e do rap de Kendrik Lamar. Reconheceu também o processo de desconstruir o palimpsesto que são os museus e as recentes formas artísticas de trabalhar os arquivos. A “arte pode fazer algo que nós não fazemos – maximizar o medo e a esperança”, rematou, eloquente.

Na sessão de comentários e perguntas, BSS explicou melhor algumas referências às epistemologias indígenas, de como o capitalismo perdeu o medo com a queda do muro de Berlim e o regresso dos fascismos, espiritualidade e religião (imanente e emanente), as linhas abissais produzidas pela educação, despotismo, a força da solidariedade radical e do encontro, e o que é a democracia liberal. Assumindo-se ainda marxista, BSS confessa que, se reduzidas à universidade ou escritório, as epistemologias do sul parecerão mais epistemologias do norte. “Nós, os ativistas não podemos ser cínicos”, engajando-se com os movimentos sociais e conflitos acessos como a crise brasileira. A situação do Brasil foi, aliás, muito comentada pela necessidade de defender a democracia e a luta contra uma tão presente estrutura colonial e racista, na qual o governo militar que vai ganhando terreno será um sinal de alerta. Referiu-se que o racismo insidioso que se vive em Portugal também exige um combate diário de todos nós.

 

Opacidade e valor

Maria Iñigo Clavo, foto de José Caldeira Maria Iñigo Clavo, foto de José Caldeira  

Na proposta de dar a conhecer pontos de vista e investigações em processo, Maria Iñigo Clavo, curadora e professora da Universidade Aberta da Catalunha, de quem já publicámos o brilhante ensaio “Modernidades vs Epistemodiversidade”, levou ao Porto um conjunto de ideias para um possível livro. A sua apresentação, intitulada “A nossa metolodogia é o nosso agenciamento: notas sobre a descolonização do conhecimento através do curatorial”, tenta averiguar como tem sido o conhecimento lido pela grelha ocidental e como essa procura se articula com projetos culturais que “pretendem renarrar a história a partir de posicionamentos teóricos pós-coloniais”.

O seus casos de estudo foram algumas exposições no Brasil sobre a identidade indígena, num momento de sobrerepresentação destes grupos de população brasileira. Falou de Histórias MestiçasA mão do Povo Brasileiro, a 32ª Bienal de São Paulo e Dja Guata Porã.  

Trazendo à reflexão algumas questões suscitadas pela teoria descolonial e a tradição de museus europeus, com as suas coleções coloniais, um dos argumentos foi de que as exposições contemporâneas deveriam mostrar os próprios conflitos, complexos e irresolúveis, no que toca a questões de representação, cidadania e direito. Em rigor, será possível descolonizar pontos de vista e traduzir culturas? Ou será mais interessante o gesto que assume uma certa impossibilidade de tradução para a nossa cultura? Várias incompatibilidades vão surgindo como o ponto de partida sincrónico da história de arte e o diacrónico de não ocidental. Como mostrar esse contraponto epistemológico e representar com outros padrões (“O nosso método é a nossa agência”)? 

Clavo tem refletido sobre como pode a arte contribuir para a aprendizagem da diversidade epistemológica e de vivências no mundo sem outricizar tudo o que não seja o padrão dominante. Sugere que talvez se necessite abrandar o processo de padronizar, uma vez que todo o conhecimento ocidental tem sido uma forma de possuir, de manter uma fantasia de controlo. Como a própria autora escrevera no referido ensaio, a propósito da desestabilização de categorias e fronteiras disciplinares que o perspetivismo ameríndio (muito através do trabalho do antropólogo Viveiros de Castro) tem introduzido: “Do ponto de vista do perspectivismo amazónico e, contrariamente às nossas ciências, saber não é objetivar mas antes o oposto: consiste em incorporar, i.e., subjetivizando, porque implica tomar o ponto de vista da tal coisa que é necessário saber. Consequentemente, o objeto de estudo torna-se um sujeito de enunciação, o que implica conceder-lhe o estatuto de interlocutor e portanto agenciá-lo.” 


Entre o Leão o Oceano Azul 

 Vivian Ziherl, foto de José Caldeira Vivian Ziherl, foto de José Caldeira

Aprofundando o trabalho de perspetivação indiciado pelos dois oradores anteriores, a curadora, crítica e doutoranda em Estudos de Curadoria na Universidade Monash Vivian Ziherl apresentou uma genealogia da Lei Natural, ancorada nas declarações de facto dos grandes teóricos da soberania territorial moderna, Jean Bodin e Hugo Grotius. Essas declarações seriam, por sua vez, legitimadas (e legitimadoras) dos impérios mercantis holandês e português. Ziherl criou o Frontier Imaginaries, uma multi-plataforma de exposições e de investigação sediada em Amesterdão que explora a condição da fronteira na era da globalização. Na sua apresentação, intitulada “760 anos de Natural: Entre o Leão o Oceano Azul”, começou por estabelecer paralelos de conceitos apresentados por Boaventura, nomeadamente a própria fronteira como linha abissal. Partindo do ensaio “The Fourtfold Articulation,” a curadora propõe uma cristalografia da forma moderna de valor, a matriz que legisla o corpo social do homem (homo economicus) e os seus desperdícios, reavaliando a localização temporal e territorial da acumulação primitiva, e as tensões das categorias como natural / a fêmea / o racial / o a priori. Dissertando sobre estas relações, a sua intervenções foi marcadamente de releitura historiográfica em diálogo com a sua intervenção curatorial ,“Trade Markings”, a ter lugar em breve no Van Abbemuseum, em Eindhoven. 

Orientada pela jurista marxista Denise Ferreira da Silva (de quem se pode ler, no BUALA, o ensaio “1 (vida) ÷ 0 (negritude) = ∞ − ∞ ou ∞ / ∞: sobre a matéria além da equação de valor”) e pela antropóloga e cineasta Elizabeth Povinelli, o projeto de Ziherl, agora na sua terceira edição, propõe uma leitura da restruturação económica a partir da dívida. Apontando para a resistência provinda de movimentos sociais aborígenes na Austrália e do apartheid palestiniano, Ziherl enfatizou a transitividade das ferramentas retóricas entre contextos e colaboradores (artistas, designers, teóricos e arquitéctos) de Frontier Imaginaries, num dialogismo participativo entre os campos sociais e económicos neoliberais.

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O programa encerrou com o visionamento de Donna Haraway: Storytelling for Earthly Survival (2016) do belga Fabrizio Terranova que faz um curioso e fantástico retrato intelectual da autora do Cyborg Manifesto (1984). No encerramento, as organizadores abordaram a “tentacularidade do pensamento,” e a necessidade de criar ligações rizomáticas entre saberes, campos disciplinares e práticas artísticas. De acordo com as mesmas, METABOLIC RIFTS foi concebido como uma narrativa não linear e, concretamente, porosa ou tentacular. Na introdução do filme encerraram a assembleia com as seguintes palavras: “Tais formas narrativas apelam a uma forma de pensar-agir ‘tentacular,’ do latim tentaculum, significando “sentir,” e tentare, ou “testar,” proposta por Donna Haraway como metodologia para articular e expandir a contemporaneidade, tanto nas suas raízes, como nas suas rotas futuras. Um ciclo de pensamento que se apresente abrangente deve ser também descentralizado, apelando a uma atuação múltipla e multifacetada.”

 

 


  • 1. Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul Boaventura de Sousa Santos (1995), Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Par (…) Maria Paula Meneses, « Epistemologias do Sul », Revista Crítica de Ciências Sociais, 80 | 2008, 5-10.

por Marta Lança
Vou lá visitar | 18 Março 2018 | Boaventura Sousa Santos, María Iñigo Clavo, Metabolic Rifts, Vivian Ziherl