Introduzir novas estéticas e novas linguagens para a dança em Angola, entrevista a Ana Clara Guerra Marques

O que ficou de mais forte numa infância em Luanda?

[Lembro-me]… De brincar no quintal, ao ar livre; de ir à praia; dos tempos em que estudava na Escola 83 e de quando chovia ficávamos todos cheios de lama; das festas de aniversário à tarde onde, em vez de se dançar (muito menos ‘do kambuá’), corríamos e brincávamos até à exaustão. Mas também [me lembro] das aulas de piano e de ‘ballet’ e do calor que tinha dentro daqueles horríveis collants de mousse. E [lembro-me] de ter muitos amigos.

Como foram os anos logo após a Independência?

Os amigos foram-se quase todos embora, a vida modificou-se. Eu tinha 13 anos, uma idade de mudança. Mudei com o país (adaptei-me) e crescia com ele, a fazer (desde cedo) de tudo um pouco: ajudava a minha mãe nas suas lides intelectuais e literárias, passando à máquina poemas e poemas de literatura angolana com os quais ela fez as primeiras antologias de poesia angolana, logo em 1976. Regredi um ano na escola para fazer o ‘ano de recuperação’. Limpei o liceu e o passeio de minha casa nas ‘campanhas de limpeza’ e ‘sábados vermelhos’. Ia a todas as manifestações, comícios e desfiles militares. Fiz novos amigos. Regressei às aulas de dança, mas por pouco tempo pois logo em seguida já me tinham dado a responsabilidade de dirigir a Escola. Aos 17 anos fiz o meu recenseamento militar como todos os outros que faziam 18 nesse ano. Foram anos de esperança e de acreditar!

Ana Clara Guerra Marques Ana Clara Guerra Marques Como surge a ligação com a dança?

A minha mãe inscreveu-me, em 1969, na Academia de Bailado de Luanda. E eu gostava, embora nunca tivesse querido ser bailarina. As minhas amigas também andavam no ‘ballet’, então…. Também aprendi a tocar acordeão e piano, tendo a música feito sempre essa ponte entre as artes. Tive uma educação nesse sentido; sempre que viajávamos íamos a museus e a concertos, fazíamos visitas a monumentos; depois havia uma espécie de aulas de apreciação musical – ouvir e aprender a distinguir compassos, andamentos, instrumentos, autores, etc – dadas pela minha mãe em casa.

Nos primeiros tempos, como foi gerir a Escola?

Não foi fácil, se pensarmos que, por um lado, quase metade dos alunos tinham sido meus colegas e, por outro, que eu apenas tinha uma pequena experiência como aluna, mas nenhuma preparação pedagógica. Felizmente estava cá uma equipa de professores cubanos para os “Cursos de Instrutores”. Os professores de dança tomaram conta de mim, tendo-me, num ano, preparado (de forma intensiva) para a docência. Dirigir a escola era um “dever revolucionário” ao qual não me podia recusar. Mas logo começaram as adversidades e incompreensões relativamente à importância e à presença de uma escola de dança académica num país africano e aí se iniciou toda uma luta que se mantém até aos dias de hoje, com pequenos avanços. Foi gratificante, por um lado, mas muito cruel, por outro.

Que tipo de apoio familiar existiu nas diferentes fases?

A minha família sempre me apoiou (e apoia), inclusivamente quando eu, no 3º ano do curso de Economia, decidi abandonar a universidade. Mas tenho um legado familiar que contribui sempre para que me sentisse confortável nas minhas opções artísticas, particularmente a minha mãe (ligada à Literatura e com estudos aprofundados de piano) e os meus tios, seus irmãos, um escultor e o outro doutorado em História das Artes; do lado do meu pai, embora engenheiros, eram igualmente pessoas cultas e sensíveis a estas áreas.

Quando a minha filha nasceu, era a família que me apoiava ficando com ela quando eu tinha aulas, ensaios ou espectáculos. Agora que já é grande, ela vem de onde estiver para assistir às estreias das minhas peças ou da CDC Angola. Se não fossem eles, há muito tinha desistido.

Como descreveria a sua personalidade?

Sou uma pessoa muito exigente, algo dura e intransigente quando sei que tenho razão. Sou honesta, resistente e apaixonada (quase fanática) por aquilo que gosto.

Como o meu nome indica, sou transparente e detesto as hipocrisias que estão na moda. Digo o que tenho a dizer e assumo a frontalidade de uma forma pedagógica. Para mim não há derrotas; sou sempre eu a decidir que não existem mais hipóteses de avançar. Mas atenção, pois também se pode encontrar uma frágil e delicada ‘princesa’ dentro desta armadura de guerreira.

O que houve de mais interessante na experiência de viver e estudar fora?

Nunca me adaptei completamente ao lugar onde estudei, embora fosse a terra dos meus antepassados. A verdade é que, culturalmente, pertenço a um território híbrido. Tinha saudades e todos os meus trabalhos académicos foram sobre temas ligados a Angola.

No entanto, foi ‘fora’ que eu vi quão grande é ser artista e o enorme e respeitado que é o mundo das artes. Foi enquanto estudei que conheci artistas e académicos incrivelmente cultos e conhecedores com a simplicidade que ainda hoje guardo como exemplo. Foi ‘fora’ que ‘engoli’ um mundo que tarda no meu país: o lado intelectual e digno das artes, o universo dos artistas simples e conscientes do seu papel, o rigor do ensino das artes e da ética profissional; a diferença entre a sobriedade e o mercenarismo ávido de dinheiro abundante e fácil.

O público angolano tem aprendido a acompanhar e a alargar a sua percepção da dança…

Acredito que este olhar, apesar de insípido no que respeita ao gosto e à percepção, é produto de um trabalho persistente e solitário que desenvolvi a partir da Escola de Dança (com os seus espectáculos de fim de ano lectivo, durante muitos anos), o qual se prolongou e consolidou com a Companhia de Dança Contemporânea de Angola, que fundei com esse propósito: introduzir novas estéticas e novas linguagens para a dança em Angola.

Sente-se assim pioneira nas novas linguagens da dança no contexto do país?

A CDC Angola foi e, infelizmente, continua a ser a única companhia de dança em Angola. Com ela introduziu-se o profissionalismo (bailarinos com formação e assalariados), o regime de temporadas, o espectáculo de dança com a criação e apresentação de peças de autor, a dança contemporânea, a utilização de espaços não convencionais enquanto lugares cénicos, a dança inclusiva (pela integração de bailarinos portadores de deficiência), a recuperação de elementos culturais tradicionais para a criação de novas propostas artísticas, etc.

Mas ainda há tanto para fazer!…. E até acho que, com alguns espectáculos de dança que tenho visto por aí, se está a deseducar as pessoas, ou seja, estamos a regredir em termos de padrões do que deve ser um espectáculo (seja de dança ou de outra manifestação artística qualquer).

Como se processa a pesquisa das culturas tradicionais na combinação com a sociedade angolana moderna?

A minha pesquisa sempre foi dirigida em duas frentes: por um lado, a pesquisa mais suportada pela etnografia e pela antropologia (em que me dediquei a aprender os valores e elementos culturais das formações etno-linguísticas tradicionais), e aquela que me serve de base para algumas das minhas criações que consiste em conhecer profundamente a sociedade moderna angolana, as culturas urbanas, os modos de vida dos cidadãos do centro e da periferia da capital e os contextos políticos, culturais e sociais em que vivemos.

Assim, não é difícil perceber-se que se trata de experiências cognitivas que abrangem (quase) todos os quadrantes de Angola.

Em que províncias e sobre que culturas incide mais a pesquisa?

Tendo-me dedicado sobretudo à cultura cokwe, as províncias que mais visito são as Lundas (Norte e Sul) e o Moxico. Possuo, no entanto, um conhecimento genérico sobre as danças de cada uma das regiões de Angola.

A construção do que é ser “angolano” parece obedecer a um padrão mais ocidentalizado e urbano. Como vêo contraponto de outras formas de viver em Angola, nomeadamente o que há a aprender com a culturacokwe?

O que me parece é que a questão das identidades (e não identidade) está a ser mal gerida, o que leva a que as pessoas estejam perdidas e equivocadas quanto à sua essência. Ouvir música clássica não é ter identidade africana, mas casar-se de vestido comprido branco com véu e grinalda é a prática; não comer os chamados pratos típicos não é ser-se genuinamente angolano, mas no Natal não pode faltar bacalhau com batatas ‘do reino’. Ou seja, as pessoas são levadas a pensar que a identidade ou a angolanidade são características congénitas, mas não são; nem sequer são fenómenos estanques, mas sim processos de adopção e descarte permanentes.

A cultura cokwe também não é uma realidade hermética. A modernidade chegou às aldeias e as formas de poder tradicionais já não possuem as mesmas características, nem as mesmas abrangências. Os distintos agentes sociais alteram as suas funções e transformam-se as essências.

O ideal seria que as pessoas percebessem, sem complexos, mágoas ou radicalismos, que ser angolano passa por olhar para a frente, com as raízes no passado e orgulhar-se desta capacidade de progredir.

A CDC Angola tem tido apoios públicos. Como funciona?

Mal. Por incrível que pareça, com tantos fundos e receitas públicas e privadas que se geram em Angola, não existe um programa eficaz de apoio e subsídio a projectos sérios e contínuos, como aquele que desenvolve a CDC Angola que, apesar de não ter quaisquer condições para trabalhar, vai apresentando um trabalho de qualidade reconhecido internacionalmente. E isto é que é bizarro.

Se fossemos futebolistas já nos tinham dado chuteiras novas! Mas estamos a ‘desconseguir de atingir’ o estatuto de “companhia de ouro”!

Portanto, a única companhia profissional que Angola tem, trabalha em condições miseráveis, não consegue completar o seu projecto de extensão comunitária e é permanentemente posta em pé de igualdade com agrupamentos sem qualquer qualidade ou consistência artística, no que toca a planos de apoio financeiro, o que é uma injustiça, convenhamos.

Mas tem apoio institucional do Ministério da Cultura.

Sim, mas apesar de contar com o apoio institucional do Ministério da Cultura, este ainda não atribuiu à CDC Angola o estatuto de instituição merecedora de um tratamento diferenciado. Refiro-me a apoio financeiro. No entanto, o nosso trabalho e projecto são únicos e de uma seriedade, consistência e persistência que, só por si, já mereciam um olhar mais justo.

E outros patrocinadores? 

Com o estatuto de Associação Cultural sem fins lucrativos, a CDC Angola não vive confortavelmente. Actualmente está a ser alvo de um apoio do Banco BAI, que nos tem ajudado a garantir o pagamento dos salários mensais dos bailarinos e dos impostos.

Por outro lado, recebemos, igualmente, um importante patrocínio em equipamentos, oferecidos pelo Banco BFA.

Para as temporadas da CDC Angola contamos sempre com o apoio de patrocinadores que nos têm acompanhado ao longo destes anos.

No entanto, estes apoios pontuais, que foram a nossa salvação numa altura em que quase nos afundámos, são insuficientes para a implantação do projecto total. Por isso, continuamos a trabalhar em condições físicas absolutamente deploráveis e degradantes, sem seguros de saúde (que nesta profissão são fundamentais), não conseguindo partilhar e expandir o nosso trabalho com a comunidade como é nosso desejo.

Em termos de exibição, também acresce o problema da falta de salas em condições?

Com tantos prédios novos é insólito que ninguém se lembre de construir um teatro (ou dois, ou três!), mas um teatro a sério e não auditórios com palcos minúsculos e piso em cimento. É insólita esta situação de não existirem teatros em Luanda (e em Angola, no geral), os quais são para nós como os hospitais para os médicos, como as escolas para os professores, como os tribunais para os advogados ou como o ar é para os pulmões, ou seja, a nossa razão de existir, enquanto artistas.

