Estratégias para acarrar: o projeto TERRA BATIDA
Acarrar: diz-se do gado que se congrega para passar a hora do calor, deitando-se junto e com as cabeças muito acercadas de modo a acumular dióxido de carbono, criando uma atmosfera desagradável para moscas e parasitas. Tal como o prazer da sesta do gado lanígero amodorrado, há algo desse “acarro coletivo” em “Terra Batida”, projeto que arranca em 2020. “Terra Batida” parte do intuito de reunir pessoas, práticas e saberes em disputa com formas de violência ecológica e políticas de abandono. Fazer rede mantendo autonomia, mapear conflitos sócio ambientais, friccionar saberes, linguagens, perspectivas e impasses, acompanhar contextos específicos e agregar conhecimento singular e local, foram alguns dos desejos que moveram residências de pesquisa e encontros entre intervenientes das áreas da dança, cinema, performance, artes visuais com cientistas, agrónomos, arqueólogos, cooperativas e ativistas nas regiões de Ourique, Castro Verde, Montemor-o-Novo, Aveiro, Ílhavo e Gafanha da Nazaré.
“Terra Batida” convoca resistência aos abusos extrativos e também pede cuidado: para especular e fabular, para construir visões e vidências sensoriais entre mundos exauridos e exaustos. Conectar lugares, disciplinas e preocupações permite pensar e operar em diferentes escalas, e assim emaranhar práticas de denúncia com agentes de resistência e de restauração que atuam em territórios particulares, nem sempre em diálogo, embora atravessados pelo ataque global do capitalismo extrativo e seus modelos hegemónicos de predação e de acumulação neoliberal. Afinal, todos estes problemas são matéria de conflitos sociais, raciais e interespécie, são malhas que exigem o vínculo local e a expansão de uma ação coletiva multifocal e multiescalar.
Ao longo de encontros de pesquisa no Baixo Alentejo, foi discutido o modelo político-económico de intervenção na paisagem e suas drásticas transformações territoriais, sobretudo a partir dos modos de produção trazidos pelos regadios do Alqueva, e as graves consequências para os solos e de razia à biodiversidade. Os temas de debate abrangeram as técnicas de produção superintensiva (olival, amendoal e estufas) e implicações físicas e laborais da agricultura industrial; posse e usufruto da terra; marcas humanas na paisagem ao longo dos tempos (história e arqueologia), ao longo do espaço (solos, montado, seca, transumância e criação de animais): a construção de comunidades e memória; a desertificação; a extração de trabalho migrante; a falta de água e de gente.
O grupo de residentes no Monte das Doceitas, em Ourique fez várias saídas de campo. O agrónomo João Madeira mostrou o seu projeto de criação de ovelha campaniça, em Mértola. O arqueólogo Miguel Rego, responsável em 2015 pela abertura do Núcleo dos Aivados/Aldeia Comunitária do Museu da Ruralidade, acompanhou a visita à Herdade dos Aivados em Castro Verde, uma das mais antigas experiências comunitárias de toda a região do Alentejo. As biólogas e investigadoras Inês Catry e Marta Acácio apresentaram o seu trabalho na Reserva da Biosfera de Castro Verde, de grande importância para muitas espécies de aves hoje ameaçadas. Foi debatida a “pseudo-estepe cerealífera”, um ecossistema agrícola moldado pela ocupação humana e que se caracteriza pela quase ausência de árvores, e onde a rotação do cultivo extensivo de cereais e pousio em terras de grandes dimensões, resultaram num contexto único para aves estepárias como a Abetarda, o Sisão, o Francelho, o Rolieiro, entre outras. No circuito arqueológico do Castro da Cola, Samuel Melro ampliou a leitura da paisagem, a partir das permanências e rupturas do povoamento humano de há 5 mil anos aos nossos dias, considerando as teorias de um Antropoceno lento, discutidas pelo antropólogo James C. Scott. No Monte das Doceitas, o artista Bruno Caracol partilhou o projecto Marte que olha para as transformações da paisagem a partir da terraformação de Marte, e ainda o projeto Quando a Matilha Cerca o Fogo, em torno dos fojos do lobo. Foi ainda visionado o filme Suzanne Daveau, de Luisa Homem, que circula entre os inúmeros espaços-mundo percorridos por esta geógrafa de origem francesa que tanto contribuiu para pensar o território português.
Em Montemor-o-Novo, numa residência no Espaço do Tempo, o programa contou com debates com a realizadora Sílvia das Fadas em torno do seu filme Luz, Clarão, Fulgor - Augúrios para um enquadramento não hierárquico e venturoso, e com uma apresentação do arquitecto João Prates Ruivo que investiga políticas do solo e a centralidade do solo como construção tecno-científica para a naturalização de certas apreensões políticas e económicas da terra. O grupo em residência foi conhecer alguns projetos locais como a cooperativa integral MINGA e a Herdade do Freixo do Meio que, desde 1990, elegeu a agroecologia como ética de gestão das suas terras.
Na região de Aveiro, Gafanha da Nazaré e Ílhavo, através de uma residência de duas semanas apoiada pelo projeto 23 Milhas, o ponto de partida da pesquisa foi guiado pela relação limítrofe entre habitação humana e as suas relações com o mar, a partir da erosão acelerada da linha costeira, do aumento vertiginoso do tráfego portuário, da subida do nível dos mares e do desaparecimento do ecossistema da ria.
A jurista Maria Inês Gameiro fez uma apresentação sobre Direito do Mar, um campo de imaginação política particularmente sugestivo. Maria Inês Gameiro considera que «o objeto de que se ocupa, a extensão oceânica, constitui um mistério imenso onde, apesar dos progressos da ciência, o desconhecimento é vasto. E, porém, a cada descoberta são revelados novos motivos de admiração: o papel do oceano na regulação do clima e a profunda interdependência ecológica entre os vários espaços marinhos, tornando-nos a todos responsáveis por todos. Mas a natureza específica do direito do mar resulta também da real ausência de fronteiras, de limites, que convoca um permanente diálogo interdisciplinar e uma abordagem jurídica que inclua as realidades ecológica, económica e política. O ‘novo’ direito do mar recebeu um impulso decisivo com a aprovação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982), chamada a ‘constituição dos oceanos’. Esta Convenção trouxe a extensão das soberanias nacionais a zonas marítimas mais alargadas, mas também a formulação do regime da Área, um espaço que ocupa cerca de 30 % da superfície total do planeta e que foi consagrado como património comum da humanidade. Hoje, esta ideia revolucionária nos anos 70, de um princípio que define um espaço comum, de todos, foi-se fragilizando perante a realidade. Há, ao mesmo tempo, um sentido de urgência e emergência que exigem, e devem exigir, muito mais do direito. O direito do mar é precisamente um campo onde a mudança se pode construir.»
Tendo estas ideias no horizonte, várias foram as navegações dessa período em residência. O trabalho do canal de mídia ambiental Pólen, com a presença de Inês Abreu e Rita Brás, que tem acompanhado em vídeo inúmeros conflitos ambientais em Portugal, movimentos sociais e comunidades envolvidas; o Plano Municipal de Adaptação às Alterações Climáticas da Câmara Municipal de Ílhavo, com João Telha do Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional e Urbano; a pesquisa Disputas pela Imaginação Oceânica de Margarida Mendes, envolvendo um debate sobre mineração no mar profundo e políticas sónicas. Tiveram ainda lugar encontros com a organização não-governamental ECOMARE que trabalha com a conservação de espécies marinhas; visitas ao projecto sobre biodiversidade, a Bioria, da Câmara Municipal de Estarreja; encontros com associações movidas pela recuperação florestal como a Bioliving, que incentiva a cidadania ambiental e a participação pública na defesa dos valores naturais; ou a rearticulação da ação cidadã com o movimento Aveiro em Transição; e ainda uma visita à profusa história da pesca do bacalhau e das migrações dos ílhavos, retratada pelo Museu Marítimo de Ílhavo.
Estas discussões foram atravessadas por artistas convidades que acompanharam o programa e propuseram igualmente práticas e leituras, para depois elegerem pontos de partida para pesquisas autónomas no contexto do “Terra Batida”. Assim, após o conjunto de residências organizado entre junho e setembro de 2020, parte deste processo é reativado através de um grande encontro no Teatro Municipal São Luiz, durante o Festival Alkantara, entre os dias 14 e 27 de Novembro de 2020. O programa reúne augúrios e propostas de Ana Rita Teodoro, Joana Levi, Marta Lança, Maria Lúcia Cruz Correia, Rita Natálio, Sílvia das Fadas e Vera Mantero, assim como uma série de conversas com Samuel Melro, Teresa Castro, João Prates Ruivo, Maria Inês Gameiro, Margarida Mendes, Greve Climática Estudantil, entre outres. Assinala-se também, no evento, a parceria com o Jornal MAPA, potenciando parte dos objetivos deste jornal, no mapeamento e denúncia de conflitos ambientais, assim como de alternativas resistentes, em particular nas reflexões que a mineração e os modelos de produção agroindustrial ou a defesa dos rios tem suscitado.
Disponibiliza-se ainda um website “Terra Batida” desenhado por Nuno da Luz e programado por João Costa, com apoio editorial das curadoras Margarida Mendes e Marta Mestre, o qual pretende expandir o campo do pensamento ecológico interseccional, congregando ensaios, propostas artísticas e agendas de diferentes aliades.
Num futuro próximo, “Terra Batida” pode vir a materializar redes de ação para gerar posicionamentos públicos concertados, ações concretas de mitigação e de recusa ao modelo económico e social vigente, camuflado de agendas de “greenwashing” e descarbonização, sem real questionamento do festim energético e extrativo com responsabilidade nas galopantes alterações climáticas. Parte desse trabalho passa por mover propostas entre jornalismo, ciência, arte e diversas ações de resistência e de pensamento crítico, com o objetivo de compostar práticas artísticas, ferramentas investigativas e visualizações políticas alternativas em contextos territoriais distintos. Em 2021, prevê-se a organização de mais duas residências em Lisboa e na Serra d’Aire, a primeira com foco na cidade e nos trânsitos em diferentes escalas (centro/periferia, rural/urbano, nacional/internacional, passado/futuro, local/global) e a segunda com foco nos processos de desflorestação e reflorestação, e o risco extremo de incêndios que acomete a região todos os anos. Essas residências contam com a participação da coreógrafa Ana Pi e do artista visual Irineu Destourelles que, devido ao contexto pandémico, não puderam participar da edição deste “Terra Batida” em 2020.
Artigo publicado originalmente no jornal Mapa / Terra Batida.
Proposta rede “Terra Batida”_ Marta Lança e Rita Natálio
Propostas artísticas Ana Rita Teodoro, Joana Levi, Maria Lúcia Cruz Correia, Marta Lança, Rita Natálio, Sílvia das Fadas e Vera Mantero.
Artistas 2021_ Ana Pi e Irineu Destourelles
Diálogos _ Claraluz Keiser, Bruno Caracol, Inês Catry (com Marta Acácio), João Madeira, João Telha, João Prates Ruivo, Luísa Homem, Maria Inês Gameiro, Margarida Mendes, Miguel Rego, Samuel Melro, Teresa Castro, Inês Abreu e Rita Brás.
Encontros Aveiro em Transição, Bioria, Bioliving, Climáximo, CEDRU, ECOMARE/CPRAM, Comunidade dos Aivados, Cooperativa Integral Minga Montemor, Circuito Arqueológico de Castro Cola, ECOMARE/CPRAM, Greve Climática Estudantil, Herdade do Freixo do Meio, Fonte de Água Santa de São Miguel, Herdade Monte dos Gregórios, Passeio de Identificação de Plantas Comestíveis e Medicinais (Évora), Projeto conservação de aves estepárias (Campo Branco), projeto AIRSHIP/UA, Museu Marítimo de Ílhavo.
Proposta cénica e direção técnica_ Leticia Skrycky, Sara Vieira
Equipa editorial plataforma digital Marta Mestre, Margarida Mendes
Plataforma digital _ Nuno da Luz (Design), João Costa (Programação)
Parceria media_ jornal Mapa, BUALA, Polén
Documentação audiovisual: Luísa Homem
Produção executiva_ Associação Parasita
Direção de produção_ Claraluz Keiser
Co-produção_ Alkantara
Apoio_ Câmara Municipal de Ourique, Câmara Municipal de Lisboa, Câmara Municipal de Aveiro, Governo de Portugal – Ministério da Cultura/Direção-Geral das Artes
Residências_ Cads da Dança, Monte das Doceitas, Espaço do Tempo, Alkantara, Estúdios Victor Córdon, 23 Milhas, Not a Museum, CCB, PENHA SCO, MDance.
A Parasita é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal – Ministério da Cultura/Direção-Geral das Arte.