BAB SEBTA, mudar a percepção das migrações, entrevista a Pedro Pinho

O sucesso do vosso filme (Bab Sebta) na Europa tem a ver com o peso da consciência imperial europeia?

Não sei. Isso de peso na consciência é uma coisa um bocado católica. Tem que ver com comer muito e dormir bem. Acho que na Europa, como em todo o lado, há pessoas que comem muito e outras que comem pouco. Umas que têm insónias e outras que são sonâmbulas. Como em Maputo, e como em todo o lado. 

Acho que o filme tem sido bem recebido porque propõe uma visão alternativa sobre um problema que as pessoas estão cansadas de ouvir falar. Na Europa, como em todo o lado, os assuntos importantes - que implicam a vida e a morte de muitas pessoas - são ajavardados nas notícias, nas televisões e nos jornais. O tempo e a forma como as coisas nos são apresentadas provoca-nos uma certa náusea. Vive-se um problema de excesso de acontecimentos; de bombardeamento de informação os quais não tens tempo nem capacidade emocional para processar. 

O que o filme Bab Sebta procura fazer é contrariar essa náusea. Por um lado, tomar o tempo necessário para abordar as pessoas de quem queres falar - o filme foi feito ao longo de dois anos. Por outro lado, obrigar as pessoas que entram numa sala escura de cinema para o ver a ficarem sentadas um tempo que achámos que era preciso para contar as histórias dessas pessoas. 

 

Em que sentido o filme pode mudar a percepção destas realidades?

Espero que mude alguma coisa. Não sei o quê, nem acho interessante ser eu a lançar pistas sobre o que acho que pode mudar.  

 

Como lês o facto de muita gente quando vê o filme se surpreende com a dignidade e humanidade destas pessoas a quem se referem sempre como “eles”?

Acho que isso é uma questão central que tem a ver com a nossa necessidade inicial de fazer este filme. 

Na Europa há muita gente que continua a falar em ELES. Nós e eles.

É revelador e perverso que as pessoas se surpreendam com a humanidade e a dignidade das pessoas que aparecem no filme. Mostra que a forma como estamos habituados a pensar este problema, a forma como ele nos é servido, passa por retirar a humanidade às pessoas. Há um filósofo italiano contemporâneo, Aggamben, que fala d’A Vida Nua, para dizer que estamos habituados a considerar a vida deste conjunto de pessoas como despidas de humanidade e das qualidades que normalmente associamos aos seres humanos, como a Individualidade. 

A surpresa deve ter a ver com isso, com descobrir individualidades dentro de uma massa que normalmente vemos como indistinta. O filme é sobre a espera, sobre os tempos de espera. Se pode haver diferenças entres as acções das pessoas de cá e as pessoas de lá, a espera permite-nos reconhecer uma unidade e uma semelhança. Por definição, quando esperamos estamos dependentes de alguma coisa exterior que não controlamos e de que estamos dependentes e esse estado de vulnerabilidade é universal.  O quotidiano da espera é comum a todas as pessoas do mundo e facilmente reconhecível e identificável.

 

'Bab Sebta' de Pedro Pinho e Frederico Lobo (Terratreme 2008)'Bab Sebta' de Pedro Pinho e Frederico Lobo (Terratreme 2008)

 

Como reages ao comentário do pescador da Mauritânia que vos é dirigido: “vocês vieram com uma câmara porque têm a barriga cheia; para adquirir conhecimento, não para procurar emprego.”

Ele aponta claramente para nós. Quando partimos para filmar, apesar do filme ter sido produzido em regime de baixo orçamento e de cinema-guerrilha, há uma disparidade evidente de meios entre as pessoas que estão à frente da câmara e as que estão atrás. Essa disparidade é um reflexo do problema central do filme que é a relação entre o Norte e o Sul. Nós somos uma parte implicada nesse problema. Como ele explica, aliás, é esse desiquilíbrio entre o Norte e o Sul que faz com que nós possamos estar ali a ouvi-lo, com uma câmara que custa tanto como o que ele ganha com o seu trabalho durante 10 anos. Isso é um insulto brutal. A nossa vontade é que esses pequenos insultos lançados ao longo do filme possam produzir sentido. 

 

É interessante a forma como as personagens reformulam os conceitos e os nomes desadequados que lhes são atribuídos: clandestinos, imigrantes ilegais, fluxos. Terão consciência da mediatização e do tom de ameaça com que são abordadas as suas vidas em trânsito?

Sim. O que para nós na Europa é surpreendente é o facto das pessoas na Mauritânia, em Marrocos, no Senegal terem acesso a todo o discurso que é produzido na Europa, a todos os modelos de vida que lá se praticam e às subtilezas a eles associados. O facto de as pessoas estarem conectadas via satélite, internet ou telefone a uma realidade que está distante e de viverem, simultaneamente, o quotidiano da realidade africana, permite-lhes ter conhecimento sobre o que se passa em dois mundos distintos. Devem alargar a visão e ganhar uma distância crítica sobre a realidade europeia. Por isso há a necessidade de encontrar palavras novas para falar de si próprios. Porque não se reconhecem nas palavras com que na Europa os descrevem. Ao se chamarem a si próprios de aventureiros ou de camarades desprezam e ultrapassam o olhar europeu que os vê como clandestinos, ilegais, miseráveis, pobrezinhos da cruz vermelha, etc. 

 

O filme consegue antes tratá-los como grandes aventureiros. Quais os maiores riscos das suas incursões? Além da questão financeira, o que procuram em termos de aventura?

Alguém que larga a sua casa para ir para outro lado, atravessa vários países que não conhece, passa por alguns perigos, junta-se a desconhecidos para seguir viagem, aprende línguas estangeiras para resolver as mais diversas dificuldades e, apesar delas, continua em frente é o quê? Parece-me uma boa definição, a de aventureiro. 

O que motiva a partida é certamente a possibilidade de arranjar mais dinheiro pelo mesmo trabalho, mas também a curiosidade e o desejo de estar noutro sítio, fazer parte de outra realidade.

 

Quais são as origens e os destinos principais da maioria daquelas pessoas?

As pessoas que encontrámos têm as mais diversas origens, vindas inclusivamente de países do Sul de Africa como o Zimbabwe. Mas a grande maioria vem da Nigéria, do Gana, da Costa do Marfim, Libéria, da Guiné Bissau e do Senegal. Os destinos geralmente são a Espanha ou os países colonizadores: Inglaterra para os anglófonos, França para os francófonos e Portugal para as pessoas da Guiné Bissau. 

 

Uma das personagens diz que se os problemas dos países de origem estivessem resolvidos não tinham necessidade de partir. Como é a relação com a Europa, mistificada, ilusória, indiferente?

Pessoalmente, acho que as pessoas devem ter a liberdade de partir e de se deslocar, mas também devem ter a liberdade de não partir. Isto é, ter as condições económicas e de segurança para viverem no síto onde nasceram, se assim desejarem. Isso parece-me claro. Quanto ao que se passa na Europa relativamente aos imigrantes vindos do Sul, julgo que a longo prazo será a Europa que tem um problema para resolver.

Basta ler o artigo publicado há uns tempos no jornal Público sobre a evolução demográfica  mundial até 2050. Prevê-se que Portugal perderá um milhão de habitantes enquanto Angola passará de 17 milhões de pessoas para 44. Isto terá implicações gigantes na economia e nos equilíbrio político entre os dois continentes.

 

Achas que há sensibilidade da parte de outros africanos que não estão ligados a esta “aventura” para tal questão?

Luanda foi a primeira cidade africana onde foi projectado publicamente. Não sei se há essa sensibilidade. Mas ao fazermos este filme procurámos, através deste problema específico e pontual que é haver pessoas que são impedidas de passar de um continente para outro, a possibilidade de falar da relação entre o Norte e o Sul. E essa relação implica toda a gente, em todo o mundo, não só aqueles que atravessam de piroga o Mediterrâneo. 

Para nós foi fantástico perceber, quando estivemos no festival de Marselha, que os mexicanos, argentinos e venezuelanos aí presente receberam muito bem o filme, com mais entusiasmo do que a maioria dos europeus. Ficámos com a sensação de que o filme cumpria esse objectivo de falar de um pouco mais do que esse problema concreto que se passa no Norte de África. 

 

originalmente publicado no catálogo do Dockanema - festival de filme documental, Maputo 2009

por Marta Lança
Afroscreen | 10 Julho 2012 | aventura, Bab Sebta, espera, mauritânia, migrações, norte de áfrica, passagem, piroga, sul, Tânger, viagem