As viagens lusófonas de Ariel de Bigault
Nascida em Paris, Ariel tem vivido repartida por vários portos e interesses. Foi precursora da divulgação do que hoje se vulgarizou intitular de ‘cultura lusófona’, enquanto agente cultural, investigadora e documentarista. Do seu conhecimento sobre música popular angolana e caboverdiana resultaram duas Antologias que são discos fundamentais para compreender a História e a cultura de ambos os países. Ainda no âmbito da divulgação musical (do samba ao semba passando pelas várias fusões musicais urbanas) realizou documentários.
Como se deu este encontro com a cultura lusófona? Começou a investigar o lugar do Negro na sociedade brasileira. Os livros (Florestan Fernandes, Roger Bastide, Abdias do Nascimento, Muniz Sodré por exemplo), encontros com personalidades e artistas, músicas e filmes abriram os caminhos desta “intensa viagem artística e humana”. Colaborou na curadoria da Mostra “Os Negros no Cinema Brasileiro”, organizada por Racines Noires, na Paris dos anos 80 e realizou a série documental Eclats Noirs du Samba (1987), com a participação de grandes criadores como Grande Othelo, Martinho da Vila, Gilberto Gil, Zézé Motta, Paulo Moura, que lançavam interrogações sobre a criação afrobrasileira e a discriminação racial.
Além de trabalhos em jornalismo e argumento, prolongou as suas investigações junto de músicos e cineastas africanos em Paris, interessando-se pela situação de alguns artistas da diáspora - e o modo como pensam essa condição e a relação cultural com os seus países de origem. “Os seus ensinamentos e aspirações, fazendo naturalmente eco aos meus contactos brasileiros, inscreviam o nosso diálogo tanto na análise do passado como na perspectiva da modernidade.” Ariel acompanhou as primeiras viagens de Manu Dibango, Salif Keita e Ray Lema ao Brasil.
Cabo Verde dos anos 90 introduziu-a à complexidade do imaginário atlântico interligando a história, a literatura e a música do arquipélago. Quando regressa a França participaria activamente na promoção de artistas caboverdeanos, e compila a Antologia das Músicas de Cabo Verde (2 Cds, 1995). Realizou ainda retratos fílmicos de alguns músicos, por exemplo de Tito Paris e dos portugueses Madredeus.
Foi em Portugal, nos calorosos anos revolucionários, que Ariel começa a aproximar-se do cinema, sendo um dos seus primeiros filmes Mulheres em luta em Portugal. Em Lisboa vinham confluir artistas africanos que lutavam contra preconceitos seculares e pela afirmação da sua identidade, muitas vezes híbrida, entre um lá e um cá. Com estes artistas realizou os filmes Afro Lisboa (1996) e Margem Atlântica (2006) que dão a conhecer as várias comunidades africanas em Portugal. Nestes documentários aparecem nomes de uma geração de transição na cultura angolana, é o caso de Agualusa, Orlando Sérgio, Miguel Hurst, Kussondulola, Messias Botelho ou o jovem músico e poeta Kalaf.
Pressentindo este imenso potencial da “cultura lusófona”, Ariel de Bigault criou o Festival Atlântida, em Paris (1996-97), reunindo pela primeira vez na capital francesa - numa altura em que ainda não havia quase tradição destas combinações culturais de espaços construídos por uma língua comum - músicos, escritores e artistas plásticos de África, Brasil e Portugal: Chico Buarque conversou com o angolano José Eduardo Agualusa, Chico Cesar tocou ao lado do caboverdiano Tito Paris, Olodum encontrou-se com o rapper moçambicano General D.
Os seus filmes têm sido mostrados em vários festivais de Portugal, Brasil e África.
Em 2014-2015 iniciou a longa-metragem sobre o cineasta brasileiro Nelson Pereira dos Santos, O Brasil de Nelson, a fllmar em 2016. Em 2015 fez uma residência artística na Fundação Sacatar, Ilha de Itaparica, Bahia, continuando os seus trabalhos sobre relações entre Angola e Bahia, e a filmagem de video documentário: Gente do Pelô (em edição).
Relação com Angola
O primeiro contacto com Angola foi através da música: um disco de Rui Mingas de 1976 e os traços africanos nos cantautores Fausto e Zeca Afonso. O segundo foi através do cinema: os filmes de Ruy Duarte de Carvalho e de António Ole. O caminho já estava traçado mas o diálogo só se concretizaria bem mais tarde, depois das realizações no Brasil e em Cabo Verde, de duas edições do festival Atlântida e da produção dos espectáculos africanos da Expo 98, onde contactou com muitos músicos. Ruma a Angola durante o conflito armado e no país pesquisa e junta tesouros da música popular na série de 5 Cds Angola (1956-1998). Realizou o documentário Canta Angola (2000) que “mostra como os artistas expressam a identidade e a cultura do seu povo orgulhoso e resistente”, na luta contra o desespero pela força da criação popular. É um importante registo de grandes músicos angolanos como Carlitos Vieira Dias, Lourdes Van Dunem, Moisés e José Kafala, Paulo Flores, Carlos Burity, Banda Maravilha, Simmons Massini, Novatos da Ilha, Ndengues do Kota Duro. Foi no diálogo com os músicos, na sua imensa contribuição, que Ariel reconhece o principal elo com Angola : «Nunca será demais dizer que sem eles, sem a sua dedicação e o seu profissionalismo, nunca poderia ter realizado estes trabalhos.»
Tendo já realizado a reportagem “A televisão dos angolanos” para a TV Arte 2006, esteve em Luanda a dar um atelier de Criação de Documentários, para a Televisão Pública de Angola onde as jovens mulheres eram muito participativas. Voltou em 2014 a fazer um atelier de formação de realização de documentários em Luanda com o Iacam (e Pedro Ramalhoso) e a Alliance Française de Luanda, do qual resultaram dois filmes escritos e filmados.
