Kalaf Ângelo, quanto mais caminho percorres mais a sorte é tua aliada
O percurso do músico e poeta angolano que cativou os europeus tem muita determinação. Soube evidenciar em Lisboa o que ainda não estava à vista: a riqueza cultural de origens africanas, de vários modos mas também com a forma de novos sons. Pegar naquilo que lhe vem de Angola e sintonizar com os tempos que correm nas cidades europeias, dialogar com tendências e observar muito fazem parte da sua singularidade.
Kalaf Ângelo nasceu em Benguela onde viveu até aos 17 anos. Da infância feliz e suave adolescência na cidade da praia morena, guarda a memória das tardes com os amigos na mangueira do quintal, a fazer carros de lata no passeio da loja do senhor Flora, as corridas de pneus à volta do quarteirão ou o xadrez à sombra do muro do Roberto. “Aquele lugar tinha a melhor brisa da rua e era ideal para esperar as quintandeiras vindas da estação de comboio a caminho do mercado da Camponte.”
Já mais crescidinho recorda romances com as garinas junto ao portão e revê-se naquela Angola dos anos 80 que Ondjaki descreve em Os da Minha Rua e outros, “depois dele é difícil qualquer um de nós voltar a pegar nesse assunto”.
Quando veio para Lisboa para estudar em 1994 não foi a correr ter com os africanos do Rossio ou procurar a comunidade angolana. Queria conhecer mundo, ver outras coisas e não ficar preso a essa bolha da angolanidade da diáspora. Era o início de um profundo namoro com a cidade, que bapitzou Lisa, de luz.
Dizia-se que Lisboa era o lugar de encontro, que mantinha viva uma relação com a história, com a memória da escravatura, que ligava Brasil e África. Mas Kalaf achou tudo isso pouco verosímil, as pessoas ouviam mais Michael Jackson do que qualquer cantor africano (Miriam Makeba, por exemplo, pouco se conhecia): eram os primeiros passos para o agora tão apregoado encontro lusófono.
Hoje ainda se sente em casa nessa cidade, e lembra que Lisboa é um trampolim para outros voos para quem aí circula em busca de uma voz própria. Mas não é propriamente um centro: “Continuo a achar que, a acontecer uma revolução lusófona, Lisboa terá certamente uma palavra a dizer, mas quanto ao palco, poderá ser em Salvador, no Huambo ou em São Tomé. Está tudo em transformação o que torna mais interessante.”
Começou a escrever. Procurava acompanhar o que se passava no mundo cultural, era (e é) fase de absorver. Nessa Lisboa de aprendizagem, a arte pareceu-lhe a sua forma - “não académica nem coloquial” - de participar e de perceber o que o rodeava.
Entretanto “a ideia de vir a Portugal tirar um canudo e voltar para fazer família em Angola ia-se dissipando” pois outra relação se insinuou: a música. Com mais dois amigos criaram a Enchufada, uma produtora com escritório no pacato bairro Campo de Ourique, à qual se dedica, tal como ao projecto musical com mais sucesso internacional dos últimos tempos: os Buraka Som Sistema, da Buraca (bairro periférico da Amadora) para o Mundo! Este grupo, do qual é declamador-vocalista, absorve-lhe uma energia vital: viagens, umas atrás das outras, numa agenda carregadíssima, a alargar cada vez mais o eixo do globo.
Tenta manter espaço para projectos pessoais além dos Buraka: as suas sessões de spoken word, declamação de poesia e colaboração com outros projectos musicais como Space Boys e Cool Train Crew, e ainda há as crónicas semanais no jornal Público. Num registo de ‘pintor da vida moderna’ (dos poucos africanos e negros que escreve na imprensa portuguesa) podemos ir sabendo algumas coisas sobre a sua vida e opiniões, os lugares por onde vai andando, estilos de roupa, tendências, os inúmeros aparelhos hi-tec da era da comunicação global e outros caprichos que tais.
O seu primeiro regresso a Luanda em 2007, após uma prolongada ausência de 12 anos, foi muito inspirador. Sentiu que “existe uma nova forma de estar em Angola. Eu acordei para o mundo em tempos difíceis para todos (fim dos anos 80), hoje tudo é quase plural.” Além de revisitar lugares e pessoas, dedicou-se a pesquisar e a ouvir talentos do kuduro (como o dj Znobia, Puto Prata e outros) e do rap e, na volta a Lisboa, convidou angolanos do movimento de hip hop underground para actuarem com ele no cinema S.Jorge como o Luaty Beirão, o Keyta Maianga e o Leonardo Wawiti com fotografias do Kiluanji Kia Henda, num espectáculo intitulado Ecos da Banda que ficou para a história com o disco É dreda ser angolano.
Todas as formas de contar histórias através da música - o Kuduro, o Semba ou o Rap, com a linguagem do que está a acontecer, uma leitura ou análise da realidade mas criativa, são fontes para Kalaf. Tal como coleciona a gíria popular, o calão de rua do mangolé com o seu ritmo e musicalidade: “uma vez que me interesso pelas palavras do meu tempo ditas por pessoas que sentem e vivem os mesmos dilemas do que eu, é natural abraçar esse vocabulário. Até porque é bem mais bonito quando se consegue expressar poeticamente usando palavras avulso, colhidas ao acaso, fazendo passar a ideia a quem as ouve ou lê, a leveza do verbo é tal que até parece que não custa dar à luz um verso.”
O caminho percorrido por este jovem de voz dolente e olhar calmo (quem diria que põe as pistas de dança europeias, americanas e asiáticas em êxtase?) deve-se à sua criatividade e a uma atitude persistente com maturidade. As coisas foram acontecendo, foi jogando as cartadas certas sem andar atrás de modismos (embora siga as tais “tendências”) ou a precisar de padrinhos.
Há nele uma perspicácia em sentir o pulsar das coisas que estão a acontecer e torná-las comunicáveis, artísticas, transversais e possíveis de sentir por todas as culturas. Pertence a uma geração não ideológica, nem fundamentalista ou tradicionalista (sem esquecer de onde vem e quais os seus pilares culturais). “Acreditar em ti, e comunicar, independentemente de se ser angolano ou guineense, dos credos e políticas”, é a defesa da afirmação do indivíduo e sinceridade que Kalaf persegue.
Se existem suspeitas em relação à autenticidade ou originalidade do kuduro desenvolvido pelo projecto Buraka Som Sistema, responde que “trabalhar cá [na Europa] obriga-nos a estar atentos e a articular a música segundo os padrões ocidentais”. O álbum Black Diamond foi a certeza de um estilo próprio e de um potencial inigualável.
Se desenvolvessem esta música a partir de Luanda tudo seria obrigatoriamente diferente, teriam de lidar com outra lógica de mercado primeiro, mas “de certeza que estaríamos para a música e com a música de outra forma”. Mas o mais interessante é que Kalaf (e outros) soube cantar o novo som de Lisboa tornando-se a figura emblemática da “Lisboa lusófona”, “Lisboa mistura”, de trocas culturais (politicamente correctas?). Trata-se de uma rede artística com histórias pessoais, percursos e origens (Portugal, África, Europa) muitos diversos.
Encontram-se nos clubes, tocam juntos, partilham influências e batidas, usando os novos media (redes sociais da internet) como divulgação dos seus laboratórios criativos de gostos ecléticos, mas criando grandes singularidades dentro da musicalidade lusófona. São novas vozes e modos de operar que têm dado alguma esperança ao que de cansado e velho desmoraliza os europeus.
Kalaf tem grandes aliados na “banda”, e coisas na gaveta por fazer. Quanto às prioridades para a sua terra natal, defende que Angola tem de aprender a articular a informação. “Os povos que melhor a sabem usar têm vantagens no que toca à comercialização de produtos culturais, bem como toda a economia. Não podemos viver sem saber o que se passa em Angola, sobre o que são as nossas experiências. Estou um pouco cansado de ouvir África nas palavras de outros, quem melhor do que nós para contar a nossa própria história? Usem e abusem da tecnologia disponível, essa é a forma mais eficaz e barata de estabelecer contacto com o mundo.”
Quererá sempre voltar a Angola em busca de inspiração e de partilha, pois aquela música e palavreado a gente sabe bem de onde vem.
Buraka Som Sistema: Kuduro progressivo
Os BURAKA SOM SISTEMA inventaram um novo som afro-electrónico quando desejaram fazer uma música de dança para os clubes, Paris, Berlim, Londres ou Rio de Janeiro, mas que fosse “um mambo tipo angolano, com base no kuduro”. Esta batida faz-se então de sonoridades e beats que traduzem as suas biografias de misturas e fusões, num cantinho da Europa culturalmente próxima de África e da América.
