Entrevista a Margarida Cardoso, a partir de Yvone Kane
O último filme de Margarida Cardoso, Yvone Kane, traz a força de três mulheres num enredo de memórias e desencontros. Pensar o colonialismo em África, o fim dos impérios, a mutação das sociedades, a figura das revolucionárias, as dores incuráveis, a relação do indivíduo com a História faz parte do seu universo cinematográfico. Filmou em Angola alguns testemunhos da geração envolvida nos conflitos de 1977. A propósito de Yvone Kane, reflectimos sobre o peso dos acontecimentos esmagadores na história pessoal.
Como começou o seu interesse em filmar África?
Fiz duas curtas-metragens antes do meu primeiro documentário, Natal 71 com o qual comecei a pesquisar em relação ao meu pai, à guerra, tentando dar uma forma a um passado que não se conhece bem. Quando se teve uma infância num território geograficamente longe, é mais difícil, não há ninguém para contar e aquilo que era deixou de existir. As poucas relações tinham partido, restam as ruínas, os espaços transformados.
Um edifício tem as marcas do tempo inscritas.
Foi para Moçambique nos anos 1960 porque o seu pai era militar.
Era da Força Aérea, fez três comissões, em 1966-75. Deslocávamo-nos para as zonas onde havia as bases, alternando entre Lourenço Marques [hoje Maputo], Beira e Nampula.
Era normal as famílias acompanharem os militares para criar uma certa normalidade?
Era incentivado pelo regime. Levámos até a minha avó. A ideia era os militares ficarem, a logística até estava bem organizada, diziam que era uma campanha, não uma guerra.
Como foi crescer nesse contexto?
Fomos viver para uma casa no Macuti, na Beira, que ficava colada ao bairro indígena, onde se ouvia tambores. Nós nunca tínhamos tido empregados, e ali era normal tê-los. Então havia o Domingos, que a minha mãe tratava como filho e de quem ficou amiga. Nunca mais tivemos empregados, fazia-nos confusão.
Provoca-se relações de subalternidade que não se deseja?
Sim, e eram pessoas que eu sabia serem muito fortes, mas depois havia aquela barreira da comunicação.
Andou em escolas de brancos e assimilados?
Sempre em escolas públicas. Tinha gente de todo o tipo, mas dava-me mais com as pessoas do prédio, a escola era um bocado opressora, com professoras muito rigorosas, tareia, e a obrigação de cantar o hino.
Foi-se apercebendo de alguma resistência ao regime colonial?
O meu pai evoluiu muito politicamente, passou de uma fase cega para se aperceber logo do absurdo da situação. Havia focos de contestação. A coisa que mais me lembro, do ponto de vista infantil, era os livros interditos, como a Mafalda do Quino que arranjávamos secretamente numa livraria da 24 de julho, em Maputo. Tinha a sensação que se passava algo esquisito, isso de haver livros proibidos. Depois percebia-se muita tensão e problemas, pessoas muito perdidas, militares que bebiam muito, etc. Dos meus pais havia uma recusa à “situação”, incomodavam-se com as pessoas que queriam lá ficar, fazia-se sempre trocadilhos com Salazar e Caetano.
Eram os últimos anos do Império… como foi recebido o 25 de Abril?
Na Beira, houve a revolta dos civis contra os militares, a guerra começou a aproximar-se e cortaram a cabeça a um padre, perto do Macuti. Os civis, liderados por um grupo do Jorge Jardim, que “mandava” naquela cidade, impediam os militares de sair das messes, rodeavam os prédios e gritavam “oh Chico, vai pró mato, vai matar o preto”. Cercaram um hotel de pára-quedistas a cercar um hotel. Enfim, vivia-se uma onda muito tensa entre militares e civis, até houve granadas numa esplanada.
Quando aconteceu o 25 de Abril, já tínhamos a percepção de que aquilo estava prestes a explodir. Percebia-se que militarmente seria impossível resolver aquilo. Lembro que o meu pai estava a ler Portugal e o Futuro, do Spínola e comentou que ia haver uma revolução.
Identidades
E com o cinema recupera alguns cenários da sua vida.
Eram coisas muito fortes, relacionadas com a morte. Percebia a angústia da minha mãe: havia aviões abatidos, chegaram a deixar de fazer o abastecimento às bases. Afectava-me ver a minha mãe sempre em pânico.
O que é que a desterritorialização lhe trouxe de aprendizagem?
Uma certa melancolia de não pertencer a lado nenhum. Neste tipo de experiência, relacionada com uma culpa histórica, há um pudor em reclamar os territórios, parece que se está a usar algo. E depois, conhece-se muita gente mas não nos ligamos a ninguém, temos muitas imagens soltas, etc, então dá vontade de colar as peças numa narrativa mais sólida do que foi. Provoca um percurso muito solitário.
Em que se reflecte no seu trabalho?
Traz algo muito rico, abre as perspectivas, aguça a curiosidade. Faço muitas coisas sozinha, mas sem pena. Não me ligo muito a grupos, não tenho essa vocação. Como no filme a personagem Rita diz à mãe: “Sei que fez o que pode”. Tenho em conta que as pessoas fazem o melhor que podem.
O percurso da sua obra vai fazendo um sentido histórico: da Guerra colonial para o pós-independência. Um olhar retrospectivo sobre algo que acabou.
Tinha a sensação, nos outros filmes que fiz em África, que me estava sempre a referir ao passado. E pensava: estou no presente mas não estou a guardar nenhuma memória do presente. A mutação nesses países é delirante, nada a ver com os tempos da Europa. Vivo a angústia de estarem a desaparecer coisas que ainda podem ser testemunhos. Relaciono-me muito com os lugares, os arquivos, os testemunhos. Percebi que tentava guardar e reconstituir um tempo à beira do fim, tal como o tempo colonial, como se a relação com África estivesse num precipício, e o mais difícil de recuperar fosse o período pós revolucionário e o fim da relação ideológica. O movimento e a necessidade de captar e guardar essas figuras que estão a desaparecer tem a ver com aquilo que gosto.
Os anos pós-independência
Em Yvone Kane aparecem brancos que foram para África. Essas pessoas de origem europeia que se entusiasmaram com movimentos revolucionários ou que iam fazer uma missão faziam-no para colmatar uma culpa?
O conceito pós-colonizador aplica-se às pessoas que já lá estavam e às que foram depois para ajudar. Acabam por nunca se integrar naquelas sociedades, portam em si o estigma do pós-colonizador. “Tiraram-me do museu porque eu era muito branca”, diz uma personagem. Falas a língua e portas a cor do colonizador, mesmo que rejeites as ideologias, não há como escapar a esse estigma. Sara diz no filme “sinto-me rejeitada pelo poder, não pelas pessoas.”
Transporta-se sempre uma relação de poder, as pessoas não são elas próprias, têm de jogar com a percepção do outro.
É uma dificuldade intransponível, é para ser assim. Em “Yvone Kane” há pessoas que reconhecem muitas coisas políticas e históricas, para lá da história íntima, mas tentei que tendesse mais para o lado em que não é precisas identificar geograficamente.
Daí não ter localizado a acção em nenhum país.
Dá um lado muito etéreo, as personagens são muito misteriosas e fantasmagóricas, representam muitas coisas. É o que mais gosto mas faz também a fraqueza do filme.
Sim, há verosimilhança mas sente-se falta de realidade.
Há pessoas que se ligam só às questões identitárias do filme. “Yvone Kane existe? Mas o filme é sobre África, e não fala do racismo? o que é isto?”
Quando Rita (personagem de Beatriz Batarda) investiga sobre a misteriosa Yvone Kane é uma tentativa de se aproximar do universo da mãe?
Ao revelar-se o passado da Yvone, que coincide com o passado de vários países, Rita vai entrando no universo da mãe. Separam-se e não se encontram mais: a mãe morre, é enterrada com o kuduro e serras mecânicas como música de fundo, a piscina está metaforicamente a ser enterrada. No final, a sul-africana faz um sorriso contente. Há um lado bright naquilo tudo: vamos enterrar este passado, mas é assim a vida. Essas pessoas hoje não têm território de origem, falam línguas esquisitas. No filme, era importante que não se percebesse bem de onde vêm aquelas personagens. A morte da filha no início cria uma espécie de vazio. Não vamos saber quem matou Yvone Kane, era só um pretexto.
O Anjo da História
O que a atrai nesta relação do indivíduo com a História, nos momentos de aceleração da história?
Nessa altura as coisas são muito radicais, entra-se em ruptura com determinadas rotinas. São momentos intensos nos quais estão coisas a acontecer, a ser criadas, têm uma existência muito forte. Interessa-me porque consigo reconhecer. Estou à frente do tempo, a pensar o que é que daqui a uns anos será aquilo que estamos a viver agora e a tentar perceber se alguma coisa na História nos pode dar uma lição. Raramente encontro. Afinal não se aprende com a História, cometemos os mesmos erros. Interessa-me o que vai ser lido das nossas acções de hoje.
É o anjo da História benjaminiano a caminhar voltado para as ruínas do passado.
Vi muitas perspectivas de todo o lado de quem foi filmar a luta de libertação. Levei um grande banho de montagens de arquivo.
Nesses arquivos não há imagens iconográficas de guerrilheiras?
As figuras revolucionárias femininas, como por exemplo a Josina Machel, são representadas como santinhas, sem corpo. Para mim a Yvone Kane é, de certa forma, aquilo do que deveria ter sido representado da Josina Machel. Há um lado muito púdico dos revolucionários, como se as mulheres fossem perfeitas. Nem nos livros de história vamos saber quem verdadeiramente eram.
Yvone Kane e Sita Valles
Pode associar-se Yvone Kane a outras guerrilheiras, e talvez um pouco à história da Sita Valles. O que a inspirou?
O que me inspirou na história da Sita Valles foi a traição, um caldeirão que está ali a ferver do qual nem ela nem Yvone se aperceberam.
Devido a uma certa ingenuidade?
Uma força de espírito faz com que não se tenha apercebido de algo ali que as transcendia. São pessoas muito diferentes, mas tem-se associado.
Eram figuras eloquentes, muito carismáticas, bonitas, convictas, formadas.
Sim, ao se tirar todo o tipo de história íntima pessoal, transformamo-las em ícones, sem sexo. É isso que acontece com as heroínas. Por isso, na história, a Yvone tem uma relação de amor com uma pessoa mais nova, era uma maneira de dizer que ela existia, não tinha um comportamento insuspeito e para ficar mais tricky.
Construiu a figura da Yvone a partir de imagens de arquivo. Gosta de mostrar a facilidade de manipular a História e fabricar realidades?
Primeiro montei as imagens de arquivo e depois construí a Ivone, ou seja, ponho-a num contexto que já existe: a Yvone a falar num estádio a dizer “a luta continua”, ou a tomar posse num governo, a relação com o presidente.
Ficamos a pensar noutro rumo para aqueles governos: como seria se determinadas figuras que foram arredadas tivessem ganho poder.
Como está a preparação do filme Sob o olhar silencioso, a partir do 27 de Maio de 1977 angolano?
Revelou-se difícil de conciliar esse material, tudo aquilo tem de ser muito sustentado. Os testemunhos, de pessoas que viveram determinados acontecimentos com outras de quem eram quase irmãos, estão impregnados de emoções. Não é fácil construir uma narrativa fria sobre esse assunto. O que mais me dificulta são questões éticas, tentar perceber de onde conseguir olhar para tudo, onde me colocar, não posso saltar de eixo para eixo. Em relação aos testemunhos: são pessoas da mesma geração, uns optaram por ficar outras por voltar, todas passaram por coisas horríveis, foram presas, humilhadas, dissidentes políticos, mas conseguiam contar isto com uma certa neutralidade. Quando chegam a coisas íntimas como a família que vai embora, ou a casa que se desfaz, coisas que até ligamos aos colonos ou assim, desfaziam-se numa dor terrível. Algo muito básico que é o fim de tudo.
E os testemunhos de Angola?
São muito interessantes, gostei muito. É engraçado relacionar isso com um mapeamento de Luanda, os bairros. Em Angola, as questões raciais, ideológicas, de classes sociais faz com que haja muitos factores em jogo. Não posso ser simples e passar por cima disso tudo. Quero falar de determinada coisa mas quando se sobrepõe uma tensão que está para lá do que eu quero falar é difícil, vai sempre parecer que estou a fugir ou a descontextualizar. Senti que me encontrava numa situação estranha, bastava dizer o ano de 1977 para ter um peso tão grande que me fazia sentir como uma traidora, alguém que está à procura de algo que não devia. Isso atrapalha-me imenso pois não me sinto bem a trabalhar assim.
Sentiu resistência nas pessoas para falarem?
Muitas pessoas falaram abertamente, ouvimos histórias humanamente fortes, pessoas que estão muito bem apesar de terem passado muito mal.
Como se já tivessem arrumado aquilo?
Há coisas que nunca se consegue resolver mas pode-se arrumar.
Talvez porque em Angola se passou por situações muito conturbadas depois disso. Já em Portugal, as pessoas cristalizaram mais essas memórias.
Sim, em Portugal há um lado traumático, em Angola tens de conviver com os agressores e entretanto as pessoas mudaram e têm outras perspectivas.
Porque se interessou por Moçambique e por este momento da História angolana?
No caso de Moçambique foi a história pessoal, voltar lá e tentar perceber o que aconteceu. Em Angola, interessa-me saber que tipo de sociedade se criou, tão diferente de Moçambique nos modos e nos costumes. Em Moçambique, há um racismo muito mais evidente. Angola teve um colonialismo que tomou conta das pequenas coisas.
Porquê a Sita Valles?
Porque o seu fim é metafórico para muitas coisas que aconteceram, mas também pelo seu contexto: família que vem de Goa, estabiliza-se em Luanda, fazem parte de uma sociedade com muitos cambiantes, ela vem estudar para Lisboa. O passado da Sita revela uma riqueza sócio-cultural muito peculiar e interessante. E também a atracção pelo lado mais duro, as elegias, as revoluções, as injustiças, o absurdo dos fraccionistas. Angola interessou-me pela figura da Sita, senão acho que nunca teria ido por aí.
Foi uma armadilha da história?
De uma certa ingenuidade. Tenho a certeza que a Sita Valles cometeu imensos erros, e de repente, por determinadas circunstâncias, as coisas transformam-se no horror. Isso faz-me pensar nas nossas acções, como, de repente, tudo pode ser tão esmagador. Também me interessa perceber porque algumas pessoas saltam do comboio e outras não.
Entrevista publicada originalmente no jornal Rede Angola.