O único teatro que existe, não está equipado e cobra diárias que são, para nós, absolutamente insustentáveis.

No processo de coreografar, o que mais a estimula na criação colectiva? 

O que mais gosto é da fase de pesquisa, quando cada um traz o produto das suas descobertas.

Quando se vê as coisas a crescer, há uma certa perplexidade.

É surpreendente e estimulante ver como o mesmo tema produz, em cada uma das áreas criativas (coreografia, interpretação, figurinos e adereços, música ou luzes) materiais tão distintos. Depois vem a fase da articulação de todas estas linguagens cénicas que é uma fase mágica, terminando com o encaixe ‘perfeito’ de tudo.

A CDC Angola podia ter mais carreira internacional. O que dificulta a vossa mobilidade artística?

A falta de sensibilidade e de entendimento do que é um trabalho sério na área da dança e a visão estreita do que é a arte, ao que se junta a incapacidade de se perceber a importância do papel de uma companhia deste género para a criação da imagem de uma Angola avançada artisticamente.

Que outras referências artísticas de criação em África na área da dança tem acompanhado e recomenda?

Qualquer país africano francófono, por exemplo, desenvolveu a dança contemporânea tendo hoje mais que uma companhia; Senegal, Burquina Faso, Camarões,… mas não só; olhemos para a África do Sul, e mesmo para Moçambique que até tem um Festival Internacional de Dança Contemporânea. Até Cabo Verde tem uma companhia de dança contemporânea que foi condecorada pelo seu presidente.

Como vê a actual situação da produção artística em geral no país?

Sem ir mais longe, basta que nos comparemos com outros países africanos para verificarmos como temos de correr para apanhar o comboio do progresso e como somos pobres de ideias criativas. O terreno é pouco fértil, excepção feita às artes plásticas onde é mais visível a criação e o surgimento de propostas arrojadas e muito interessantes. A verdade é que o ensino na área das Artes Plásticas nunca deixou de existir, mantendo alguma qualidade a nível dos professores.

De resto… vejamos a dança, por exemplo, onde ainda estamos na fase da imitação e da recreação e onde só existe uma companhia a produzir obras originais.

Talvez seja importante assinalar que, quando me refiro à produção artística estou a falar de criação de autor, estou a falar de arte com um pressuposto de conhecimento específico com base académica, estou a falar de profissionalismo. Não me refiro à arte popular (género onde mais se tem produzido nos campos da música e do teatro) que pertence a um outro plano (não inferior, ressalvo, mas distinto).

O que poderá inverter esse cenário?

Acredito, profundamente, que este cenário só mudará pelo cruzamento de dois eixos principais: o funcionamento pleno de um sistema de ensino artístico especializado e o incremento de acções que visem, por um lado, a educação do gosto e a apreciação estética de toda a sociedade, através de programas de divulgação do que é, realmente, a Arte e, por outro, que permitam a toda a gente o acesso à produção artística mundial.

O que impede o crescimento da prática artística?

Lamentavelmente, em Angola vivemos um pouco a pensar que o único caminho que existe é aquele que vai dos nossos olhos ao nosso umbigo. Mas há que experimentar o prazer de olhar para os lados, para todos os lados, e ter a humildade de perceber que ainda temos muito que aprender com a partilha.

Acho que é o medo de perdermos a “identidade” e a comodidade de nos defendermos com “o que é nosso” que nos impede de crescer. Mas a falta de conhecimento é também um grande obstáculo para o progresso. Angola não é um país retrógrado. Estamos a avançar em várias frentes, portanto, há que deixar de lado os complexos e procurar um outro olhar sobre as artes.

Outro factor que impede este crescimento é a falta de modéstia no fazer e de humildade para aprender, qualidades que são suplantadas pela arrogância, a sobranceria e o atrevimento, mesmo em caso de ignorância. E o mais preocupante é que as pessoas mais simples gostam e têm vontade de aprender…. Muitas vezes não lhes é dada essa oportunidade, distorcendo-lhes o olhar.

E como seria mais funcional em termos de incentivos?

É fundamental que todos os programas de incentivo e reconhecimento como prémios, subsídios, apoios, etc., sejam produto de uma avaliação justa e não decorrentes de atitudes baseadas em amiguismos, subjectivismos, ostracismos, receios ou outros que apenas contribuem para o aumento da mediocridade e para o desânimo daqueles que se pautam pela qualidade e pela profundidade intelectual.

A entrada em funcionamento da Lei do Mecenato poderá ser outra solução.

Para já, creio que se deveriam rever os critérios de atribuição de apoio financeiro a projectos.

Será que o cansaço pode ganhar terreno, com tanta luta?

Sim, começo a ficar farta. Já se passaram 35 anos desde que comecei a trabalhar em dança (nem tinha 16 anos de idade) e continuo sem ter condições para desenvolver o projecto que criei e que tenho transportado comigo há tanto tempo. Ao meu lado crescem carros, prédios de vidro, modas, escolas de dança duvidosas, grifes, negócios, empresas e férias nas ilhas do Pacífico, mas ninguém se apercebe da importância de um projecto como este que, em qualquer parte do mundo, teria todo o apoio do próprio estado. Um projecto original, único, pioneiro, progressista, seria o orgulho do país. Mas em Angola não é.

Conto sempre esta história: logo nos primeiros anos da revolução cubana, Fidel Castro chamou a bailarina Alícia Alonso e perguntou-lhe o que precisava para desenvolver uma escola e a companhia; e apoiou-a. Hoje, Cuba possui um dos maiores e mais eficazes sistemas de ensino artístico do mundo, produzindo bailarinos cobiçados pelas maiores companhias de dança mundiais.

Em que estão a trabalhar?

Na tentativa de arranjar um novo espaço pois aquele que ocupamos deixará, brevemente, de estar disponível.

Enquanto temos tecto, estamos a ensaiar a obra Paisagens Propícias que ainda não conseguimos apresentar em Angola e a trabalhar na criação de uma nova peça.

Porque demora tanto a existir mais ensino formal artístico? Que modelo poderia funcionar melhor?

Demora porque nunca foi uma prioridade do país. As escolas abriram todas no tempo em que o poeta António Jacinto foi Ministro da Cultura, portanto, em 1976. Sempre se mantiveram abertas até ao colapso, pois deixou de haver a visão de futuro relativamente às artes que existiu nesse início.

Actualmente o Ministério da Cultura está a recuperar o projecto antigo e já existe um edifício especializado para o ensino das artes.

Se a convidassem para Ministra da Cultura aceitava?

Não aceitava, pois perderia a liberdade para criar! Por este motivo (e por estranho que possa parecer) nunca aceitei nenhum cargo de direcção dentro do Ministério.

Hipoteticamente, se sim, qual seria a linha de trabalho adoptada?

Hipoteticamente, apostava na qualidade do desenvolvimento artístico pelo intercâmbio e a abertura ao mundo! Apostava também no ensino artístico sério e eficaz e no incentivo à criação intelectual. Daria uma atenção especial à investigação nas áreas artísticas e insistiria na qualidade da produção artística.

Como vê o país daqui a dez anos?

A começar a pagar a factura de alguns excessos.

 

Fotografias dRui Tavares da Companhia de Dança Contemporânea de Angola

 

publicado originalmente no REDE ANGOLA, a 30/3/2014

 

Um palco em movimento
Com um percurso inovador e singular, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola acumula já 30 anos de história da dança sem deixar de se autorecriar. Num contexto artístico débil em políticas culturais, onde as artes performativas parecem reduzir-se ao teatro não profissional e às danças patrimoniais e recreativas urbanas, a CDCA rompe com uma certa ideia de “tradição” e conservadorismo, construindo um espólio estético com características específicas e de cunho autoral muito vincado. As suas propostas coreográficas confrontam o público trazendo as histórias e episódios do quotidiano social, urbano e rural, onde o corpo e o movimento constituem o elemento catalisador. A contemporaneidade da Companhia reside nesse olhar atual que cruza a história e a cultura com experiências extremas vividas em Angola, numa tentativa de compreender as questões universais da dor, amor, conflitos, energia e afetos.  

Sob direção da coreógrafa Ana Clara Guerra Marques, a Companhia é composta por sete bailarinos, um produtor executivo, um fotógrafo para a imagem e um ensaiador e figurinista, convidando, pontualmente, artistas para efectuarem residências em criação com a Companhia. Sem poderem contar com os apoios financeiros necessários e com as condições ideais para manterem o um trabalho profissional, nunca deixaram de manter uma atividade regular. A experimentação tem sido a base da sua metodologia. No intuito de revitalizar a diversidade cultural de raiz tradicional, A Propósito de Lweji (1991), Uma frase qualquer… e outras (frases) (1997), Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos (2009), Paisagens Propícias (2012), e Mpemba Nyi Mukundu (2014) e (Des)construção (2017), são alguns dos exemplos a partir de pesquisas em vários territórios angolanos. Já no interesse de trazer diferentes conceitos de espectáculo, de modo arrojado e pouco usual no contexto angolano, contam-se as performances: Corpusnágua (1992); Solidão (1992); 1 Morto & os Vivos (1992), 5 Estátuas para Masongi (1993) Introversão versus Extroversão (1995) ou Ogros… da Oratura… e do Fantástico (2008). 

Mas para a CDCA a dança é, sobretudo, um meio de intervenção social, como evidenciam as peças Mea Culpa (1992), Imagem & Movimento (1993), Palmas, por Favor! (1994); Neste País… (1995), Agora não dá! ‘Tou a Bumbar… (1998), Os Quadros do Verso Vetusto (1999), O Homem que chorava sumo de tomates (2011), Solos para um Dó Maior (2014), Ceci n’est pas une porte (2016) e O monstro está em cena (2018).

Além dos espectáculos, a Companhia promove workshops, seminários, palestras, encontros, aulas abertas e programas de educação e divulgação da dança, na tentativa de contribuir para a educação estética do público. Os espectáculos já viajaram por várias cidades africanas, americanas, europeias e asiáticas, embora só em 2017 tenha sido atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes no seu país. Nos últimos anos a CDCA tem recebido um apoio anual da Fundação BAI, que cobre os salários dos bailarinos e o pagamento do aluguer do espaço de ensaio. Dada a inexistência de Teatros emAngola, e dada a impossibilidade de pagar o aluguer da única sala de espectáculos existente, não conseguem rentabilizar as suas produções. Para o efeito, são improvisados palcos com a generosidade do Instituto Camões e da SOMAGUE para a apresentação.  

A Companhia de Dança Contemporânea de Angola aposta na sua internacionalização concretizando digressões, garantindo melhores honorários aos seus bailarinos, e procurando melhores condições de espaço de ensaio e de apresentações.

Perante todas as adversidades, sempre mantiveram uma imensa força e reinvenção, apresentando uma nova criação em todas as temporadas. 

Foram realizados cinco documentários sobre esta Companhia. Jorge António realizou Uma Frase Qualquer (1996), que resume a história da Companhia e acompanha a preparação da peça apresentada nos 1ºs Encontros Coreográficos Africanos; Outras Frases (2003), que percorre a história da dança académica e cénica angolana, tendo como pano de fundo os contextos político e social de Angola antes e depois da independência; Outros Rituais Mais ou Menos (2011) que acompanha o labor da CDC Angola durante a criação da peça para a temporada de 2011 e Paisagens Propícias (2012) que segue a viagem ao deserto do Namibe, para a criação da coreografia homónima que cruza os povos do deserto com a vida de Ruy Duarte de Carvalho. O documentário Para Lá dos Meus Passos (2018), realizado por Kamy Lara, acompanhou a montagem do espectáculo da temporada de 2017, enquanto cinco bailarinos enunciam as suas vivências entre a tradição, cultura, memória e identidade.

2018

por Marta Lança
Palcos | 24 Setembro 2018 | Ana Clara Guerra Marques, angola, dança contemporânea, Para lá dos meus passos