Entrevista a André Amálio, do Hotel Europa, sobre Amores de Leste
“Nós não sabíamos o que era o muro de Berlim. Não sabíamos que a Alemanha estava dividida, que a Europa estava dividida. Só sabíamos que os jovens que estavam lá a trabalhar tinham de regressar a casa e que para nós a Alemanha era a RDA”
Estreou em novembro em Leipzig, dia 10 de Fevereiro na Culturgest em Lisboa e em maio estará em França. Amores de Leste inscreve-se num novo percurso da Companhia dedicado às migrações, inaugurado em 2021 com a peça Perfect Mach.
O amor é o leitmotiv para a pesquisa deste espetáculo, também parte da sua experiência pessoal e da Teresa Havlickova.
É um ciclo que já estamos a fazer há algum tempo, tentar perceber como é que as relações amorosas eram e são ainda condicionadas por estruturas de pensamento, por regimes políticos. Fizemos espetáculos onde estivemos a ver como é que o amor era condicionado pelo colonialismo, e como é que essa estrutura de pensamento colonial continua a influenciar relações amorosas. Olhámos para as relações quando eram condicionadas pelo fascismo em Portugal, e aqui demos o salto para os países de leste, para o socialismo, e como é que as pessoas que saíam do mundo lusófono e iam para esses países, como é que as relações amorosas dessas pessoas com pessoas desses países aconteciam, se eram livres, ou não. Obviamente isto parte da minha relação pessoal com a Teresa. Eu sou português, a Teresa é checa, nasceu ainda na Checoslováquia, e somos um casal de artistas. Trabalhamos nesta temática, nesta estética do teatro documental também vista de um ponto de vista multidisciplinar. Eu venho do teatro, a Teresa vem da dança, defendemos a multidisciplinariedade nos nossos espetáculos. Situamo-nos num campo de trabalho dentro do real, não fazemos um trabalho de ficção.
Estes temas já vos acompanham há algum tempo…
Desde muito cedo nós falamos de comunismo, socialismo, sobre o que essas coisas significam para cada um de nós, porque as leituras individuais são subjetivas, nunca unânimes. Eu tenho a minha visão do que significa comunismo enquanto português, que corresponde muito à luta contra o fascismo, ao trabalho de resistência, luta contra a opressão. A Teresa sempre teve uma visão muito contrária. Eu, como homem vindo de Portugal para a República Checa hoje, senti muito esse embate. Várias vezes me diziam que a minha perspectiva do comunismo não era muito bem vista. Ou não era muito correta para aquele país, ou para a maneira como aquelas pessoas vivem o seu passado recente. Sobretudo na República Checa, um enorme trauma que tem a ver com a invasão de 1968, que é algo gigante e abrange tudo. Mas esta é a minha visão, ligada à história portuguesa e a própria história de resistência ao colonialismo e fascismo portugueses. Há muitas coisas à mistura, e tentámos precisamente trazer estas diferentes visões para o palco. Era o ponto de partida. Como tínhamos feito este outro trabalho sobre a luta contra o fascismo e a luta contra o colonialismo português, o Leste estava sempre a aparecer. As referências ao Leste eram uma constante. Ou dos livros que líamos ou pelas pessoas que tinham ido viver, ou tinham ido ter treinos político-militares ou os apoios que eram dados. Naturalmente sentimos que era chegada a hora de darmos esse passo e mergulharmos então nesta história comum.
É essa a estrutura da peça, essa multiperspetiva sobre a mesma coisa. Concepções e prática de comunismo, conceitos de liberdade, de amor, vivências, o que significava o 1º de Maio ou ser pioneiro em várias realidades. O que foi um africano ir para o Leste, ou os cooperantes alemães ou russos irem para África, noutro período. A pluralidade de perspetivas, dessas relações, sejam históricas, afetivas e culturais, dão esse caleidoscópio que se sente em vários momentos. E mais a camadas das perspetivas dos narradores dos registos que realizaram como pesquisa, para além dos narradores em palco. E ainda vai depende da receptividade de quem vê, que será diferente aqui ou em Angola ou na Alemanha.
Acha que essa é a forma mais interessante de narrar esse período histórico que ainda tem impacto nas nossas vidas, no sentido de colmatar aquilo que não é contado pela grande história? Essas tão diversas memórias subjetivas acrescentam àquilo que é dominante nas narrativas desse período? Isso também é uma militância, contar essas histórias?
Para nós é muito importante contarmos de forma múltipla. Nunca contar de uma visão, de uma forma de olhar, porque não vemos a história dessa maneira, há muitas formas de viver, de ter vivido, de ter olhado, em que cada posição no mundo é diferente. É apaixonante perceber como é que se traduzem essas vivências no Leste, de pessoas de diferentes pontos do globo. Quem vai do Partido Comunista Português não tem a mesma experiência de alguém que partiu de Angola a fugir de uma guerra civil, ou de alguém que ainda está também a fugir de guerra em Moçambique, ou como o pai da Andreia, que ainda nem tem passaporte porque Cabo Verde acabou de ser independente e consegue ir estudar medicina para a Ucrânia, na União Soviética. São formas diferentes que acho importante guardar e mostrar, tal como para nós era importante dar a ver o ponto de vista de alguém que nasceu na Checoslováquia cujos pais são dali, ou de alguém que nasceu na RDA e tem (ou os pais) uma experiência de resistência àquele regime. Tudo isto é uma realidade muito rica, complexa. É por essa complexidade que ela é viva, precisamente nessa subjetividade, tanto das pessoas que estão em palco como desta enorme pesquisa que fizemos.”
Este é um projeto, como outro que fizemos, que tem uma dimensão de pesquisa que foi o Libertação, este talvez tenha sido superior. Fizemos mesmo muitas entrevistas e em muitos sítios do mundo, tal como no Libertação. Para além das residências que tivemos. Em Leipzig e noutra cidade do anterior território da RDA, uma residência em Praga e depois temos a vantagem da internet nos permitir fazer entrevistas em Cabo Verde, em Angola, na Guiné Bissau, em Moçambique. Isso foi muito interessante. Para além disso fizemos uma audição para escolher as pessoas que estão em palco. O Jorge era uma pessoa que eu entrevistei e convidei a vir fazer a audição, mas todas as outras pessoas apareceram. No panorama de pessoas a viver em Lisboa que tenham esta história ou família com esta história, não são muitas. Felizmente conseguimos reunir um grupo de pessoas. Por exemplo, a história do Mbalango era muito importante, desde o início queríamos ter tem uma relação com esta história dos madgermans. Toda a residência que fizemos juntos na Alemanha, irmos ver os sítios onde os familiares estiveram, irmos procurar o primo dele, tudo fez parte do processo. Foi bastante longa. Na verdade eu já estou a fazer entrevistas, sem saber que é para este espetáculo há vários anos, a primeira pessoa de que eu falo, que é o José Serra, entrevistei-o já em 2020 [e faleceu esta semana]. Mas ando a fazer entrevistas com pessoas que têm relação com o Leste desde 2019, 2018, 2017.
Deve haver um grande arquivo do Hotel Europa. Têm planos para ele?
Há um grande arquivo, em vídeo. Por acaso a entrevista do José Serra é em áudio, depois usamos um documentário que ele fez, como imagem. Mas as entrevistas são sobretudo em vídeo. Vamos guardando, estamos ainda a trabalhar este arquivo mas gostávamos de o tornar acessível futuramente.
Houve um apoio da DGARTES em parceria com o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras a que nós pensámos concorrer para tratar do nosso arquivo, mas por questões de calendário não conseguimos, se ele se repetir é uma das hipóteses de trabalhar o arquivo e o disponibilizar online, se tivermos as autorizações das pessoas entrevistadas para o fazer. Muitas até foram como fonte anónima e para aquele fim. Há uma série de passos que terão de ser pensados, mas não será num futuro próximo.
A vossa pesquisa proporcionou ou suscitou a vontade do Mbalango em ir procurar um familiar. Este processo de trabalho em que são envolvidos os próprios, a reativação das suas memórias ou pós-memórias tem um efeito a sua vida presente?
Tentamos de uma forma geral que as pessoas em cena tenham uma ligação direta com o tema que estamos a trabalhar. Ou colocarmo-nos a nós naquela posição. Lembro-me do espetáculo Os Amores na Clandestinidade, andámos todos à procura nas nossas famílias, que atos de resistência contra a ditadura é que havia. Que histórias de resistência havia para contar. No espetáculo Os Filhos do Colonialismo, por exemplo, havia mesmo uma transmissão de memória que era facilitada pelo nosso trabalho. Havia muitas histórias que os pais não tinham conseguido contar aos filhos, e através da entrevista que fizemos aos pais, houve ali de uma forma bastante direta uma transmissão. Os filhos conseguiram compreender melhor e mais facilmente, as escolhas e as vidas dos pais, perante o sistema colonial português e depois todas as escolhas que eles fizeram quando se dá a descolonização, quando se dão as independências. No caso da família do Mbalango, para nós teria sido incrível se tivéssemos conseguido facilitar esse encontro, se conseguíssemos possibilitar esse reencontro familiar. Não conseguimos, andámos à procura dele, mas faz parte do nosso espírito humanista ou ativista que o teatro, ou os processos teatrais, possam ter um impacto direto na vida das pessoas, e acreditamos que o teatro pode mudar a vida das pessoas. A vida das pessoas que estão a assistir mas também a vida das pessoas que estão em palco. Muitas vezes julgamos que as pessoas em palco são atores e estão a fazer personagens e aquilo tudo lhes é indiferente. Mas nós não trabalhamos dessa forma. As pessoas que escolhemos não são pessoas para quem aquilo que estão a dizer é indiferente. Não estão a fazer a construção de personagens, são as histórias deles. São as suas famílias, de alguma maneira é uma forma de darmos de volta. Porque recebemos imenso.
Não falamos daquilo que nós recebemos, e recebemos imenso destes processos, as pessoas estão a dar-nos muita coisa, as suas histórias de vida, o seu processo de transformação e crescimento, e nós também a crescer com esses processos. É mais um passo, obviamente não planeámos, não sabíamos que essa associação existia, fomos com algumas esperanças, tínhamos alguns dados para encontrar a família do Mbalango, começámos a ser desencorajados, a apercebermo-nos com mais clareza dos processos de perseguições racistas que tinha havido no território da antiga RDA, e provavelmente a família do Mbalango já não vivia naquele sítio. A maior parte das pessoas fugiram, muitas pessoas que tinham estas relações com pessoas de países africanos acabaram por fugir, mesmo assim tentámos. Descobrimos depois esta organização que foi feita pelos próprios filhos destes trabalhadores moçambicanos, que procuram os seus país, a partir daí tentámos encontrar o primo Danito, engraçado que o próprio tio do Mbalango não acreditava, estava incrédulo a ver este processo a avançar, uma pessoa desta Associação entra em contato direto com ele em Maputo. Ele fica estupefato, talvez ainda venhamos a localizá-lo. Mas para nós, esse espírito de tentarmos facilitar encontros, transformações, que também são nossas e das pessoas que trabalham connosco. Achei curioso falares do amor, para nós é muito interessante como o amor resiste a tudo isto, a estes sistemas que tentam acondicionar, limitar, aniquilar, ele acaba por resistir e acaba por continuar a existir, nestes filhos que entrevistámos que partem para Moçambique e muitas vezes os pais já não estão vivos mas continuam e vão conhecer as suas famílias. São relações de amor que continuam a existir, não terminaram. No caso dos madgermans foi um pouco além da coisa óbvia que conhecemos da queda do muro de Berlin, da unificação das famílias, e este caso é o contrário, a separação das famílias, é o empurrar destas pessoas para fora do país. Um grupo muito pequeno conseguiu ficar na Alemanha.
Tentando compreender melhor essa dívida da Alemanha a Moçambique, o caso do tio do Mbalango, trabalhou seis anos e recebia 40% do salário, o restante seria pago quando chegasse a Moçambique. Esse dinheiro não chegou a ser enviado para Moçambique?
Esse dinheiro nunca foi pago às pessoas e o que aconteceu é que Moçambique tinha dívidas perante a Alemanha, e este país abateu a dívida.
A Alemanha ocidental?
A Alemanha ocidental unificada. Mas este dinheiro não pertencia ao governo de Moçambique, pertencia a estas pessoas, eles não podiam…
Porque as marchas que há em Maputo desde 1990 são em direção à embaixada da Alemanha. Eles estão indignados com o Estado Alemão.
Eles estão indignados com os dois. Porque Moçambique também lhes disse que o dinheiro ia lá estar à espera. Moçambique não foi exigindo o dinheiro à Alemanha.
Ainda é muita gente.
São cerca de 15 mil e muitos deles estão a falecer, a ficar doentes. Outro aspeto deste drama é que a muitas destas pessoas foi-lhes prometido que quando regressassem iriam fazer parte desta nova elite porque foram ter formações especializadas na Europa, quando voltam não há lugar para eles, quando percebem que não há dinheiro e começam a protestar a Frelimo encara-os como inimigo, e muitos deles demoram décadas para se integrar, ficam a trabalhar em feiras, a arranjar televisões e aparelhagens, no fundo não conseguem integrar-se na sociedade moçambicana.
Em relação à queda do muro de Berlim. A ideia da liberdade associada ao consumir é muito presente, não só na vossa peça. É verdade que para muita gente a liberdade era associada ao acesso a alguns bens de consumo e à circulação. O que pensa sobre essa geração e circunstâncias? Não tiveram uma desilusão com as falsas promessas de liberdade consumista, com o sistema capitalista que agudiza as desigualdades?
Eu questionava muitas vezes isso, no nosso caso a crítica ao fascismo português era também pela defesa da liberdade de expressão, a liberdade de falar, de tomarmos ações políticas, e fazia-me confusão que a liberdade que estas pessoas falavam era a de comprar, de adquirir, e depois todos estes circuitos que aconteciam, até destes bolseiros que podiam ir ao ocidente comprar roupa ou aparelhagens ou walkmans, e depois faziam fortunas quando iam para o Bloco de Leste e vendiam estas coisas. Por outro lado, também vejo que a liberdade está nas mais pequenas coisas. Sentiam a falta de consumo como opressão. Por exemplo a mãe da Teresa. Lembro-me de como ela falava em como eles se sentiam profundamente controlados, tinham a vida toda organizada, tudo era controlado, os tempos livres eram controlados, para eles acabava por ser insuportável, não se sentiam livres. E mesmo a liberdade de viajar, para mim era estranho porque apesar de tudo eles conseguiam viajar dentro do Bloco de Leste, pronto, não conseguiam viajar para o ocidente mas não era como se eles não conseguissem viajar de todo. Tenho alguma visão crítica disso mas sinto que para eles, para as pessoas do Leste, o socialismo ou o comunismo continua a ser uma coisa que nem pensar, o maior inimigo, não há volta a dar. Não há esta ideia de voltar a fazer de novo, melhor. É esquecer. Agora há muito a iniciativa privada, as vantagens do mercado, estas coisas que em Portugal não sentimos tão forte, temos outra posição, um outro olhar. Ali eu sinto que as necessidades são diferentes, a Teresa seria capaz de responder de outra forma.
Não há então um revivalismo sobre o anterior regime apesar do colapso económico naqueles países na década de 90, quando milhares de pessoas daqueles países emigraram para procurar trabalho, a maioria das vezes muito abaixo das suas qualificações, como assistimos também em Portugal nessa década.
O Jorge Cabral, por exemplo, é uma pessoa que esteve lá e acompanhou o fim da União Soviética, para mim é muito importante a presença dele neste espetáculo. Eu acho muito interessante a história de vida dele, vem de uma família antifascista, antes de 74 fazia parte do Partido Comunista Português, ele vê a queda do muro de Berlim, quer ir ver como é o socialismo e é lá, na União Soviética que se torna militante do Partido Comunista Português. Ao contrário do que aqueles países estavam a querer fazer, para ele o ideal não morreu e ele quer continuar a lutar. Ter o ponto de vista dele no espetáculo para mim também é importante. Dizer no fim do espetáculo eu quero continuar a lutar por um mundo sem exploradores nem explorados, para mim é importante que isso faça parte do espetáculo.
E houve um ganho dos países socialistas com a presença destes estrangeiros?
Acho que estes países não perceberem esse ganho, por mais que finjam que não existe ou que vejam as relações de forma unilateral, esse ganho existe sempre, para as pessoas que foram viver para os países de Leste, como existe nos especialistas que estiveram nestes países e que ganharam imenso por estar ali. Talvez não de uma forma clara, todos os especialistas com quem falei foram profundamente transformados com a experiência de estarem em Angola ou Moçambique ou na Guiné Bissau, a vida deles ganhou e viu-se na história de vida deles, o impacto que teve. Esse ganho também existiu nas sociedades socialistas. Não tenho conhecimento de terem sido feito estudos, mas parece-me que quem teve contactos com aquelas pessoas teve de existir, nas relações amorosas, nas amizades, nas relações laborais, e esse impacto continua porque nem todas as pessoas foram empurradas para fora, muitas pessoas ficaram lá, os filhos. Esse ganho foi é ignorado, fez-se de conta de que não existiu. Esse é que é o problema destas sociedades socialistas, isso está a ser muito estudado agora, a transformação, o que estava na lei a sociedade não conseguia acompanhar. Eram proibidos os atos racistas mas eles não deixaram de existir, como nós próprios falamos neste espetáculo. Há uma pessoa que vai fazer uma denúncia de racismo na polícia e essa pessoa é vítima de violência policial. A polícia leva-o para uma floresta e abandona-o para o silenciar. E há outros atos que a polícia comete e silencia. Esses dados estão documentados. Nós sabemos isso. A lei existia e isso era já um passo, Agora este pensamento da sociedade europeia superior nunca abandonou estas sociedades socialistas, sempre se acharam superiores aos outros países que eles estavam supostamente, entre aspas, a ajudar.
Talvez os cubanos sejam o povo que tenha uma perspetiva diferente, é uma outra realidade, culturalmente há maior proximidade com África do que com os países de leste. Embora o internacionalismo cubano com esses países também tivesse os seus interesses, contrapartidas, em recursos. Mas os cubanos que foram lutar em Angola também sofreram muito com isso. Também houve histórias de amor incríveis. É uma história imensa a cooperação com países socialistas.
Mas muito racismo no leste com os africanos, o preconceito perante o desconhecido e a hegemonia branca de Moscovo e São Petersburgo. Amigos angolanos e cabo-verdianos contaram histórias de racismo quando estudaram lá. Por outro lado, a descoberta de se viver em realidades tão diferentes fez relevar a força da diáspora, criou uma energia interessante nas experiências que viveram.
Por exemplo, escolheram a história das bananas para representar os vários tipos de socialismos. Uma imagem forte. Gostei muito da ideia da fila e até podiam ir mais longe com essas imagens que valem por si sem ser tudo discursivo, trazer mais movimento à composição cénica. Em relação ao vosso método de trabalho, como é que fazem a escolha perante tanto material?
Nós temos uma metodologia muito de divising, quando começamos os ensaios não temos um texto escrito, vamos com esta bagagem de pesquisa e entrevistas. Neste espetáculo vamos conhecendo de uma maneira mais aprofundada a história dos intérpretes, e vamos selecionando, neste caso era o amor, e a partir dali vamos fazendo uma seleção, e a coisa vai acontecendo de forma muito natural, até muito intuitiva. É uma coisa muito vivida de forma conjunta, começamos por uma partilha, vemos todos as entrevistas, discutimos o que está ali, vamos conversando em conjunto e a coisa vai acontecendo. Começamos por desenhar as temáticas que estão ali nas conversas, do que é comum a cada uma daquelas histórias de vida. E vão sendo cenas por temas, a Partida, as Festas, as Aulas. Temos momentos que são muito fortes e marcantes. A entrevista que tivemos em Berlim com o Sr. Abraim Alberto é muito marcante, como pessoa, como madgerman, viveu muito perto ataques racistas, a maneira como ele próprio é um ativista na Alemanha de hoje, são coisas que têm bastante impacto no trabalho. Há entrevistas que nos marcam e acabam por ser pilares da própria criação do espetáculo. Elas não têm o mesmo peso e escolhemos mais umas e menos outras. A história daquela senhora cujo pai pertencia à Stasi, ela apesar de tudo é comunista. São coisas que levantam perguntas e fazem com que queiramos investigar mais a fundo. Essa história foi muito marcante para o início deste processo de trabalho. Como é que alguém tendo um pai que é de uma polícia política continua a lutar por um ideal comunista. Para mim também é difícil sistematizar de forma racional e objetiva. Mas passa muito por essa ideia de procurar coisas comuns. Este espetáculo podiam ser dez.
Mas é um trabalho de grupo, coletivo?
Sim, vai-se construindo nos ensaios.
Há uma evolução neste espetáculo em relação ao vosso percurso?
Não sei se lhe posso chamar evolução, é sempre difícil de avaliar, nós apesar de trabalharmos dentro de metodologias semelhantes, tentamos sempre fazer de maneira diferente, que sejam desafiantes para nós, quer seja trabalhar com pessoas reais, neste caso foi muito importante vir com Mbalango à Alemanha fazer a residência, a viagem. Escutar um pouco o que é que cada projeto tem e pode ser feito de maneira diferente. Estes princípios, de não criar a partir de um texto, criar a partir de histórias de vida, teatro documental, multidisciplinariedade, coisas que foram acontecendo, nascendo também do meu trabalho de pesquisa para um doutoramento que estava a fazer sobre teatro documental e sobre o fim do colonialismo português. Como é que o teatro documental podia recontar a história recente colonial portuguesa. Essa metodologia foi acontecendo. Mas ainda antes disso eu e a Teresa estamos à procura dessa linguagem em criação de co criação, de divising, de não trabalhar a partir de um texto, de multidisciplinariedade, são coisas que nascem da nossa vontade enquanto artistas, de procurar a nossa forma de criar. Desafiar um bocado os dogmas do teatro e da dança, sobretudo no teatro que se trabalha muito a partir de um texto escrito, de um autor. Procuramos desafiar um pouco essas lógicas. E trabalhar com pessoas que são a matéria, se calhar no primeiro trabalho não tínhamos essa necessidade, foi crescendo à medida que fomos evoluindo e nesse sentido sim há uma evolução. Se calhar a evolução, por vezes, é as coisas poderem ser mais claras e poderes já dar-lhes um nome e pensá-las. Se calhar no princípio fazias entre o pensar e o fazer, depois elas começam a ser muito claras, depende das necessidades que se tem.