O dia em que deixamos de construir as cidades para os outros
1. No livro Afrotopia, que tive o prazer de traduzir, o escritor senegalês Felwine Sarr coloca os discursos sobre o futuro de África em registos contraditórios: por um lado, funestos presságios, associados às convulsões e crises pelas quais o continente tem passado; por outro, a recente retórica de euforia e de otimismo que prognostica que o futuro será africano. África é, assim, o cavalo predileto na aposta do capitalismo global. Pelo seu intenso crescimento, pela sua população jovem e numerosa (recuperando a debandada de milhões durante o tráfico negreiro), com território, recursos naturais e matérias-primas copiosos, África afigura-se como «um doce presságio de prosperidade em tempos de tempestade».
Sarr lembra, porém, que todas as projeções se inscrevem na longa e indelicada tradição de não convidarem os principais interessados para o devaneio coletivo e, sobretudo, serem produzidas fora de África. O discurso otimista também não dispensa contradição: ao afirmar que ali será o futuro, sublinha o que ainda não é, ou seja, que o tempo presente tem graves lacunas. A crença no futuro radiante destaca o desânimo perante o presente caótico e continuamente atribulado.
Mas de que prosperidade se fala? «De Argel ao Cabo da Boa Esperança, é lugar de abundantes culturas, povos, historicidades, geografias, modos de organização social e política, diversas temporalidades. Apesar desta diversidade, que é uma das suas riquezas, os países africanos partilham o mesmo destino, enfrentam os mesmos desafios históricos, têm a mesma história recente, mas sobretudo partilham o projeto de uma África que se deve tornar a sua própria potência e a sua própria luz.» E ainda: «A prosperidade é certamente um desejo partilhado pelos povos. Porém, é menos certo que todos partilhem a relação com a economia de estilo mecanicista, racionalista, que submete o mundo e os seus recursos à exploração frenética em benefício de uma minoria, desequilibrando as condições de vida.»
E vou parar de citar o Felwine Sarr, porque depois só apetece continuar. Há sempre tanta gente que pensa melhor do que nós…
Pensei iniciar o texto com esta dificuldade: o défice de imagem ou de metáforas de futuro na existência daqueles que – tal como grande parte da vida em África – ainda rejeitam «uma perspectiva invertida do humano» (expressão do autor) padronizada pela economia, em que a quantidade e o ter prevalecem ao ser. Para estes, para nós, a contenda é lidar com o que já sabemos e o que rejeitamos, não embarcando nem no catastrofismo nem no otimismo ingénuo. Implica simultaneamente pensar e agir; desafios e respostas; encontrar as nossas próprias metáforas; romper os falsos modelos universais.
2. Em 2010, combinei encontro com a Margarida Vale de Gato, sua filha Alice e o poeta Rui Costa, na base do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC). Dali se mirava a cidade-montanha Rio de Janeiro como o «outro lado». Escrevi no meu bloco de notas da altura: «Niterói tem uma nave de Niemeyer que aterrou na Baía de Guanabara com um museu que espelha o futuro.» A obra, inaugurada em 1996, era de facto a imagem do futuro: fachada futurista, envidraçados de onde se abarcava um pedaço de mundo a 360 graus. Pairando na água, reconhecíamos o modernismo, a arquitetura botava fé no futuro expresso nas formas redondas de «concreto». A sua escala gigante fazia-nos seres minúsculos na fotografia debaixo da nave, fincados no tapete vermelho serpenteante, também ele cimentado.
Ao entrarmos no MAC, recordo vagamente uma exposição (creio que do acervo da Coleção João Sattamini, com obras desde a década de 50) de artistas brasileiros que, durante a ditadura militar e civil, tinham sido perseguidos e torturados. Cada obra à sua maneira, transmitia o desejo coletivo de liberdade. Na altura pensei que era assim mesmo, o desejo de futuro não podia prescindir da evocação das trevas, tinha de levar consigo as dores do passado, a ditadura, a «democracia racial», a escravidão, as gritantes desigualdades, os colonialismos todos, e um sem-fim de dores do Brasil.
Nós éramos as pessoas daquele momento, hoje somos as deste, mas também um pouco daquele e ainda d’o que será que será. A criança curiosa é uma mulher a agir diretamente para travar o ecocídio do nosso futuro, o poeta morreu tristemente cedo, a Margarida coorganiza este livro que fura o futuro, e eu apanhei a nave de Niemeyer, e escrevo desde a Feira da Ladra, rodeada de objetos que terão sido de outras pessoas e contam outros modos de vida.
Passei os dias do meu suave covid a ver a série Station Eleven, na qual uma gripe dizima noventa e nove por cento da população, porém, óbvio, a humanidade não acaba. (Não podemos continuar a adjetivar de distópicos estes plots que nos são agora tão familiares.) Uma das comunidades sobreviventes mantém-se a viver num aeroporto e nele cria o Museu da Civilização, com objetos que mostram como era a vida no «before». A Feira da Ladra parece esse reavivar da vida de antes, antes de nós, ou «nós antes». Os objetos ajudam verdadeiramente a conhecer o que existia antes de nós, relembram-nos o que fomos, e permitem mostrar aos que não viveram esse tempo para que serviam aqueles objetos ou imagens, e quem éramos nós por usá-los ou gostar deles. No jogo de apropriação e desapropriação, os objetos sentimentais esvaziam-se da aura dos seus antigos donos para ganharem novas vidas noutras mãos, no apego e desapego, e aí se sente a força e a fragilidade de cada tempo.
3. Em Portugal, a democracia ultrapassou há pouco os dias que durou a ditadura. Os artistas, durante muito tempo, não tinham vontade de abordar temas da colonialidade. Depois do 25 de abril de 1974, éramos um petit pays pobre e desigual, mas a história do império lá ia assegurando algo da sua «grandeza», e essa história «bonita» dava algum chão. As vozes críticas sobre o colonialismo e as violências do passado eram suplantadas pelo saudosismo e o ressentimento (muito difícil de se ultrapassar), até trauma e, a par, pela fome de Europa e de futuro. No final dos anos 90, assistimos às comemorações glorificadoras que futuravam os «Descobrimentos» através dos oceanos e seus navegadores. Programou-se o «Mergulho no Futuro», que deixou bons concertos na memória.
Já no final da primeira década de 2000, começam a aparecer propostas artísticas de países africanos que desafiam as expectativas e o paternalismo à portuguesa. O meio artístico contemporâneo foi recebendo um discurso pós-colonial, que se disseminou também no meio académico (que muito deve à professora Manuela Ribeiro Sanches). No início, artistas e curadores adaptavam-se ao léxico e às abordagens, talvez mais por agendas exteriores e pela força do mercado do que por qualquer debate profundo e alargado. Mas, apesar do tanto ainda por contar, pensar e fazer, o interesse pelos – genericamente chamando – temas pós-coloniais, produção afrodiaspórica, assim como por África enquanto sujeito e objeto histórico e artístico, tem-se expandindo e aprofundando nos últimos tempos. Podemos especular razões, como a abertura de Portugal ao mundo, dinâmicas da globalização e da circulação do conhecimento e das pessoas, modernização das universidades, mobilizações globais do movimento negro como o Black Lives Matter, ou o emergente afropolitanismo.
Tal como na restante Europa, vêm saltando do baú as histórias sobre o período colonial, os seus fantasmas e as relações geradas por processos violentos. Da história familiar às linhas de investigação, passando pela programação cultural, podemos sustentar que o colonialismo e as suas consequências são mais recorrentes nos imaginários, nas teses e na produção artística contemporânea – o que, esperemos, se poderá traduzir numa maior atenção às complexidades e aos desafios das sociedades pós-coloniais. A revisitação do passado colonial é crucial para nos pensarmos no presente, pois as condições do presente vêm daquilo que terá condicionado o nosso passado. E, nesta equação, ficou muita gente a perder.
