Desconstruindo utopias, António Tomás escreve sobre Cabral
Perante uma plateia pan-africana, Agualusa apresentava um novo escritor e o livro que fez saltitar a crítica, por ser um africano a escrever com propriedade sobre “estas coisas” numa “linguagem jornalística, apoiada numa investigação rigorosa” e inaugural no discurso de dentro, pois dá “a ver um pensador e combatente africano numa perspectiva africana.” António Tomás acolhia os elogios com o seu ar calmo e ponderado, nesse momento de grande realização pessoal depois de tanta luta e sacrifício para um livro exigente como este dar à estampa.
Foi ainda português que nasceu na Luanda de 1973, ano da guerra de Israel, de Allende, do boom dos preços do petróleo, dos máximos níveis de produção de café e algodão em Angola, do assassinato de Amílcar Cabral e oito meses antes da declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau. António, o mais velho dos rapazes lá de casa entre cinco irmãos, pai de Malange com origens em S. Tomé e Príncipe e mãe de Luanda, passaria a infância numa Angola socialista com filas para o pão e cartões de abastecimento mas sem grandes discrepâncias sociais.
“A minha mãe era muito católica e queria-nos fora da política. Enquanto os meninos da minha idade iam para os desfiles do 1º de Maio ouvir discursos do presidente, nós íamos para a Igreja. Em Angola, na igreja, exercitava-se democracia.” Foi lá que teve a primeira experiência jornalística num jornal de parede e onde organizou uma biblioteca.
A vontade de ler está intrinsecamente ligada aos despojos do colonialismo, começando por devorar os livros deixados pelos portugueses nas casas que são recolhidos para bibliotecas. Na biblioteca do comissariado de Luanda descobre os americanos: Hemingway e Faulkner. Na casa do vizinho, uma dessas casas abandonadas pelos colonos, descobre os policiais. Mas são Sartre e o existencialismo as primeiras marcas fundas de literatura na sua vida. Aos 16 anos escreve poemas e colabora na feitura de “bd”. Entra para a Alliance Française para ler mais e ver ciclos de cinema, e tenta escrever um romance em francês, porque era a língua cujo ensino tinha mais qualidade. “Percebi que queria escrever e o jornalismo era a forma mais próxima da prática da escrita”. Fez o curso médio de jornalismo enquanto trabalhava na ANGOP e na Rádio Nacional. Para além de crónicas apaixonadas escrevia o guião do mítico programa a que Edite Vasconcelos emprestava a voz, “Boa noite Angola!”.
Prosseguiu depois estudos em Portugal. Com uma bolsa da Gulbenkian estudou comunicação social na Universidade Católica. Conheceu José Eduardo Agualusa, que o convidou a escrever para o Público. Nesse diário luso, trabalhou na área da cultura, sobretudo sobre temas africanos.
Sempre sentiu uma certa desadaptação em Angola por não ter quase ninguém para partilhar as coisas de que gostava, mas em Portugal encontrou essa identificação. A sociedade portuguesa racista e conservadora revelava-se “quando saía do meio intelectual para apanhar um táxi, alugar uma casa”. Esteve uma longa temporada sem regressar a Angola. Durante esses anos 90 em que via, à distância, o país em guerra, nem frequentava os meios angolanos, porque era “muito doloroso”.
Foi nessa altura que surgiu o teatro. Apesar de já ler Ionesco, num jantar em casa da Ariel de Bigault decidiu dedicar-se às artes performativas com Miguel e Zézé Hurst dado que havia tão poucos e limitados papéis para actores negros. Um grupo de teatro com referências africanas era pioneiro em Lisboa.
Escreveu então Museu do Pau Preto, peça que os levou a Cabo Verde. “Gostei do trabalho colectivo, entre nós e os actores. Era a primeira peça escrita, produzida, encenada e interpretada só por negros.” Ainda escreveu um espectáculo para “Uma mesa e uma cadeira”, na Culturgest, e uma peça sobre Amílcar Cabral em conjunto com o casal Hurst.
Depois de um mestrado no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, parte para os Estados Unidos para fazer o Doutoramento em Antropologia na Universidade de Columbia, onde passou três anos, numa primeira fase. Mas antes disso tinha já ganho uma bolsa “Criar Lusofonia” que lhe permitiu começar a pesquisa sobre Amílcar Cabral, uma figura que sempre lhe chamara a atenção. Viagens a Cabo Verde, Guiné-Bissau, Paris; entrevistas, cartas e mais cartas, e tanta documentação no espólio da Fundação Mário Soares; cruzamento dos dados; construção do perfil desta figura-chave para a compreensão dos movimentos independentistas das antigas colónias africanas portuguesas. Muitos sofás emprestados por amigos onde descansava depois da febre de escrever páginas e páginas sobre uma vida tão cheia, e sobre o contexto da época deste homem.
É em 2007 que a editora Tinta-da-China pega na biografia que António Tomás lhe entrega – um “golpe de sorte”, diz a editora – para a transformar neste livro. E assim nos chega O Fazedor de Utopias - Uma Biografia de Amílcar Cabral que tantos dados nos dá sobre um dos idealistas mais importantes da história recente do continente africano. Depois de tudo, Tomás diz que o mais importante que lhe fica de Cabral é “a humanidade, a sentimentalidade, a crença num futuro melhor” de um nacionalista que teve, como outros, que resolver a crise enraizada na sua própria identidade simultaneamente portuguesa e africana. Resolução que passava pela auto-determinação do seu povo num movimento alargado. Na descrição das práticas e conceitos da “guerra anti-colonialista”, percebemos a tentativa deste homem, que se dizia humanista, para fundar “um meio termo entre o ideal comunista de Mão Tsé Tung – o poder da classe camponesa – e de Ernesto Che Guevara – o poder da revolução de quadros”. Revela-nos o seu “sonho irrealista de defender a unidade entre guineenses e cabo-verdianos”, o lado prático do estratega e as suas qualidades éticas de pensador, e urde os factos da sua vida. A crítica que me ocorre é ausência de reflexão sobre as ideias, os textos sobre cultura e política, os dicursos tão ricos de uma personalidade visionária. Tudo isto poderia vir ao longo do enredo biográfico, sem perder esse objectivo.
António Tomás passou o ano de 2008 em Angola a fazer trabalho de campo para a sua tese que está actualmente a acabar em Nova Iorque, nos EUA. A disciplina e a exigência consigo mesmo fizeram-no chegar até aqui, com a persistência de quem acredita, tal como Cabral, que o conhecimento e a cultura são formas eficazes de evolução das sociedades.
Fotografias de Marta Lança
in AUSTRAL nº 65, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola