No rasto de instrumentos inovadores, Victor Gama

Victor Gama, fotografia de Marta Lança Victor Gama, fotografia de Marta Lança Os Kronos Quartet apresentam a peça Rio Cunene de Victor Gama no Grande Auditório do CCB, em Lisboa, em Novembro, depois de o terem feito no Carnegie Hall, em Nova Iorque. A sua pesquisa e construção de instrumentos prossegue em Angola, onde Victor Gama nasceu e cresceu, dividindo também o seu trabalho entre Portugal e Colômbia. Este compositor e performer, formado em Engenharia Electrónica, explica o seu interesse por inovar instrumentos musicais.

Como surgiu a sua colaboração com os KRONOS QUARTET?

Este grupo norte-americano é uma das minhas principais referências desde os anos 80. Trata-se de um quarteto de cordas muito experimentalista que toca música do século XX e XXI. São pioneiros em expandir o repertório para quarteto de cordas com peças onde se usam instrumentos não convencionais e electrónica e trabalham com compositores que criam música normalmente à margem do mainstream. Em 2005 fiz uma exposição da série Pangeia Instrumentos no The Hub, em Inglaterra, e convidei o director artístico e fundador David Harrington para vir à abertura e conhecer os meus instrumentos e a minha música. Ele acedeu ao meu convite e, embora não tenha podido comparecer, marcámos um encontro em Paris. Nesse encontro propus-lhe compor uma peça para os Kronos Quartet que incluiría alguns dos instrumentos que eu desenho e construo, algo que vem na linha do meu trabalho que consiste em incluír a concepção e construção dos instrumentos no processo de composição.

Lata feita por crianças do CuneneLata feita por crianças do Cunenebatuquebatuque

O fabrico dos instrumentos sempre esteve presente na sua obra.

Desde o projecto Pangeia Instrumentos que já tem mais de 15 anos, que exploro um novo processo de composição através da construção de instrumentos musicais, dispositivos e instalações sonoras onde existe uma intersecção entre o design, tecnologia, música e performance. Enquadro este projecto numa teorização a que chamo Modos Golianos. Esta vertente tem vindo a transformar-se no centro do meu trabalho de composição nos últimos dez anos. Antes disso, a minha música girava em torno de peças para guitarra de doze cordas com afinações bastante alternativas e instrumentos como o kissange, mas sempre fora dos parâmetros convencionais.

Explique melhor que teoria é essa.

A Teoria dos Modos Golianos relaciona-se com a cosmogonia da antiga civilização Kongo, no território do que era então uma parte de Angola, o reino do Kongo, e que exerceu uma grande influência na música Ocidental a partir dos finais do século 18. Há dois elementos-chave: o cosmograma Dikenga, uma espécie de logotipo da cultura Kongo que representa uma visão cíclica do universo e da vida, teve muita influência em todas as músicas originadas pela exportação da cultura angolana - é um círculo que representa a ciclicidade da vida e do universo. Este círculo tem outro círculo mais pequeno no seu perímetro que gira em torno do centro do primeiro círculo, uma representação fractal cíclica que se vai repetindo infinitamente. Uma certa repetição que é característica na música africana. O outro elemento-chave é o conceito de Mpungu, um objecto que contém uma série de significâncias e que é usado como mediador entre o mundo dos vivos e o mundo dos antepassados. Trata-se de uma espécie de altar Kongo, um objecto mágico religioso. Os Modos Golianos são uma abordagem a uma forma de escrita e composição em que o instrumento é um objecto que representa os conceitos, significâncias e narrativas que a obra a construír propõe. Consequentemente, o compositor, que também é um músico, inicia a escrita da peça pela concepção e construção dos objectos, os instrumentos, com que a peça será executada.

 Kronos Quartet interpretam Rio Cunene de Victor Gama, cortesia Carnegie Hall ©Richard Termine Kronos Quartet interpretam Rio Cunene de Victor Gama, cortesia Carnegie Hall ©Richard Termine

Como descreve a peça Rio Cunene?

Esta peça tem a ver com espaços de conflito, com a particularidade de ter instrumentos construídos por mim e por crianças de uma aldeia nas margens do rio Cunene, o Xangongo. Nos anos 90 iniciei o projecto Tsikaya, fizemos inúmeras incursões ao interior das províncias do Cunene, Namibe, Huíla e Cuando-Cubango onde encontrei crianças que construíam brinquedos e instrumentos musicais com restos de destroços militares encontrados nos campos de batalha. Neste processo de construir instrumentos, as crianças vão à essência da descoberta da música, explorando níveis que são difíceis de aceder por músicos que estudam em conservatórios ou que fazem música como um exercício artístico. Estas crianças estão a passar algo de essencial e ao reciclarem os únicos materiais que têm à sua disposição, destroços de uma guerra e conflito que lhes é alheio, transmitem-nos também uma metáfora importante.

carregador feito por crianças do Cunenecarregador feito por crianças do CuneneTraz então o conflito para a própria criação, transformar armas em música é uma metáfora de sublimação.

Trago o processo de reciclagem de violência através de instrumentos que as crianças de Xangongo construíram. Uma cápsula de artilharia transformada em batuque, um carregador de uma kalashnikov com milho dentro, uma lata de munições com três buracos de balas que se transformam em três arcos com cordas de nylon. Elas constroem os instrumentos a partir destas coisas que representaram uma grande violência nas suas vidas e convertem-nas em objectos de não-violência. É uma reviravolta da lógica de agressão e irracionalidade da guerra para algo que faz muito sentido: transformar qualquer coisa muito destrutiva em música, e sementes de tolerância, abundância e paz. (Isso é muito angolano.) A violência é uma escolha dos seres humanos, venham donde vierem. Rio Cunene é uma obra sobre o grande potencial de poder transformar o mais destrutivo no ser humano em algo belo e musical. Com a vantagem de que, para além de música estes instrumentos também transportam sementes.

As crianças improvisam e executam e o Victor inspira-se na musicalidade deles?

Fui buscar emprestado determinadas informações e elementos à musica deles que fazem com estes instrumentos simples. É uma música muito cíclica e repetitiva mas altamente inspiradora.

Porquê a magnitude do rio Cunene? Será a questão da fronteira e todas as trocas que daí advêm?

É um testemunho de um passado recente, da História, um elemento de renovação, depois do conflito e violência. O rio é uma presença pacificadora e inspiradora, não é a primeira vez que músicos e compositores escrevem sobre rios. Inspirei-me no rio para criar três movimentos. O primeiro descreve o entrançado do rio, quando chega à província de Cunene, com as grandes chanas que se enchem de água na época das chuvas. No segundo movimento compus para os instrumentos das crianças do Xangongo, é a vez delas. E no terceiro, Kids Play, os Kronos tocam os meus instrumentos criados e desenvolvidos exclusivamente para eles, bem como os instrumentos convencionais do quarteto de cordas, dois violinos, viola e violoncelo.

Toha de Victor GamaToha de Victor GamaGalcrux de Victor GamaGalcrux de Victor Gama

 

Que instrumentos são esses?

A Toha, é uma espécie de harpa circular com 42 cordas de afinação diatónica e uma coluna de suporte com cerca de metro e meio de altura, tem uma base em fibra de carbono e um ressoador a meio onde estão fixadas pontes por onde passam as cordas. É um desenho que se associa ao ninho de um pássaro tecelão do sul de Angola e é tocado a dois. O Galcrux é um instrumento com um sistema de discos de metal fixados em torno de dois suportes e, para tocá-lo, utilizo a mesma técnica usada no kissange.

Como compõe? E como constrói os instrumentos?

Encontro um ponto de partida ou construo uma narrativa, a partir da qual recolho elementos que me ajudam a criar as ideias básicas, linhas rítmicas ou sequências de notas com determinado instrumento. A improvisação também é uma maneira de ir encontrando material útil para iniciar o processo. Gravo actualmente em Cubase e escrevo com um programa de notação musical. Desenho os instrumentos recorrendo a software de modelação 3D e, na maior parte dos casos, mando fabricar os componentes. Mas a forma do instrumento só surge depois de se criar este jogo com os conceitos e significados que estão por detrás da obra ou daquilo que se pretende que venha a ser a composição. Um dos meus instrumentos, o Acrux, é inspirado na constelação do cruzeiro do sul que apenas se pode observar no hemisfério sul. Essa constelação possui quarto estrelas que se podem observar a olho nu porque o universo é transparente. Todos estes elementos contribuem para o design do instrumento cuja base tem uma forma hemisférica, um tampo acústico em vidro e uma luz por dentro que representa a luminosidade das estrelas, do universo. O sistema ressonante do Acrux são discos de aço temperado fixos em torno de quarto suportes verticais.

Esta peça tem estreia europeia em Lisboa, a 21 de Novembro no CCB. O que se vai passar nesta noite?

Os Kronos Quartet tocarão, numa primeira parte, peças do album Pieces for Africa. Na segunda parte estreiam Rio Cunene que é uma peça de cerca de 15 minutos. Antes deles vou apresentar Sol(t)o, um espectáculo multimedia a solo que tem a ver com um projecto que estou a desenvolver no Namibe, relacionado com o trabalho de investigação de um antropólogo angolano cujo desaparecimento nos anos 80 está relacionado com o programa de armamento e testes nucleares que o regime de apartheid da África do Sul desenvolvia.

Victor Gama em concerto tocando Toha ©Niklas ZimmerVictor Gama em concerto tocando Toha ©Niklas Zimmer

A variedade dos instrumentos que nos mostra com o seu projecto Tsikaya (o arquivo digital), como se reflecte na música popular angolana?

Têm influência embora algo marginal. Há instrumentos tradicionais que já quase ninguém conhece. Por isso, Tsikaya é um projecto urgente porque os instrumentos estão mesmo em risco de desaparecer. A cultura urbana e muito ocidentalizada de Luanda já se está a esquecer dessa grande herança e identidade cultural. Nunca vi um país africano com uma cultura em tão mau estado.

O arquivo já está disponível online?

Sim, é um projecto muito voltado para os músicos do interior de Angola mas que pretende apresentá-los como pessoas e artistas. Este projecto não é uma investigação etnográfica, não tem intenção de catalogar e colocar os músicos em determinadas gavetas, mas sim promover o seu trabalho como músicos.

A etnografia às vezes cristaliza as culturas como se fossem algo do passado quando as músicas estão sempre a transformar-se e há uma sua apropriação da parte de outros instrumentos, por exemplo electrónicos. Quer-se por vezes um purismo que não existe.

E o músico nem sempre quer o purismo. Mas claro que há interesse em preservar os instrumentos. Uma coisa que se pode fazer muito facilmente nas escolas primárias da comunas é promover aulas de música com músicos que tocam estes instrumentos e transmitir às gerações futuras esse conhecimento.

Como funciona o vosso trabalho no Tsikaya?

Trabalhamos sempre com coordenadores locais, damos formação, levamos equipamento, acompanhamos o primeiro trabalho de campo e a nova equipa fica no terreno articulando com administradores municipais e as autoridades tradicionais das comunas que escolhem os músicos que queiram participar. Através da nossa rede de contactos com Instituições e Fundações que apoiam projectos nesta área de desenvolvimento cultural, o meu papel passa a ser fazer a ligação internacional, tentar ganhar uma dimensão global e conseguir novos apoios para dar continuidade ao projecto noutras províncias.

Que formas de divulgação?

A Pangeiart participa em feiras de músicas do mundo como a Womex e está a promover a compilação Tsikaya – Músicos do Interior em revistas internacionais como a Roots, a Songlines a New Internationalist e os sites da Amazon e da iTunes Music Store onde pode ser adquirido em formato mp3. O site www.tsikaya.org é baseado em georeferência, usando o Google maps, o que permite saber onde o músico se encontra e consultar a informação sobre este em video clips, música e imagens.

Victor Gama, fotografia de Marta LançaVictor Gama, fotografia de Marta LançaVictor Gama

Angola (1960). Angolano, actualmente vive em Sintra e em Amesterdão. O seu trabalho de composição e construção de instrumentos musicais contemporâneos tem vindo a atrair encomendas por parte de alguns dos ensembles e instituições de prestígio mundial como a Kronos Performing Arts Association, o National Museums of Scotland, o Tenement Museum em Nova Iorque ou a Prince Claus Fonds da Holanda. A sua obra mais recente para quarteto de cordas e Pangeia Instrumentos – Rio Cunene - foi estreada pelo Kronos Quartet no Carnegie Hall em Nova Iorque em Março de 2010, onde também apresentou SOL(t)O.
Gama tem estado na origem de projectos como Berimbau-Ungu com Naná Vasconcelos e Kituxi, que acompanhou em 2004 numa itinerância pela África Austral, o Folk Songs Trio, com os nova-iorquinos William Parker e Guillermo E. Brown e a Makakata Exchange na África do Sul com Diso Platges e os Kalahary Surfers. Iniciou em 1997. Desenvolve actualmente o primeiro arquivo digital de músicos do interior de Angola, o projecto Tsikaya.
Gama trabalha sobre o fenómeno de metamorfose dos instrumentos musicais investigando a sua evolução desde períodos tão distantes como a pré-história até aos dias de hoje.
Este fenómeno sugere-lhe que a forma é um elemento dinâmico no processo de composição e cria a Teoria dos Modos Golianos, uma teorização em que a escrita musical inclui a concepção, design e construção dos instrumento com que a obra é executada, dando assim origem ao projecto Pangeia Instrumentos. Apesar de se inspirar na música e instrumentos tradicionais de Angola como o kissange, o ungu, a m’burumbumba, a tchisumba, a tsikaya e outros, o seu trabalho como compositor revela um potencial de transformação para além das estruturas da tradição. A paleta sonora que cria através dos seus Pangeia Instrumentos é construída a partir de elementos percussivos e harpejos de cordas que fecham um círculo entre a música de gamelão indonésio e os compositores contemporâneos como Francis Bebey, Steve Reich, Michael Nyman ou Erik Satie.

por Marta Lança
Cara a cara | 18 Outubro 2010 | composição, música angolana, Tsikaya, Victor Gama