Numa altura que em Angola se começa a discutir mais o papel do cinema, do audiovisual e da produção nacional, falámos com Ariel de Bigault para saber as suas opiniões acerca desta área.
Quais foram as suas principais experiências com estruturas de produção em Angola?
Nas filmagens de Canta Angola trabalhei com profissionais angolanos, a Orion e TPA na produção e a quase totalidade da equipa. Em 2006, a reportagem “A Televisão dos Angolanos”, mostrava os programas que os angolanos apreciam e ouvia as suas opiniões. Nesta Angola em paz, com ambições de desenvolvimento e de expressão, cruzei muitos jovens técnicos que imaginavam histórias e imagens, e interroguei-me naturalmente sobre como poderia contribuir de maneira concreta para a concretização destes sonhos.
Como concebe uma formação em documentário?
A minha experiênca é o documentário de “criação”. Esta concepção do documentário inscreve-se numa atitude cinematográfica. Cabe ao realizador afirmar o seu olhar, desenhar pistas, construir o seu filme. É diferente da reportagem que visa dar conta do real. A formação que proponho é a prática da criação documentária. Durante o Atelier, são produzidos e realizados documentários, escritos, filmados e editados pelos técnicos, argumentistas, realizadores e produtores. Passamos por todas as etapas de realização e produção. Esta dinâmica permite a cada um – cameraman, engenheiro de som, roteirista, montador, produtor, realizador – experimentar as diversas facetas do processo de realização, de confrontar as suas práticas, e de adaptá-las consoante os objectivos do projecto.
Como decorreu o atelier na TPA? Vai haver continuidade?
Realizei o Atelier de formação à criação de documentários em 2006 na TPA com técnicos da televisão, do Iacam e alguns independentes. As propostas dos participantes eram temáticas sócio-culturais : histórias de um bairro, vida quotidiana de mulheres, jovens, trabalhadores, expressões culturais e musicais. Incentivei interrogações e reflexão, ligadas à pratica, sobre narrativas, estilos, tratamentos visuais e sonoros. Enfatiso que a criatividade passa por pesquisa e elaboração; é preciso definir um ponto de vista e assumir uma atitude crítica e criativa. Assim surgem linguagens e formas coerentes que reforçam o projeto de filme. O processo, custoso para alguns participantes, permitiu clarificar a diferença entre a produção do fluxo de imagens televisivas e a criação de documentários. A formatação globalizada é o grande perigo. A realização de documentários surpreendentes, diferentes tanto pelos conteúdos como pelas formas passa pelo desenvolvimento de núcleos de produção ágeis e capazes de iniciativas.
Posteriormente à formação na TPA, encontrei, a pedido do Iacam, duas dezenas de jovens muito motivados pela realização de documentários. São técnicos das produtoras audiovisuais, gente de teatro e também realizadores com alguma experiência de videos. Desejam realizar documentários para contar histórias das suas vidas, com temáticas socio-culturais. A sua energia, vontade e inventividade demonstram que existem muitas potencialidades que podem e devem ser desenvolvidas. Preparamos um Atelier de Documentários que poderá ser concretizado por iniciativa da ADECINE, associada a produtoras e com apoio financeiro da Cooperação Francesa. Será mais um contributo para o desenvolvimento tanto da formação como da produção.
Qual a melhor estratégia para incentivar a produção do cinema e audiovisual em Angola ?
Convem lembrar que Angola foi, como Moçambique, um dos poucos países africanos que na hora da independência investiu na produção de cinema, recebendo então apoio e colaboração de profissionais franceses e italianos. Foi assim que Angola deu o mundo grandes obras de cinema que ainda hoje são uma referência incontornável.
Hoje o investimento tem que ser duplo: formação e produção
Formação: Muitos profissionais da televisão e das produtoras têm uma formação técnica razoável (imagem, som, montagem) mas são poucos. São precisos mais técnicos formados de acordo com a diversidade de linguagens: a reportagem não pode ser editada como um documentário que não pode ser editado como um clip de música nem como uma longa-metragem. A diversificação das práticas é indispensável.
O maior desafio é aumentar rapidamente o número de realizadores e produtores. Nestas duas áreas essenciais, a formação é necessariamente ampla pois abrange diversos conhecimentos: as áreas técnicas, a cultura geral e cinematográfica, a história da produção. Mas também, e sobretudo, a prática no terreno, nas condições reais de produção do país.
Produção: para incentivar a produção, as grandes empresas nacionais e estrangeiras em Angola poderiam abrir concursos para projetos de baixo orçamento,: documentários, curtas de ficção. É na pratica, no terreno que os técnicos e os realizadores revelam os seus talentos.
Este duplo movimento - formação e produção - tem que ser desenvolvido num sentido de abertura. Existem muitos programas de formação e de produção “estrangeiros”. O Doc TV lusófono vai ser lançado nos próximos meses por iniciativa da CPLP. A Europa e diversos países europeus (França, Itália) têm programas de apoio à formação e produção. Talvez nem sejam bem divulgados em Angola. Estas iniciativas “estrangeiras” têm uma grande vantagem: permitem a jovens profissionais e aprendizes de confrontar-se com práticas diferentes, de forjar assim os seus próprios pontos de vista, atitudes e linguagens. Nesta abertura devem ser incluídos também cooperações e co-produções com países africanos francófonos (Burkina Faso, Senegal, Mali), e anglófonos (Nigéria, Africa do Sul) com amplas e diversas experiências de produção audiovisual e cinematográfica.
2010.