Ora, uma das expressões deste fenómeno passa por questionar os modos de escrita da História e das políticas de memória, problematizando visões que tendem ainda a reiterar as narrativas de excecionalidade portuguesa sem refletir na violência, na apropriação, na ocupação e nas hierarquias que resultaram de uma mundivisão gananciosa e de todo um sistema opressivo. A sul-africana Gabi Ngcobo, que foi curadora da 10.ª Bienal de Berlim (2018), explica: «É imperativo investigar como as narrativas históricas têm sido construídas – especialmente quando escritas a partir de uma posição que glorifica aqueles que historicamente causaram muito dano a outros.»
4. Na disputa de políticas de memória, vai-se tentando contrapor o tal senso comum que não acha piada a que agora venham pôr em causa as suas versões arrumadinhas. Alguns museus encetam conversas sobre descolonização, restituição e reparação, a partir de acervos, de artefactos e de objetos de arte (fronteira pouco óbvia). Para esta temática, uma das bússolas é o relatório The Restitution of African Cultural Heritage. Toward a New Relational Ethics, Felwine Sarr (de novo) e de Bénédicte Savoy (2018).
Em termos de práticas de memorialização, será interessante referir os debates que vêm acontecendo em algumas cidades, como Hamburgo, Bruxelas, Berlim, Paris, Barcelona. Por cá, coordeno a parte de Lisboa do projeto ReMapping Memories Lisboa – Hamburg, lançado pelo Goethe-Institut, e agora gerido pelo BUALA e Museu de Lisboa. A ideia é inscrever Lisboa numa reflexão a par de outra cidade portuária. Esse paralelo com outros exemplos europeus, ajuda a esclarecer que pensar o passado e o presente de uma Europa inter-racial, intercultural e democrática (e, quem nos dera, de paz) é um projeto coletivo, no sentido de contribuir para que o maior número de pessoas se sintam representadas, atuantes e congratuladas por viver onde vivem, por pertencer a determinada comunidade e até transitarem nesse processo. Pensar a memorialista não se reduz aos monumentos, arquivos e museus, mas também passa por tudo isso que é da ordem do simbólico e da produção e transmissão do pensamento. Não é a caricatura de meia dúzia de gestos iconoclastas que querem beliscar a memória do império português, espinha dorsal da narrativa nacional e dos nossos manuais escolares. Falar das ligações da cidade à colonialidade diz respeito ao que ficou da matriz colonial nas nossas vivências, como processo em curso, tantas vezes naturalizado, e que ainda faz doer. Por exemplo, passa por saber mais da longa história da presença africana, reconhecendo omissões, nomeadamente a importância dos trabalhadores que construíram Lisboa, na sua maioria negros da periferia ou imigrantes, e que estão banidos da memória pública e do usufruto da cidade.
Comecei por entrevistar pessoas com diversos backgrounds, no sentido de perceber o que sentem e percecionam em relação a Lisboa, que lugares ou episódios carecem de memória pública e como poderiam ser memorializados, contextualizados, criticados, assinalados: edifícios, ruas, monumentos, rotundas, bairros. A partir dessas vozes, identificámos alguns lugares de memória em Lisboa, para serem descritos ao longo do tempo, com tantas memórias por desenterrar e contar, no palimpsesto próprio às cidades. Os contributos que se encontram no site tornam o debate da «descolonização das cidades» menos abstrato, ao fornecerem textos de pendor histórico e jornalístico, mas também opinativos e relacionais. No seu conjunto, contribui-se para o diálogo alargado sobre a Lisboa por vir, a cidade onde todos se querem representados.
5. Uma maior horizontalidade nesta grande conversa de mundos? Talvez, mas ainda pouco. Com espírito cosmopolita sincronizado com os grandes debates internacionais, é certo que os assuntos pós-coloniais têm estado nas agendas de várias instituições de programação artística e de pensamento. Estamos mais familiarizados com produções de outras partes do mundo, mais exigentes contra os discursos condescendentes, de exotismo ou multiculturalismo de inclusão, ou que revelem um certo «oportunismo temático» – por exemplo, de que a curiosidade por protagonistas artísticos exteriores à Europa e a sua visibilidade se articulam com a fluidez do mercado (porque haveria a arte de estar fora destas lógicas?), ávido de novidades, sobretudo de países economicamente aliciantes como foram, a determinada altura, Angola, o Brasil e a China. Estamos mais alertados para as nossas limitações, para as relações de poder e os «vícios» de curadoria, coleção e pesquisa, e tudo o que se tem proposto rumo a uma postura descolonizadora das instituições e dos modos de produção. Por exemplo, contesta-se a guetização das culturas em nichos, colocando a arte africana como algo à parte da história de arte convencional.
