Recomeçar a partir da Ásia, pós-colonialismo na China
Bienais asiáticas – ameaça ao eurocentrismo?
Em tempos de crise, o investimento em arte é um negócio relativamente seguro. O crescente interesse no mundo artístico asiático, particularmente o chinês, e a proliferação de mega eventos artísticos na última década criaram um fenómeno a tal escala que nos deixa perplexos. Na alta estação de exposições de arte contemporânea (de Setembro a Novembro) as cidades exibem bienais, trienais, festivais de arte e exposições por toda a Ásia: da Austrália ao sul da Coreia, da China ao centro asiático.
Duas parcerias coordenam sete exposições: a Art Compass compreende as de Sydney, Gwangju, Singapura, Xangai e Yokohama e a colaboração entre três museus acolheram nas suas respectivas cidades as Bienais de Xangai, Taipei e a Trienal de Guangzhou (Cantão). Na China, os artistas, coleccionadores e críticos andam de um lado para o outro a dar corpo aos eventos. Trata-se de uma forma de desenvolvimento do turismo e das indústrias culturais que traz receitas excêntricas dada a dimensão do público e a actividade frenética, cada vez mais internacional e inclusiva, destas plataformas transcontinentais.
Será que a arte asiática consegue sobreviver a esta overdose de promoção e continuar a produzir expectativas dos visitantes e da comunidade artística internacional? A tentativa de alguns curadores é que, passada a fase de “crescimento descontrolado”, se alcance um desenvolvimento estável e a arte contemporânea entre num equilíbrio de crescimento racional e de auto-reflexão com o objectivo de mudar os critérios da sua produção e mercado, que são ainda muito presos aos ‘ocidentais’.
TRIENAL DE CANTÃO (6 SET a 16 NOV 2008)
A Trienal de Cantão (Guangzhou) teve como propostas o “recomeço a partir da Ásia” e a “despedida do pós-colonialismo”. As ambições dos três curadores - Gao Shiming, Sarat Maharaj e J. Chang Tsong-zung - não são a recusa da tradição intelectual do pós-colonialismo como teoria cultural de vanguarda, mas exprimir uma insatisfação contra a politização da arte e perceber os limites do discurso pós-colonial e multicultural como o dominante na arte. Ou seja, o potencial de ferramenta crítica do pós-colonialismo para desconstruir os preconceitos e as relações de poder, e pensar o presente à luz do passado colonial tornou-se, segundo estes curadores, uma língua franca da retórica curatorial e da globalização. Neste processo de institucionalização como conceito ideológico corre o risco de comprometer a emergência da criatividade artística e de novas teorias.
Com o apelo dos movimentos sociais e teorias multiculturais, a arte contemporânea concentrou-se em questões sócio-políticas e culturais (identidade, raça, género e classe), e os artistas enredam-se em discursos culturais que fazem, por vezes, que a própria arte redunde numa nova forma de estereótipo. “Pretendemos chegar a um recomeço para a arte e criatividade e reinventar modos para a criatividade” explica Chang Tsong-zung, um dos curadores, na revista Asia Today. “Pretendemos pensar pelo visual” propõe Sarat, outro curador, que é professor de teoria de arte no Goldsmiths College, em Londres.
Libertar os artistas do politicamente correcto e dos chavões do multiculturalismo, e pensar as fronteiras da arte internacional são propostas da terceira edição de uma Trienal que tem reputação de perspicácia quanto ao momento vivido pela arte contemporânea. A edição de 2003, que reinterpretava a década de noventa como a fase da arte experimental chinesa, na linha das relações entre local e global, ser e meio, apostou em artistas que são agora nomes incontornáveis da arte chinesa contemporânea - como Ai Weiwei, Wang Guangyi e Zhang Xiaogang. “Beyond” (edição de 2005), comissariada por Hou Hanru, Hans Ulrich Obrist e Guo Xiaoyan, focava a modernização da Ásia e a crescente liberdade criativa da região do Delta do Rio das Pérolas: Cantão, Hong Kong e Macau.
Decididos os conceitos pelos três curadores principais, os comissários de pesquisa, de várias proveniências, escolheram artistas em diferentes áreas do globo e propuseram os trabalhos que mais se enquadravam no projecto da Trienal. Este ano pudemos ver uma exposição internacional no Museu de Arte de Guangdong, com obras do Médio Oriente, África e América Latina, para além de imensos asiáticos. Houve fóruns para discutir os conceitos, mostras de vídeo do Sudeste Asiático e de cinema africano, estendidas à cidade de Pequim. E a Trienal terminou nos dias 15 e 16 de Novembro, em Cantão, com uma conferência internacional intitulada “Despedida do pós-colonialismo vs Uma sociedade pós-ocidental?” para examinar criticamente todo o processo e as bienais asiáticas desta temporada.
Repensar a prática curatorial
Num panfleto sobre a Trienal ficamos a saber quais os requisitos que o artista emergente não pode dispensar: paixão, um bom portfolio, um curador internacional, juventude, cigarros, vinho e cerveja, conhecimento do jogo, tolerância, sorte, charme, métodos, atitude, força, conceitos de marketing, tempo, amigos, dinheiro, roupa gira para a inauguração, pertencer a uma minoria, estar disponível para ter sexo com pessoas importantes, óculos escuros para evitar o contacto directo, ser político e crítico com os media, ser comercial e artístico com os galeristas e, já agora, fazer arte contemporânea chinesa. No jogo irónico de pensar as condições para se ser artista, questiona-se também o sentido de uma exposição internacional.
Numa Trienal cujo objectivo principal é pensar como a arte é concebida e enquadrada teoricamente, os fóruns em movimento, que aconteceram desde Novembro de 2007, foram encontros entre curadores, artistas e pensadores em várias zonas da China onde se discutiu: “os limites do multiculturalismo”, “a ansiedade da criatividade” ou “arte contemporânea: representação, activismo ou criação?”. Na proliferação de exposições internacionais, que estratégias usam os artistas para adequar-se ao mundo artístico em geral? Como estabelecer uma ética da diferença no quadro da diferença na produção cultural, nas nossas sociedades que prezam a diferença mas são incapazes de criar a diferença? Estaremos a viver uma tirania do ‘outro’? As exposições internacionais erguem uma “cacofonia de vozes” e “espaços de negociação de vários valores”, mas reproduzem discursos e negligenciam a criatividade artística independente e os mundos imaginários alternativos. São algumas das críticas-reflexões apontadas por estes organizadores de, afinal também eles, mais uma exposição internacional com a diferença de que propõem, além do que a Trienal é, pensar o que podia ser. Ou seja, existe uma tentativa de renovação do potencial da arte contemporânea, que passa por novos instrumentos analíticos e novos formatos. As exposições internacionais conduzem a uma certa ambiguidade. Nas considerações de outro curador, Gao Shiming, num brilhante texto do catálogo, são uma espécie de “zona livre para o capital transnacional e imunidade de juízos de valor vendidos por cosmopolitismo” tendo sido as responsáveis, por exemplo, pela criação de uma identidade política da arte chinesa.
Pós-colonialismo na China
Apesar da China não ter tido uma colonização técnica, mas sim utópica, e sendo o colonial para os chineses um discurso ocidental, o pós-colonialismo entrou na China há 15 anos quando se começava a criticar os gostos exóticos criados pelas políticas identitárias. São marco dessa reflexão os artigos de 1995 no jornal Twenty-First Century do sino-americano Zhao Yiheng e de Xu Ben onde se analisava a relação entre pós-colonialismo, pós-modernismo e o conservadorismo nacional. Mas ali seria interpretado inicialmente como resistência à perspectiva ocidental, num país que se debate com a influência do Ocidente, com a luta entre tradição e modernidade (com a revolução cultural às costas) e a reivindicação do indivíduo numa sociedade massificada. E o pós-colonialismo chega quando se começam a produzir “imagens alienadas” cheias de Macdonalds, jogos electrónicos e sexo numa arte pop que atestava as mudanças do país para a cultura capitalista de industrialização e mercado livre. Mas antes tinha havido a cultura rebelde e o pensamento de esquerda da juventude dos anos 60 e a filosofia racional dos anos 80. Hoje, dizem alguns críticos de arte, a China vive num sistema político pós-ideológico, e tenta ser uma referência no pensamento artístico na sua capacidade de absorção e recomeço.
Algumas propostas artísticas
Além dos artistas na área do vídeo que expunham no outro satélite da Trienal, “The Time Museum”, a exposição principal oferecia uma multiplicidade de abordagens e de artistas das mais diversas origens. Dos projectos em progresso destaque-se o trabalho de Carlos Garaicoa (Cuba) com uma instalação de livros de arquitectura intitulada “a minha biblioteca pessoal cresce conjuntamente com os meus princípios políticos”. Os quadros do alemão Christian Jankowski encomendados a pintores chineses que reproduzem o que é ensinado a grande escala nas academias - as habituais réplicas de arte ocidental, paisagens, retratos e teatro chinês. A justaposição da revolução cultural com a iconografia religiosa na instalação de Liu Dahong. Na categoria “Thinking Room” os trabalhos mais conceptuais de Maria Thereza Alves (Brazil/USA) ou de Chen Tong (China) & Jean Philippe Toussaint (França) sobre o livro A Melancolia de Zidane. O canal de televisão de Liu Wei (China) baseado em programas populares, onde se “aprende a mentir” remetendo para a espectacularização do discurso. O chinês Wu Shanzhuan que questiona, em “The Yellow Flight”, as fronteiras entre o internacional e o doméstico, a identidade da China e dos artistas chineses no mundo. E Zhu Yu que, nas suas “192 propostas artísticas para os membros da ONU”, apresenta uma visão irónica do estado do mundo. Dos “Free Radicals” destaca-se o trabalho do sul-africano Conrad Botes pela narrativa visual ligada a raça, género e violência. A instalação fotográfica de ficção científica da viagem ao sol da nave africana ‘Icarus 13’, encenada ironicamente pelo angolano Kiluanji Kia Henda. Ou o “Projecto Benin” do suíço Uriel Orlow, levantando claramente o pós-colonial ao remeter para as questões do artista como arqueólogo, da autenticidade na arte e das recuperações históricas dos objectos roubados pelo Ocidente.
As elaboradas explicações teóricas nem sempre estão representadas ou ilustradas nos trabalhos dos artistas, mas é precisamente essa libertação dos conceitos, descentralização e pluralidade (tendo havido várias pessoas a pensar e escolher as obras) que se pretendeu. A montagem não era rigorosa e as peças de arte nem sempre se apresentaram bem distribuídas pelo espaço. Mas o orçamento de 2,2 milhões de dólares, para reunir obras recentes de mais de 170 artistas de 40 países e produzir tantas actividades, não é muito se comparado às outras bienais que dispõem de 6 milhões (é o caso da Bienal de Xangai, de Sydney ou de Yokohama). Também por isso a Trienal socorreu-se de uma equipa de 90 voluntários, o que, numa China de grande devoção à pátria, não é difícil de conseguir-se.
A Trienal de Cantão transmitiu uma energia e potencial de pensamento raros neste tipo de eventos. O dinamismo asiático pode ter os motivos comerciais como determinantes (e não os têm todos os grandes eventos artísticos?), porém, neste caso de Cantão há uma lufada de ar fresco para, no mínimo, questionar a tentativa de organizar um caos criativo que é o trabalho do curador, que opera com conceitos nos quais muitas vezes os artistas não se revêem (nem certamente os visitantes que se fotografavam junto a todas as obras na exposição). Mostra também a particularidade de pensar a partir da Ásia, e os diferentes momentos e perspectivas de acordo com esse lugar de enunciação: no caso português o discurso pós-colonial não teve ainda a expressão suficiente ao ponto de cristalizar-se, é um debate que está no início e esperemos que ainda faça muita gente pensar a situação do Portugal contemporâneo, e na China, com a sua habitual aceleração, já se posicionam e questionam sobre o que virá para lá dele.
publicado originalmente na ArteCapital
2008-12-16