O teatro é uma arte do presente - entrevista a Rogério de Carvalho
O encenador Rogério de Carvalho nasceu na Gabela, Angola, em 1936, cresceu perto das fazendas de café do Kwanza-Sul e morreu em Portugal no ano de todas as crises, 2024. Tchekov, O’Neill, Molière, Gil Vicente, Fassbinder, Jean Genet, Breyten Breytenbach figuram entre os seus autores, e consegue transportar-nos para a intensidade do texto. Depois de um árduo trabalho com os actores, procura desbloquear as barreiras que obstruem um certo lugar do eu. Acredita que o teatro tem de ir ao encontro do espectador, nunca embalá-lo.
Como foi passar a infância numa pequena terra angolana?
Deitava-me às 20h se havia luar, senão às 18h já estava a dormir. Algumas pessoas moravam na vila, outras fora. Era uma vida sem acontecimentos. Fui para a escola primária aos 12 anos, não era fácil adquirir conhecimentos nem se atravessava aquelas fases da infância e da adolescência. O objectivo era aprender a ler e pronto.
Apercebia-se da injusta realidade social do colonialismo?
Mais tarde adquirimos mais consciência para analisar, mas vamos apreendendo as injustiças um tmepo antes. Sou filho de pai branco e mãe negra. Estava na vila e depois ia dormir a casa da minha mãe. Via crianças de outras origens, brancas, que tinham muito mais condições. Percebia-se onde estava o poder de compra. Via-se nas fazendas de café a deslocação de mão-de-obra e o desempenho de cada um nesses papéis. Mas havia grande convivência, o que fazia parecer tudo normal. Nascemos nesse mundo, as coisas funcionavam em termos de normalização. Ainda não tinham surgido os Movimentos de Libertação.
Desce para o Planalto Central, faz o curso comercial no Huambo e preparava-se para a universidade em Luanda.
Porque não existia universidade, o máximo era até o 7º ano, fiz o 5º ano da Escola Comercial.
Veio para Portugal aos 18 anos, formou-se em Economia, trabalhou como professor de liceu. Começou a estudar teatro em 1968.
No segundo ano do curso de economia, trabalhei num banco, como não gostei fui leccionar numa escola comercial. Ia fazendo o curso e a Escola de Teatro. Arranjei um grupo de alunos com quem trabalhava textos censurados. Por estarmos numa escola, conseguíamos trabalhar esse tipo de textos.
Descobriu no teatro universitário mais liberdade para trabalhar esse tipo de textos?
Sim, não havia tanto controlo nas escolas. Senti mais vigilância quando fui trabalhar com operários da Lisnave. Mesmo aí, sabíamos que estávamos a ser controlados mas só atacavam quando as coisas criavam um acontecimento. Havia tensão nas posições, alguns grupos esquerdistas não estavam formalmente visíveis. Era uma associação ligada ao PCP que dava auxílio à formação de operários que podiam tirar o liceu, uma espécie de disfarce.
Nunca tentou ser actor?
Naquele tempo a construção do espectáculo dependia de personagens: se eram brancas tinham de ser actores brancos. Nessa altura, fazia-se um teatro que não tinha importância política, pobre, de natureza realista e naturalista. E, no entanto, no palco é tudo fictício: estar a cozer batatas na cozinha ou num palco é totalmente diferente. Mas os espectadores entravam naquela ilusão do teatro de simulação. Hoje trabalhamos com outros elementos, não há essa preocupação de correspondência entre personagem e actor, aquilo que se diz é o que é, a acção está concentrada na fala.
E, por ser negro, era mais difícil ser actor?
Ainda fiz algumas interpretações. Mas nessa altura nem definira conscientemente a minha vocação. Como o ensino me dava mais tempo, tinha disponibilidade para trabalhar em teatro como encenador, nas universidades. A minha relação com o teatro modificou-se, entrei no mundo da formação, comecei a dar workshops e aulas na Escola Superior de Teatro, em Lisboa e no Porto. Criou-me capacidade de resposta quanto à representação.
Gosta de trabalhar com actores ainda em formação, não tecnicamente viciados?
Sim, embora me aperceba que é complicado trabalhar com pessoas sem preparação. O teatro exige técnica, quer vocal quer corporal e é duma precisão eficaz. Se não houver capacidade de resposta do actor torna-se complicado. Mas hoje monta-se espetáculos em dois meses, os actores saem das escolas, já quase não existe teatro amador.
E nas suas experiências em Angola, que tipo de teatro encontrou?
Ao grupo que se criou na I Trienal de Luanda (2006-7) era necessário dar elementos essenciais pois ninguém havia feito teatro antes. A formação dos actores precisa de continuidade. O teatro não é uma coisa espontânea e pontual, desenvolve-se ao longo da vida. É necessário o actor manter uma formação. Na Trienal convergiam duas visões da formação: de encenador e formador. Fiz formação e encenei lá os Negros, a partir de Jean Genet, e as Formigas, a partir de Boris Vian. Já tinha estado no Teatro Elinga uns anos antes a fazer formação com pessoas que tinham alguma experiência.
Encontrou maior expressividade ligada ao corpo? Que estilo de teatro faz?
A visão do teatro de cada encenador é muito importante. Os actores e encenadores são criadores, criam a sua própria linguagem, é um processo que se desenvolve ao longo de vários trabalhos. Tento fazer um teatro do nosso tempo, que reflecte a sociedade onde se está. O teatro vive no próprio momento, é o seu presente e lugar. Podemos contar coisas do passado mas é sempre no presente que as enunciamos. A peça só interessa ao público se o assunto for da comunidade, a qual deve identificar-se com a linguagem em questão.
O Rogério pega num texto de autor, retém uma certa atmosfera e torna-o contemporâneo. Como faz esse trabalho dramatúrgico? Como foi com os Negros?
Interesso-me por determinados autores. Na altura estava interessado em Genet. É uma peça que reflecte uma dialéctica que leva o actor e as personagens a uma interpretação onde estão os acontecimentos do nosso tempo, o que somos, o que é a pessoa humana. O teatro tem o seu próprio mundo. Infelizes os actores que pensam que estão a passar uma mensagem.
Ou que são representantes de algo.
Tudo o que se faz em teatro é fictício, e a ficção identifica-se com a artificialidade. O artificial hoje, na medida em que o teatro procura ter o seu mundo, já não cria aquela ilusão de uma mensagem homenageante, uma linguagem de favorecimento do poder ou do anti-poder.
Como é o seu método no trabalho com os actores?
A minha formação não vai no sentido da especialização. No início, cada pessoa tem obstáculos e trabalhamos para derrubá-los. Como cada um tem os seus, torna-se necessário trabalhar individualmente.
Interessa-lhe as várias formas de expressividade oral…
Não é para falar um português normativo, mas sim para transgredir a própria sintaxe e fonética, criando formas diferentes daquelas a que estávamos habituados.
Usurpa-se a língua para a transformar noutra coisa.
Sim, novas sonoridades, sotaques, variantes.
Nota-se que retrabalha bastante os textos dos autores.
Faço um trabalho prévio. Quando vou trabalhar com o actor já tenho a estrutura, os objectivos. E intervenho muito na relação do texto com o actor.
Abdica sempre de uma narrativa diacrónica…
A narrativa contínua de facto não me interessa. Prefiro-a antes esburacada, sem explicação. Entre duas frases não é obrigatória uma ponte, é até bom que haja um acontecimento não da fala para despertar no espectador a busca sobre o que parece faltar. O texto foi criado por alguém, nós trabalhamo-lo analiticamente, mas a escrita congela as ideias e as imagens… É preciso uma actividade descodificadora que permita fazer nascer outras imagens e situações. No teatro não se trata de ilustrar as palavras nem explicar o texto, trata-se de criar sonoridade. Esse é o desempenho do teatro em relação ao texto.
E o modo fragmentado de contar uma história aproxima-se do decorrer da vida…
Tem de haver temas fortes que te empurrem para o espectáculo. Uma bela história sequencial apenas nos embala e, enquanto espectadores, deixamos de ser activos. Em geral, hoje os textos estão a fugir do processo de narratividade. O teatro aproxima-se da poesia que fala sobre a própria poesia, ou do cinema. Já ninguém nos está a explicar algo. Este tipo de teatro exige um actor novo.
Houve algumas resistências a esse método n’As Confissões de um terrorista albino que encenou para o Teatro Griot?
Resistências há sempre. Um espectáculo tem de expor coisas novas. Quando estou a encenar é toda a minha vida que está em jogo: as leituras, o passado. O actor tem de ter uma força interior. Uns conseguem mais do que outros. Por vezes é difícil para os actores especialmente devido ao pendor naturalista. Uma coisa é certa: o actor de televisão é diferente do actor de teatro, é um desempenho diferente.
A distribuição de personagens também não é fixa.
Faço a adaptação em conformidade com o registo do actor que tem de se ultrapassar a si próprio. O teatro é muito abrangente, contem vários sectores da cultura. Cada novo espectáculo tem um novo problema e realidade.
Sente alguma falta de reconhecimento?
Não é o reconhecimento que nos leva para a frente. Nem sequer tenho uma companhia fixa.
Porquê?
Porque isso implica garantir o futuro das pessoas. No entanto, trabalho regularmente com alguns grupos: o Ensemble, o Teatro de Almada, as Boas Raparigas, o Teatro Griot.
Que caminho o teatro em Angola vai construindo?
Quando estive na Trienal, percebia as linhas de força. Pelo que me vai chegando, penso que as coisas estão a evoluir. Alguns grupos vão a festivais, etc. Se bem que os festivais funcionam no esquema de convidarem aqueles que os convidam. Em Angola há pólos de teatro, no Huambo, em Benguela, no Lobito começa a florescer. Estivemos dois meses no Namibe a fazer as Formigas. O teatro de Angola vai certamente caminhar para interesses de profissionalização, com companhias e estruturas. Em Angola há um potencial incrível em termos de criatividade, tem de haver salas, etc. Suponhamos que sou convidado para encenar. Isso implica uma meia profissionalização - disponibilidade das pessoas – pois os ensaios têm de ser contínuos.
Testemunho de alguns atores sobre Rogério de Carvalho:
Rogério de Carvalho tem-se dedicado à formação e encenação em Angola e em Portugal com atores de quem vai acompanhando o desempenho. Pedimos a alguns deles para falarem da sua experiência de trabalho com o encenador.
Daniel Martinho participou logo no Kahitu, de Uanhenga Xitu (Mendes de Carvalho) apresentado em Lisboa no IFICT em 1989, e cujos direitos passaram para o Dikota. Mais recentemente com o Teatro Griot fez o Faz escuro nos olhos (2012) que foi até Luanda (ao Teatro Elinga) tal como As verdadeiras confissões de um Terrorista Albino, de Breyten Breutenbach (2014). Define o Rogério como “homem-teatro, um verdadeiro imbondeiro de sabedoria no interpretar esta nobre arte de fazer de contar e de comunicar. Um grande mestre.”
Giovanni Lourenço também do grupo Teatro Griot, afirma que Rogério é um “encenador muito perspicaz na linguagem.” Fala da sua experiência enquanto ator: “Trabalha com as vozes dos atores com se ouvisse ópera: temos de encontrar a sonoridade das nossas vozes para ele começar a trabalhar. O instrumento que ele mais valoriza é a voz, o ator tem que saber falar, dizer, compreender e familiarizar-se com o texto.” O Rogério “é o teatro em pessoa, o universo dele é superior.”
Para Orlando Sérgio, que integrou o elenco d’Os Negros, de Jean Genet, no o Teatro Nacional de S. João, resume: “Rogério de Carvalho para mim quer dizer persistência, rigor e modernidade.”
O ator Raul Rosário que frequentou alguns cursos de formação em Luís Lopes de Cerqueira 1995, alguns cursos, entrou na peça O Armário e a Cama, texto de Mena Abrantes, refere a “maturidade, responsabilidade e audácia” do encenador.
Meirinho Mendes, que entrou em As Formigas, de Boris Vian (em 2009), com O Núcleo de Teatro de Luanda, e já tem viajado com Rogério para festivais de teatro, é muito direto na sua apreciação. Descreve-o como “bicho do teatro, um mestre na sua arte.” O espetáculo As Formigas foi desenvolvido numa formação no Namibe e apresentado na II Trienal de Luanda, com a atriz Dulce Baptista a falar em Luvale.
O ator e encenador Miguel Hurst define o teatro de Rogério de Carvalho como um “teatro limpo e sem espinhas.”
Entre as atividades que marcaram o arranque do projeto Cena Lusófona, em 1995, conta-se um vasto conjunto de ações de formação, realizadas nos cinco países africanos de língua portuguesa. A formação foi desde o início encarada como um “investimento fundamental” e “orientada no sentido não paternalista de aprofundar o conhecimento mútuo e encorajar a co-produção de projetos artísticos” . Em Agosto desse ano, em Luanda, coube a Rogério de Carvalho dirigir um estágio de formação de atores, organizado pelo Elinga Teatro e pela Associação Angolana de Teatro para a Infância e Juventude (ASSATIJ). Os 30 participantes eram oriundos de 12 grupos de teatro angolanos: para além dos organizadores, estiveram representados: Julú, Laai-Roi, Horizonte Nzinga Mbande, Etu-Lene, Clandestinos, Makotes, GET do MinCult, Serpente, Nova Cena e KK. O programa assentou em três módulos fundamentais: o trabalho do ator, o processo de dramaturgia e a apresentação pública dos resultados. Como matéria de trabalho foram utilizadas as obras de dois autores angolanos: “Des-encantados”, de José Mena Abrantes, e “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu (Mendes de Carvalho).
“Faz Escuro nos Olhos” recebeu em 2013 o Prémio Nacional Vid Arte – a arte contra a violência doméstica.
Em 2012 Rogério de Carvalho venceu o Grande Prémio da Crítica de Teatro, atribuído pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, pelo seu trabalho de encenação dos espetáculos “Devagar”, a partir de textos de Howard Barker, para a companhia As Boas Raparigas, e de “O Doente Imaginário”, de Molière, para o Ensemble - Sociedade de Atores.
Artigo originalmente publicado na revista Austral nº 109, 2015.