É certo que a arte se inspira em campos sociais, sofre das suas tensões, desdobra-se em experimentações, laboratórios, em métodos participativos, documentais, histórias de vida, etc. É também verdade que as práticas artísticas são fonte para novas abordagens estéticas e temáticas, e dão pistas para perceber o mundo contemporâneo.
No entanto, entre o discurso (produzido num circuito minoritário da academia, da arte e da comunicação) e as práticas, parece faltar o entrosar com as injustiças próprias ao capitalismo, a assimetria da qualidade de vida, na circulação e na cidadania. Os programas multiculturais ou chamados «das alteridades» tendem a ficar muito distantes dos problemas reais das pessoas diretamente imersas nas consequências negativas da colonialidade. Como se os discursos pós-coloniais e artísticos e a urgência de uma cidadania justa em Portugal não comunicassem. Tardam as mudanças estruturais com efeitos diretos na vivência das populações racializadas.
Refém de uma falsa ideia de país tolerante e, por isso, não assumindo, o racismo institucional, contra todas as evidências, ainda é negado a pés juntos. Ora, o tal mito da brandura portuguesa cairia logo por terra se analisássemos as lógicas de segregação de ontem e hoje sobre as quais não nos faltam exemplos: a precarização do direito à cidade, as pessoas racializadas empurradas para os bairros periféricos pobres, os níveis de escolaridade baixo e o elevador social que nunca mais arranca. Valorizemos as conquistas de abril, mas lembremos também as não cumpridas promessas ao tempo que viria.
6. Alegra-me o fortalecimento do ativismo antirracista e a presença de vozes de afro-portugueses no espaço público em vários sectores da sociedade portuguesa. As próprias instituições, algumas, tentam criar pontes entre a cena artística e as comunidades de jovens afrodescendentes, tanto em termos de produção como de fruição. Com muita luta, exige-se mudança de critérios para a representatividade na equação de quem programa e quem é programado, e quem decide.
No entanto, o sector cultural (para começar por algum lado) tem ainda tudo por fazer… Os professores e alunos do ensino superior, as direções de festivais, de museus, de bienais, das universidades, os programadores estão longe de corresponder à diversidade da nossa população. Quase não há afro-portugueses a frequentar instituições culturais, nem com acesso ao circuito da arte. Aliás, ainda há desconforto na frequentação de museus e de instituições, como se as pessoas racializadas sentissem que não pertencem àquele espaço. Há sempre tensão nos debates a partir do seu «lugar de fala». E dos artistas negros exige-se que, além de fazerem o seu trabalho artístico, eduquem os seus interlocutores e tematizem constantemente as questões raciais.
7. Para lá do panorama geral, as subjetividades das histórias e as ações concertadas das micropolíticas confrontam os desígnios da história dos incontestáveis e dos vencedores. As conversas não são amenas nem consensuais, e ainda bem. É preciso procurar nos arquivos coletivos e de cada um, trabalhar os preconceitos de cada um, assim como assumir as complexidades cinzentas das antigas metrópoles e colónias, da ditadura, da revolução e da democracia em diante. Observemos os gestos dos nossos quotidianos de cidades e interior, para ver neles o que há da tal humanidade sobrevivente ao colapso, a que ainda deseja ter um futuro não completamente furado. Façamos mnemónicas à humanidade nas nossas cidades. Pensemos a nossa condição pós-colonial atual nas dinâmicas mundiais e globais. É preciso deixar o sangue estancar para poder curar e construir cidades e sociedades que façam sentido para quem nelas vive.
Artigo originalmente publicado na antologia FU RO, organizada por Margarida Vale de Gato e Miguel Manso, Casa do Gigante, Sertão 2022