Já eram dos grupos mais falados e dos fenómenos mais interessantes na música produzida em Lisboa dos últimos tempos. Já punham muita gente a gritar e a gingar a cintura com canções como «Yah» e “Wawaba”. O grupo surgiu em 2006 com o EP «From Buraka to the World», mas, depois do aquecimento com o “Sound of Kuduro Remix EP“, os Buraka Som Sistema apresentaram o seu álbum de estreia. Era o “Black Diamond”, cujos doze temas apostavam em levar a mais e mais gente este Kuduro progressivo. Entre os muitos convidados internacionais contam-se os nomes de M.I.A, Virus Syndicate, Pongolove, Deize Tigrona, os kuduristas de Luanda Puto Prata e Dj Znobia («Luanda/Lisboa»), entre outros.
Black Diamond foi gravado entre Lisboa e Luanda, mas os temas transportam dois anos de experiências acumuladas em palcos estrangeiros, do Reino Unido à Dinamarca, e depois do Japão aos EUA e contaminações musicais eclécticas do baile funk, do tecno ou do dancehall, e mais as memórias musicais das suas juventudes.
A passagem por Angola trouxe frutos para a concretização de Black Diamond, explicaram Kalaf e Andro (Conductor): «Quando começámos a fazer o disco era importante ter a essência original do kuduro de alguns produtores angolanos. Sabíamos que tinham um ritmo que não era muito parecido com o nosso, mas que também era bom para experimentação. Quando fizemos a viagem, foi importante entrar em contacto com eles para acrescentarem um bocado da raiz angolana daquilo que é o kuduro originalmente, para pôr também no disco».
O kuduro é a matriz do grupo, é o que lhes dá a identidade, mas João Barbosa (Lil’John), Andro Carvalho (Conductor), Rui Pité (Riot) e Kalaf garantem que os Buraka Som Sistema não são um grupo de kuduro, mas sim um grupo que produz música electrónica que parte daquele ritmo de Angola. O próprio nome do grupo acaba por ser uma declaração de intenções de todo o projecto.
Andro Carvalho e Kalaf nasceram em Angola, Rui e João em Portugal e foi em subúrbios de Lisboa, como a Amadora, que cresceram. «Nós sempre tivemos contacto com o kuduro na escola, nos carros que passam, e vimos naquilo uma potencialidade grande, mas não podíamos dizer que havia um som de kuduro que nos agradasse do princípio ao fim. E, enquanto músico livre de preconceitos musicais e de barreiras, quando tu ouves um ritmo e achas que podes pegar nele e fazer à tua maneira e gostar daquilo que estás a fazer… foi o que aconteceu com Buraka», descreveu Rui.
A projecção dos Buraka Som Sistema não pode ser dissociada do contexto de credibilização de músicas emergentes nas periferias das grandes cidades, como o “baile funk”, a “Baltimore club music”, o “grime”, o “dancehall” ou do potencial de atracção para plateias internacionais deste “kuduro” praticado por três músicos-produtores (Lil” John, Conductor e Riot) e dos dois incitadores-declamadores, um som tecnológico, mas com calor e descontracção.
Inovação musical ou simplesmente o instinto de estar no sítio certo com a fórmula certa? O grupo afirma que um não está dissociado do outro. Num momento em que o Ocidente mal aprendeu a classificar essa música suburbana, que germinou das novas metrópoles do mundo globalizado, o grupo acrescentava outro ponto de influência geográfica à pista de dança por onde passava, contaminando meio mundo, com um som novo.
Apesar da vaga eufórica que as actuações dos Buraka provocam, ainda há algumas desconfianças. Alguns emigrantes africanos mais velhos acham aquela música demasiado “ocidentalizada”, em comparação com mornas ou funanás, e os filhos que cresceram com as músicas urbanas globais, do hip-hop ao house, acham-na demasiado “africana”. Talvez por isso os maiores seguidores dos Buraka em Portugal são aqueles que têm um olhar limpo sobre este contexto. São essencialmente pessoas que foram confrontadas com o kuduro pela primeira vez, através dos Buraka, e a sua reacção foi emocional, epidérmica e física. É caso para pensar, confirmando o lado inócuo do multiculturalismo e de como a arte é muitas vezes a “excepção tolerada”, que as barreiras sociais e raciais são mais facilmente derrotadas pelo calor, suor e alegria da música.
in AUSTRAL nº72, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola