Rimini Protokoll e o teatro do resgate da consciência
Em 2015, participei como espetadora-atuante no Europa em Casa, um projeto da companhia Rimini Protokoll, que acontecia em casa de pessoas que se voluntariavam para receber um conjunto de estranhos para aí fazer desenrolar uma mesa redonda/jogo em torno das ideias de fronteiras da Europa. A proposta, um pouco didática e instrutiva, era sobre os elos e geografia política do espaço europeu, e da nossa dimensão enquanto pessoas ou países nessa geografia. Deu-se um breve momento de tensão quando nos pediram que definíssemos onde deviam estar as fronteiras em torno da Europa ou da União Europeia. Não as internas mas as externas. Eu disse que não devia haver fronteiras e a atriz que dinamizava a atividade reagiu “Como não? Tem de haver!” Provavelmente este não seria o guião, e ela falou de um ponto de vista particular.
A peça “Conferência de Ausentes”, no TBA (24 a 26 de fevereiro), fez-me regressar àquele momento.
Os espetadores são convidados a re-representar. Representar os ausentes que enviaram as respetivas conferências para serem lidas. E representar-se a si mesmos nesta interpretação espontânea de um texto desconhecido. Aquilo que à partida parece, de forma lúdica, ser uma aproximação ao outro e empatia pelas suas palavras pode, no final de contas, corresponder à ausência de todos. Uma não-representação, encenação de verdades, a impossibilidade de agenciamento próprio reduzindo a palavra e a presença humana ao debitar e repetir uma voz que entra pelos fones ou está escrita num papel. A submissão ou conversão em marioneta num dos sujeitos da história. Os intervenientes presentes nunca são chamados a subverter, afinal eles não ouviram os textos antes para os entender e lhes dar sentido (representar não seria isso?) repetem-no à velocidade que o ouvem. A parte do público que é espetador também não faz perguntas ou levanta dúvidas em relação ao que vai ouvindo.
Há um conferencista ausente que tem dificuldades graves de mobilidade e os seus textos são precisamente sobre isso, sobre as suas impossibilidades e de como poder ser “lido” ser uma forma de estar presente vencendo por momentos a sua incapacidade física.
Este teatro documental reúne conferências de gente um pouco de todo o mundo, principalmente do norte global, há uma mulher do sul global, refugiada ruandesa que irá falar sobre a sua experiência no campo de refugiados e de como na Europa tenta ser invisível para não ter problemas. Há outra voz de um somaliano, mas é uma personagem criada por um alemão, ex-responsável pelos serviços secretos. Sobre a Somália ou o que o autor, membro dos serviços secretos de um país europeu fazia nesse país, nada nos é contado.
Há também o texto de um israelita de 95 anos que dá conferências pelo mundo inteiro a contar como se safou de uma execução coletiva de meninos judeus mentindo aos soldados nazis e como passou o resto da guerra junto às juventudes hitlerianas e como soldado alemão. História truncada, não sabemos se combateu ou se foi responsável por prender e matar outros judeus. Hoje resolve os seus problemas de consciência contando a sua história. Sobre como é viver num país que pratica o apartheid, nada nos é contado.
Uma impotência não declarada que perpassa globalmente os textos deste norte branco, preocupado com a humanidade e com os problemas do mundo, a crise dos refugiados, o genocídio do Ruanda, os crimes na guerra da Jugoslávia, as doenças incapacitantes, a corrupção e fuga ao fisco, no norte como no sul. O último texto é de autoria de um norte-americano que fundou um movimento pela extinção voluntária da espécie humana. Senta-se todos os sábados num mercado de legumes de Portland a dizer às pessoas para deixarem de se reproduzir. Esterilizou-se aos 25 anos e conheceu outro homem que fez o mesmo depois de o ouvir numa conferência. Diz que não há nada que lhe dê mais prazer do que pensar em todos os bebés que não vão nascer. Podia ter deixado essa possibilidade como decisão fruto da vontade, mas por via das dúvidas operou-se para que seja irredutível. A vontade — se mudar —deixará de ser a bitola para as suas decisões. A impotência, aqui, é o reconhecimento de que nada há a fazer a não ser esperar e convocar o fim, é o presente que se oferece a quem está vivo e tem os seus legumes para comprar e cozinhar. Será a peça imaginada pelos Rimini Protokol, ao trazer-nos esta espécie de loucura, uma provocação como ilustração de decadência ocidental? Ou representará ela, na escolha dos temas, ignorando causas, consequências e tantas propostas no mundo em fazer diferente, por exemplo na exploração dos recursos que salvaguardem o planeta, uma visão desistente e fechada das suas fronteiras? Fronteiras brancas de má consciência e de fraco consolo.
A loucura de Les Knight– o extincionista – não é contrabalançada por nada nem ninguém e a generalidade da plateia é capaz de lhe reconhecer razão: pois a espécie humana despedaçou o Planeta, será altura de abandonar. Mas abandonar a espécie humana é abandonar ao mesmo tempo a Natureza porque a vida acontece da mesma forma, somos Natureza, destruí-la enquanto espécie ou achar que se promovermos a nossa extinção a salvamos, faz parte da mesma arrogância em relação aos seres e ao mundo que partilhamos. Irracional e perigosa porque desde a justificação de guerras para baixar os números de humanos até às experiências eugenistas do século xx não faltam exemplos de projetos de extinção voluntária bem precisos. Um amigo há uns anos, acabado de se doutorar, dizia, face à falta de respostas de trabalho no nosso país, que o problema era haver doutorados a mais, que devia haver um limite (para ele poder ter trabalho). É o problema de Les Knight e de como vê o Planeta. É o mesmo problema da Conferência de Ausentes.
Os seres humanos deixaram de poder ser agentes do seu destino coletivo, são só indivíduos e indivíduos manietados e instruídos por outros – repetem num microfone num simulacro de representação — o planeta é algo posto ao nosso dispor para o disfrutarmos – a astronauta vai para o espaço para se saber como a falta de gravidade envelhece. Os outros são vistos através de fronteiras que só podemos ver realmente através de mapas virtuais e por quem nos condoemos ficando reféns nesse gesto fechado, procurando nele a possibilidade de resgate de consciência, como o israelita a condoer-se de si próprio em público como que a pedir que lhe digamos está tudo bem, não tinhas alternativa. Quando na verdade não podemos saber ou sabemos bem demais que até tinha.